João, Maria, a bruxa muito má e Rafael

Sempre contei a história de João e Maria para a minha filha omitindo alguns detalhes.

Por exemplo, ela não sabia que eles foram jogados no mato pelos pais desnaturados e incompetentes que não queriam aquelas duas bocas para alimentar. Também era mantida na mais crassa ignorância acerca do canibalismo pedófilo da bruxa. Finalmente, a usura de seus pais, que os recebem de volta de olho na fortuna que aqueles dois pequenos latrocidas roubam da pobre bruxa, não existe na minha versão da história.

Aos cinco anos há coisas que uma criança não precisa saber.

Há dois dias ela estava assistindo a um filme sobre a história, fita dos primos que ela desencavou de algum lugar. Passei os olhos e a deixei em paz.

À noite, quando começava a desfiar a seqüência de histórias tradicionais, inventadas e músicas infantis que fazem parte do seu processo de sono, ela me interrompeu, com a impaciência que lhe é típica:

“Não, papai, ela prende o João e transforma Maria em sua escrava!”

Revoltado com o que a televisão fez e com sua contribuição indesejada ao vocabulário de minha filha, enquanto gaguejava um arranjo minimamente aceitável para a história eu ficava pensando no triste fim que aquela fita teria, jogada ao lixo em pedaços assim que ela esquecesse de sua existência.

Ontem, novamente contando a história, incluí aquele trecho infame sobre escravidão.

“Não, papai, conta do seu jeito.”

E naquela noite fui dormir feliz, vencedor momentâneo de uma guerra contra a mídia que, desde já, sei perdida. Mas pelo menos tive uma vitória, que será contada aos meus netos e aos netos de meus netos pelos tempos que virão.

Ainda Lennon e McCartney

Bia, eu não considero Many Years From Now uma biografia autorizada: só consigo ler o livro como sua autobiografia definitiva. O livro é de McCartney; Barry Miles é só o seu ghost writer.

É um bom livro, sem dúvida. Mas é, principalmente, parte do esforço de revisionismo de McCartney em redefinir a história do Beatles.

Não que isso seja em tese ruim; acho que a imagem que ficou dos Beatles é um pouco equivocada. McCartney precisava mesmo de um pouco mais de luz porque, se eu estivesse em seu lugar, ficaria meio irritado ao ver o sujeito que disse que “avant-garde is french for shit” ser aclamado como o vanguardista dos Beatles, enquanto eu, que levava a banda adiante em boa parte de suas melhores experimentações, ficava conhecido como o conservador por excelência.

(Foi apenas depois de conhecer Yoko que Lennon aderiu à tal “vanguarda” — e um de seus grandes momentos é Self-Portrait, um filme de 18 minutos que mostra o pênis de Lennon tendo uma ereção em câmera lenta. Em retribuição, Yoko lhe tirou todo o humor.)

Mas na sua autobiografia McCartney omite, convenientemente, uma série de pequenos episódios. Como, por exemplo, que comprou ações da Northern Songs (a editora dos Beatles, que hoje pertence ao comunista Michael Jackson, aquele que come criancinhas) sem contar aos companheiros, desequilibrando as relações entre os parceiros comerciais. Que foi capaz de escrever bilhetes anônimos e racistas para Yoko Ono. Que era capaz de pequenas maldades e mesquinharias no dia a dia. Que era capaz de pisar sem dó em George Harrison. Que tentou impor seu sogro como empresário da banda (foi o que salvou a fortuna deles, mas se eu fosse um dos outros Beatles certamente não ia me sentir confortável com a perspectiva de ser empresariado pelo sogrão do sujeito). E que sempre tem uma declaração conveniente a fazer, normalmente às expensas dos ex-companheiros de banda, quando está em vésperas de sair em turnê.

A fama de McCartney como autoritário no estúdio é legendária. À medida que ele ia crescendo como compositor e produtor, isso se tornou mais óbvio, o que batia de frente com a cultura democrática da banda. O sujeito é tudo, menos bonzinho.

Que havia uma grande sinergia entre Lennon e McCartney, não resta dúvidas. Mesmo na pior fase dos Beatles, eles ainda conseguiam fazer grande música juntos (o show no terraço da Apple, em Let it Be, é a única parte empolgante de um filme mortalmente chato). Eu não sei até que ponto eram “irmãos”, como McCartney gosta de dizer agora, depois de chamá-lo de “porco manipulador”, mas certamente eram muito amigos.

Há um componente edipiano na atitude de McCartney de constante auto-afirmação em relação a um Lennon que morreu há quase um quarto de século. E isso esbarra na impressão que ele tenta passar de que era mais despojado (embora, como precise de um pouquinho mais de edge para lhe distanciar da fama de mela-calcinhas, ele sempre lembre que John também era bonzinho e ele podia ser duro).

Se eu fosse escolher apenas um para classificar como ególatra, esse seria Paul McCartney. Mas seria falso, porque ambos tinham egos descomunais. A diferença, talvez, seja o fato de que Lennon era mais preguiçoso e mais espontâneo, e certamente mais sincero.

O revisionismo de McCartney, no entanto, se torna aborrecido porque as pessoas não precisam mais ser lembradas de que ele era um músico mais completo, que ele foi o líder dos Beatles em sua melhor fase, que era mais inventivo que Lennon e que ele foi quem alcançou maior sucesso individual, que tem a carreira solo mais consistente, apesar dos altos e baixos. Cada vez mais parece um velho chato que precisa ficar lembrando que foi herói de uma guerra travada muito tempo atrás.

