Lembranças de outra infância

Minha filha tinha dois anos.

Entre os exercícios que eu fazia com ela, desenhei um coelho, uma cenoura e uma linha pontilhada ligando os dois. A linha era ondulada, cheia de sobe-e-desces. A idéia era fazê-la cobrir a linha e ligar o coelho à cenoura.

Ela olhou para mim como quem não conseguia entender como o seu pai pode ser tão idiota, às vezes.

E com uma linha reta ligou o coelho à cenoura.

Resposta à Dani

Dani, domingo você me fez uma pergunta nos comentários que eu não soube responder na hora.

Nesses últimos dias parei para pensar. Passei em revista a minha vida inteira. As partes boas, as partes ruins, as partes de que eu não deveria lembrar e as que eu não podia esquecer.

A resposta é não.

Citação

Um homem temia que viesse a encontrar um assassino; um outro, que viesse a encontrar uma vítima.
Um deles era mais sábio do que o outro.

Stephen Crane, mas poderia muito bem ser de Rafael Galvão.

Clássicos da Literatura Juvenil

A minha casa era engraçada: a primeira TV em cores chegou lá apenas no final de 1978, mas sempre houve um excesso de livros à disposição de todos nós.

Foi mais ou menos nessa mesma época que ganhei uma coleção de livros infanto-juvenis. Eram 30 livros de uma coleção vendida em bancas pela Editora Abril, com capa dura e ilustrações em preto e branco. O nome era “Clássicos da Literatura Juvenil”.

25 anos depois, ainda sei de cor de todos os títulos da coleção:

01 – A Ilha do Tesouro
02 – O Conde de Monte Cristo
03 – As Aventuras de Tom Sawyer
04 – Os Três Mosqueteiros
05 – Dom Quixote
06 – Alice no País das Maravilhas/No País dos Espelhos
07 – O Último dos Moicanos
08 – David Copperfield
09 – Capitão Tormenta
10 – Odisséia
11 – Ben Hur
12 – Aventuras de Huck
13 – Beleza Negra
14 – Robin Hood
15 – Sem Família
16 – Mulherzinhas
17 – Ivanhoé
18 – Os Patins de Prata
19 – Viagem ao Centro da Terra
20 – Chamado Selvagem
21 – Robinson Crusoé
22 – 20.000 Léguas Submarinas
23 – A Filha do Capitão
24 – Robinson Suíço
25 – Moby Dick
26 – Caçadores de Cavalos
27 – O Príncipe e o Mendigo
28 – Nevada
29 – Aventuras de um Petroleiro
30 – A Rapaziada de Jô

Claro que eles não tinham o texto integral de todos os livros. A maior parte era adaptada, principalmente aqueles mais densos, como “David Copperfield”, o que quer dizer que tiravam as partes mais pesadas e davam uma penteada geral no texto. A coleção completa tinha mais volumes (pelo menos mais 20, que eu conheça). E era um admirável meio termo entre boa literatura e linguagem razoavelmente acessível. A diversidade de temas, a qualidade das histórias, tudo isso faz com que essa coleção seja absolutamente brilhante.

É por isso que mesmo na adolescência eu menosprezava, talvez injustamente, a Coleção Vaga-Lume; eu tive a sorte de, ainda criança, ter contato com a melhor literatura infanto-juvenil do mundo. Não há comparação entre a ironia de Dickens, ou a imaginação de Dumas, Verne ou Stevenson, e aqueles livrinhos curtos, escritos já com a intenção de serem “fáceis”, da Vaga-Lume.

Essa coleção se perdeu no tempo, gasta de tanto ser relida. Ontem comprei 10 volumes num sebo — estou comprando para a minha filha, para que ela tenha a chance de descobrir o mesmo mundo que eu. Afinal, é um belo mundo, este aqui.

De como perdi um concurso de contos para um viadinho

Eu detesto concursos.

Quando fui morar em Aracaju participei do primeiro e último concurso em minha vida. Era um concurso estadual de contos infantis. Recebi a notícia na sala de aula, decidi que ia participar e, naturalmente, esqueci do assunto, que eu tinha mais o que fazer.

Só fui lembrar do concurso na véspera do fim do prazo, e corri para escrever o conto. Dele só lembro que era sobre um adolescente que arranjava uma moto e um cachorro e se metia em aventuras no meio do mato, acho que na Amazônia.

Escrevi e passei a limpo; acabei só entregando o conto no fim do dia. Quando entreguei, a professora de português responsável pela participação do colégio no concurso só fez um comentário: “Hmm… Grande, né?”

