Episódio de uma noite de verão

O sujeito se aproxima de mim com um sorriso.

— Eu podia pedir uma ajuda ao senhor? É que eu preciso de dinheiro para voltar para casa, meus filhos estão com fome…

Me mostra um papel que não olho. Enquanto abro a carteira para lhe dar 1 real, ele pede:

— Pedir não é vergonha, né? Por favor, não fique com raiva.

— Se eu ficasse com raiva não te dava o dinheiro.

Enquanto me afasto ele me faz uma sugestão bem intencionada:

— Por que o senhor não pára de fumar? Fumar faz mal.

E então, por breves instantes, eu penso em tomar o real que lhe dei.

Afundando o Titanic

Eu assisti a “Titanic”. Duas vezes. Nas duas, fui para fazer companhia; saí do cinema impressionado com o artesanato brilhante do filme e com o clichê que era o seu roteiro, e fazendo comparações injustas com “Encouraçado Potemkim”.

Mas da segunda vez, de saco cheio por estar ali, precisei recorrer a pequenos estratagemas para suportar as quase 3 horas de filme.

Perto do final há uma cena melosa — mais que a média — em que uma mãe coloca seus filhos para dormir sabendo que é a última vez. Corta para o navio praticamente na vertical, com as pessoas despencando e se estabocando nas ferragens navio abaixo.

Fiz minha própria sonoplastia: “Ai! Ui! Ai, aí não! Plaft! Ploft!”

Do meu lado uma menina de seus 11 anos, em prantos, me olhava com todo o ódio de que uma criança é capaz.

Acho que naqueles poucos segundos destruí naquela menina quaisquer vestígios de fé no gênero humano.

Constatação

Cheguei à conclusão de que, já que vou passar mais tempo que o normal em Aracaju, preciso arranjar uma namorada com carro. Alguém tem que me levar aos lugares aonde preciso ir.

Alguém conhece alguma sergipana gostosinha, bonitinha, com carro, disponibilidade absoluta de tempo, disposição para ficar esperando horas e horas e que não conheça o meu passado?

Jogo dos sete erros

Achei num MD alguns spots de rádio que fiz quando morava no Ceará. São de épocas diferentes: há um espaço de um ano entre este e este. Acontece que, quando criei um deles, eu já não agüentava mais escrever esses comerciais e me preparava para dar no pé, e isso se refletiu de forma trágica na peça. Alguém consegue adivinhar qual o spot feito de má vontade?

Rafael, o popular

Indo jantar às duas da manhã com um amigo, que por acaso é político, prestei atenção ao modo como as pessoas me tratam.

Eu nunca recebo tantos cumprimentos excessivamente efusivos de gente que nunca vi antes quanto nessas horas.

Parece que o hábito de tratar bem quem tem algum poder é extensivo aos agregados. Se me vissem na rua sequer olhariam para mim — tá, olhariam para pensar “que gordinho lindo e sexy!” enquanto salivavam. Mas como estou ao lado do sujeito, e ele está numa posição em que deve ser cumprimentado, conseqüentemente passo a merecer a extensão desses cumprimentos. Certo, eles não me conhecem, nunca me viram mais gordo — mas vai que eu seja alguém, e aí? Com essas coisas não se brinca, e civilidade nunca é demais.

Mas que é uma bruta perda de tempo e de sorriso, ah, isso é.

Ready-made art

Encontrando gente que não vejo há muito tempo.

Parece que todo mundo combinou dizer a mesma coisa quando me vê.

— Caralho, como você tá gordo!

Mas a esses já tenho resposta pronta, lida numa camisa.

— É, mas eu posso emagrecer. E você, que é feio?

Não, não é grosseria. Grosseria seria dizer o que realmente me vem à cabeça.

Patriotada

Lendo um post no Melting Pot vejo uma referência ao guaraná. Fico imaginando como é interessante que, longe do torrão natal, as pessoas passam a ter saudades de coisas às quais prestavam pouca atenção ou davam pouco valor. A maior parte das pessoas cujos relatos vejo menciona o guaraná, essa bebida brasileira que muita gente parece achar ser a maior invenção do mundo (o que não quer dizer necessariamente que o Melting Pot também ache).

Pois se eu me exilasse sentiria saudade de um monte de coisas — menos de guaraná.

E me dedicaria, como Baudelaire numa casa de ópio, a encher a barriga com coca-cola e fingir saudades inexistentes.

A segunda Guerra de Tróia

As peças que a História nos prega. Não há nada mais cruel que ela.

Eu devia ter uns 8 ou 9 anos. Estava em férias na casa de minha avó e acabei dando de cara com um livro, provavelmente de alguma enciclopédia para jovens, que falava da descoberta de Tróia por Heinrich Schliemann. A partir desse dia Tróia me fascinou, a ponto de na pré-adolescência eu pensar seriamente em me tornar arqueólogo.

E uma das perdas que mais doíam em mim era a do tesouro de Príamo em 1936. Era terrível imaginar que aquele tesouro, conservado sob a terra durante séculos e séculos, de repente tivesse sido perdido por obra humana.

Toda a minha infância e adolescência foram passadas nessa crença.

E então, quando eu já tenho mais o que fazer, quando a única história que me interessa realmente é a minha, eis que em 98, acho, chega a revelação de que o tesouro tinha sido confiscado por Hitler e saqueado pela União Soviética. Para quem se interessar, atualmente esse tesouro está em exibição no Museu Púchkin, em Moscou, e é objeto de uma disputa diplomática entre Turquia, Alemanha e Rússia.

Não gosto que mexam no meu passado. Com o tempo me acostumei à idéia, e consegui ver nessa perda um certo lirismo fatalista. O reaparecimento do tesouro de Príamo era quase como uma segunda Guerra de Tróia, perdida como foi a primeira, quando achei que o tesouro estava desaparecido.

Por que eles ousam acabar com minhas crenças de infância?

Primeiro Papai Noel, depois Rock Hudson, e agora isso.

Diálogo rápido e instrutivo no MSN Messenger

Fulano diz:
lindo vc na foto

Fulano diz:
tá ruim demais veio 🙂

Rafael diz:
Eu sou lindo, mas não é pro seu bico, baitola. 🙂

Fulano diz:
hahahhahhahaha

Fulano diz:
pensei que vc tinha saido nas cajuranas hoje

Rafael diz:
Não, eu não queria ofuscar o seu brilho. 🙂

Rafael diz:
Qual sua fantasia?

Fulano diz:
hahhaa

Rafael diz:
“Esplendor de Serigy em noite de lua cheia”?

Fulano diz:
eu saio todo ano veio

(…)

Fulano diz:
vou sair não sou um cara sério

Fulano diz:
hehehe

Fulano diz:
noivo hehehe

Rafael diz:
Sério?

Rafael diz:
Quem é o felizardo?

Rafael diz:
Ele é um homem direito, de bem?

Rafael diz:
Ele não bate em você, né?

Fulano diz:
hahahaa

Duvido que a noiva dele gostasse de mim.

(Glossário: Cajuranas é um bloco carnalesco com de homens vestidos de mulher, nos moldes das Muquiranas de Salvador.)

Molecagem

Alguém avisa:

— Olha o Otávio Mesquita!

Muito tarde, e de saco cheio — é, boca livre também enche o saco depois de certo tempo.

Eu grito:

— Amaury Júnior! Amaury Júnior!

Ele ainda olha para ver quem é o filho da puta que está gritando. Parece ser gente boa.

Acho que é algo na água de Aracaju que me faz voltar à adolescência e me força a fazer essas coisas.