Pelo que entendi, a filha da puta estava insinuando que aquele conto era um plágio, ou que alguém tinha escrito por mim. Minha vontade, na hora, foi lembrar a ela que não devia julgar a minha capacidade pela sua burrice. Mas tudo bem.

Eu já tinha esquecido do assunto quando uma prima ligou para minha casa dizendo que meu nome tinha aparecido no telejornal da noite, como vencedor do terceiro lugar do tal concurso.

A irritação começou aí. Não existe vencedor de terceiro lugar. Existe, sim, um sujeito que perdeu o primeiro e o segundo lugares, só isso. Um perdedor duplo.

Mas eu iria me irritar ainda mais no dia seguinte.

O segundo colocado tinha sido um colega de sala. Seu conto falava de um passarinho que fugia de sua gaiola e saía pelo mundo procurando a felicidade.

Ah, não. Passarinho? Voando lindo, leve e solto à procura da felicidade? Eu podia ter 11 anos, mas já sabia o que era coisa de viadinho. E aquilo, definitivamente, se encaixava na categoria. Perder para um continho de viadinho era humilhação.

Mas ainda tinha mais. Eu conhecia o sujeito. Ele não fazia absolutamente nada sozinho: sua mãe, superprotetora, fazia tudo por ele. Ela tinha chegado ao cúmulo de, depois de uma prova de história em que eu havia dado a cola completa para ele e para o resto da sala, ir me agradecer pessoalmente (se fosse a minha mãe ia ficar revoltada). Não era de admirar que ele fosse assim, meio viadinho.

Eu perdi o segundo lugar, mas sabia que tinha perdido para uma mulher de meia-idade que não tinha o que fazer, provavelmente mal-amada, em vez de para um sujeito da minha idade. Não que isso servisse de consolo, infelizmente. Eu poderia ter perdido para Rubem Fonseca ou Tchekov, que ainda assim ficaria revoltado.

Para completar, o prêmio ao terceiro lugar era uma caderneta de poupança no valor de 3 mil cruzeiros. Eu nunca vi a cor desse dinheiro. O Estado de Sergipe me passou um 171.

Até hoje tenho certeza de que o meu conto era melhor que o segundo lugar. Certeza absoluta. E tenho a séria desconfiança de que era melhor que o primeiro, também.

Eu detesto concursos.

Um certo Capitão Rodrigo

Aos 10 anos, comecei a criar meus personagens de quadrinhos.

O primeiro de todos foi Kit, o Recruta. Era uma cópia escancarada (mas menos preguiçosa) do Recruta Zero com um visual de Popeye. Fiz revistinhas com ele, que vendia em casa.

Depois disso vieram meus super-heróis. O primeiro foi o Escaravelho Azul, cuja história era abertamente inspirada no Batman: um milionário que combate o crime. A diferença é que ele era dono de uma empresa de engenharia genética (aos 10 anos pensei em ser engenheiro genético, depois de ler uma matéria de capa da Veja).

Seguiram-se outros, a maioria dos quais esqueci completamente. A lista é enorme, mas lembro de uns dois ou três apenas; havia um cowboy — talvez seu nome fosse Texas Kid; talvez — e um ser com poderes “cósmicos” chamado Meteor, mas é tudo o que lembro. Eram todos derivados, abertamente “inspirados” em heróis existentes.

De todos eles, o que poderia ter sido mais interessante foi justamente o último, criado aos 12 anos: o Capitão Rodrigo. Era o comandante de uma nave espacial em um futuro distante. Qualquer semelhança com Star Trek não é mera coincidência, claro. Nem é ofensa se alguém lembrar do nome de Érico Veríssimo. Era uma boa idéia, e de certa forma o mais original de todos. Uma espécie de “O Tempo e o Vento no Espaço”.

Mas a fase de desenhar super-heróis estava passando, e o Capitão Rodrigo nunca teve uma história completa como as dos outros. Eu os deixaria de lado e desistiria de ser um Stan Lee tupiniquim, assim como quase esqueceria que um dia pensei em vir a ser engenheiro genético.

Lembrança de infância

A SENHORA BELLINGHAM (sacode o regalo e o lorgnon vindicativamente): Faça-o pungir, querida Hannah. Azorrague o bastardo até um triz da morte. O gato de sete vidas. Cape-o. Vivisseque-o.

Eu tinha 10 anos quando li isso. É um trecho de “Ulysses”, de Joyce.

Não que eu tenha lido “Ulysses” com essa idade. Fui parar aí apenas folheando o livro, que a propósito tem passagens bem mais fortes. Mas essa frase, a força do “cape-o”, a vontade quase sádica de vingança, me impressionaram de uma maneira que, mesmo após anos sem sequer tocar no livro, não esqueço da senhora Bellingham. Acho que foi o primeiro trecho de livro que decorei em toda a minha vida. E eu nem sabia o que era um gato de sete vidas; pensava que a sra. Bellingham estava se referindo ao pobre Bloom como um sujeito de sorte que se saía de enrascadas, e não a um chicote.

Até hoje a sra. Bellingham povoa meus pesadelos, pois no fundo me convenci de que, se eu fizer coisas feias como as que Leopold Bloom fez, posso ser levado à sua frente, e ela vai pedir que o gato de sete vidas acaricie minhas costas.

O dia em que conheci John Updike

Para muita gente lá na Busholândia, John Updike é um dos grandes escritores do século passado. Em resenha no New York Times a seu último livro, uma tal de Cynthia Ozick o compara a Faulkner e a Fitzgerald. Cynthia devia parar de fumar essas coisas, porque faz mal e quem fuma fala besteiras como essas. Considero Updike um excelente resenhista, um dos melhores que já vi, mas seus romances são extremamente chatos. Seus contos também. Parece ser a “Síndrome de Gore Vidal”.

E quando conheci Updike, preferi compará-lo a um escroto qualquer.

Eu conheci John Updike em Veneza. Quer dizer, conhecer não é bem o termo. Eu tinha perdido o avião em Roma e ao chegar no brejo em Veneza não havia ninguém me esperando.

Vida de paraíba nas Oropa é fogo. Se ao sair do aeroporto eu tivesse olhado para a esquerda, veria lanchas que me deixariam na porta dos fundos do hotel em que ficaria. Mas olhei para a direita, e peguei um táxi que me deixou em um ponto de vaporetto, o ônibus deles.

Tive ainda que fazer uma baldeação. E lá estava Updike, sentado com uma amiga (feia, mas menos feia que ele) nas duas únicas cadeiras do lugar. Eu carregava uma tonelada de malas e minhas mãos ardiam. Minha ex-mulher estava grávida — mas alguém acha que Updike se levantou e ofereceu o lugar a uma pobre cucaracha em um momento de extrema necessidade?

Essa idéia nem passou pela sua cabeça. E a gente continuou em pé.

O sujeito estava alegre, feliz, com um ar de “eu – estou – no – meu – ambiente – mas – você – paraíba – não – e – além – disso – eu – estou – sentado – e – você – não”.

Algumas horas depois, já no hotel, lembrei que aquele filho da mãe mal-educado tinha psoríase. E aí, por alguns breves momentos, eu me senti em casa em Veneza, porque por alguns momentos fiquei alegre, feliz, com um ar de: “você – tem – psoríase – mas – eu – não – e – além – disso – eu – sou – bonitinho – e – você – não”.

Rápida declaração de racismo

Não gosto de negros. Não gosto de brancos. Não gosto de amarelos. Não gosto de vermelhos. E se inventarem um verde, eu também não vou gostar.

Ode contra a SUIPA

Há muitos anos levei uma amiga ao pronto-socorro, costurar um baita corte na mão. Fiquei ao seu lado enquanto o médico remendava o talho. Olhava entre fascinado e enojado para as bolinhas de gordura que saíam corte afora.

O médico olhou para mim e disse: “Se quiser, pode olhar para o outro lado”. Achei engraçado e respondi: “Doutor, não é a minha mão que o senhor está costurando. Em mim não dói nada.”

Esse prólogo é para falar que acho os exageros em defesa dos direitos dos animais uma grande bobagem.

O que me impede de chutar um gato não é a dor dele; é o meu senso ético. Não acho certo chutar um animal que não me fez nada. O resultado pode ser o mesmo — o gato feliz e incólume — mas as razões são completamente diferentes. É por mim, não é por ele. Em mim o chute não dói.

Resumindo, minha visão do mundo é eminentemente antropocêntrica.

É por isso que acho engraçado que protestem contra o uso de animais como cobaias. Por exemplo, coelhinhos em testes de xampu. Cruel como possa parecer, tais testes são bem aceitáveis, desde que resultem em xampus que tornem determinadas cabeleiras sedosas e macias, onde eu possa afundar o rosto. Se os coelhinhos não são necessários para isso, ótimo. Vivam em paz e comam alfacinhas e cenourinhas. Mas se são, azar o deles. Eles se reproduzem rápido, de qualquer maneira; não vão entrar em extinção e desequilibrar o ecossistema.

Voltando à minha amiga: até hoje ela diz que a culpa do corte — decorrente de uma queda sobre uma garrafa — foi minha. Minhas lembranças são diferentes. Mas ainda que fosse, ele continuaria sem doer em mim.