Lennon e McCartney

Se alguém quer saber por que John Lennon virou ícone do rock and roll e Paul McCartney entrou para a história como o grande baladeiro comercial é só prestar atenção às últimas declarações de Macca.

É uma imagem que não tem muito a ver com a realidade. A noção de Lennon como o roqueiro irredutível, agarrado a suas raízes, não sobrevive a uma olhada mais atenta a sua obra. Não é à toa que sua música mais conhecida é justamente uma balada, Imagine. Alguns discos, inclusive, têm faixas românticas até demais, como o chato Mind Games. Finalmente, quando voltou à cena musical em 1980, depois de um hiato de 5 anos, Lennon já dava indícios de ser um músico dos anos 60, que ainda não tinha se situado direito em um mundo transformado pelo punk.

Mesmo nos Beatles, a percentagem de rocks e baladas de cada um é parecida. E Lennon, um letrista indiscutivelmente superior, tem sua cota de bobagens, assim como McCartney tem sua cota de grandes letras. Enquanto isso, cada disco de McCartney tem a mesma divisão básica entre baladas e números mais rápidos que os discos de Lennon. Na fixação do arquétipo de cada um, as pessoas esqueceram que Helter Skelter — o rock mais pesado que os Beatles gravaram — foi composta por McCartney, e que Julia é uma balada de Lennon. É mais fácil caracterizar cada um de acordo com um estereótipo estanque. E nesse reducionismo McCartney, musicalmente mais ousado que Lennon, sai perdendo. Esquecem até que durante a melhor e mais experimental fase dos Beatles, a liderança da banda era claramente exercida por McCartney.

Mas Lennon tinha uma coisa que McCartney nunca teve: atitude. Lennon dizia que era roqueiro e todo mundo acreditava. McCartney se limitava a fazer grandes canções que, por serem brilhantemente simples, eram imediatamente subestimadas, e virou o Engelbert Humperdick que Lennon gostaria que ele fosse.

Essa diferença entre as atitudes de Lennon e McCartney ficou mais do que clara de 2001 para cá. Em reação à destruição do WTC, McCartney compôs uma música chamada Freedom, cujo refrão diz que “we will fight for the right to live in freedom“. É um dos momentos mais baixos de sua carreira. Enquanto Lennon provavelmente seria o primeiro a fazer oposição à invasão do Iraque, só agora, depois das fotos de Abu Ghraib, é que McCartney considera a possibilidade de aquilo ter sido uma péssima idéia. E mesmo assim hesitante, com medo de tomar uma atitude dura demais.

McCartney deu a sorte e o azar de ter sobrevivido em algumas décadas a Lennon; provavelmente não vai morrer assassinado por um fã enlouquecido, e sua aura não vai ser imediatamente mitificada. Mas ainda que sofresse todo aquele processo que faz de meros cantores ícones culturais absolutos, sem aquela verve que caracterizava seu parceiro ele continuaria eternizado como o sujeito que estava à sombra de Lennon.

O torto Arraiá do Torto

O “Arraiá do Torto”, segundo os jornais, foi custeado por “amigos da presidência”.

Espero não ser o único a me sentir desconfortável quando vejo “amigos” pagando contas do governo. Porque esses “amigos” costumam cobrar, e caro, seus favores desinteressados.

Seria menos hipócrita e mais transparente fazer com que o Governo pagasse pela festa. A festa é necessária, sim, porque todo governo precisa de relações públicas. Os opositores que acham estar prestando um serviço à nação ao forçar o governo a recorrer a “amigos” estão cometendo uma grande burrada. E assim, com hipocrisia de lado a lado, as coisas continuam tortas como sempre.

Aquelas longas noites em claro

Notícia que me interessa mais que o número de carros-bomba explodindo em Bagdá: a Matsushita está anunciando um “quarto para insones“.

Utiiliza toda a tecnologia necessária para fazer você dormir. Uma TV gigante mostra paisagens bucólicas, a cama lhe faz uma leve massagem bucólica, e ao fundo, como o BG de um comercial bucólico, há sons igualmente bucólicos de água corrente, como um riacho descendo colina abaixo (precisa dizer que a colina também é bucólica?).

Daqui a um ano, quando for lançado, o quarto vai custar cerca de 30 mil dólares.

O único problema é que parece que, ainda que eu tivesse esse dinheiro, esse quarto provavelmente não serviria em nada para mim.

O que me tira o sono não é o meu corpo ou o ambiente. O problema é a minha cabeça. E para ela não há remédio.

Estagiários

Um dia uma estudante de publicidade foi até a agência onde eu trabalhava se oferecer para um estágio.

Me mostrou um portfólio ruim. E, sem que eu lhe tivesse feito qualquer proposta, fez questão de dizer que não faria estágio não-remunerado.

Achei tão engraçado.

Não apenas porque as pessoas gastam centenas de reais por mês numa faculdade que vai lhes ensinar, muitas vezes porcamente, o básico da profissão, e só porque aprenderam uma tal de teoria das cores se acham no direito de exigir pagamento para fazer um estágio, que é basicamente apenas um curso intensivo, e muitas vezes melhor.

Mas principalmente porque essa situação gera um problema: por serem remunerados, normalmente esses estagiários acabam se tornando funcionários mal pagos. Ninguém simpatiza muito com a idéia de pagar para ensinar. E isso é ruim para todo mundo: para eles, para a agência, para o mercado.

Mas a dialética das coisas às vezes é incompreensível.

(Atenção, Nizan Guanaes: eu pago por um estágio na DDB de Londres. Topas? )

L'acqua nera del'imperialismo

Minha impressão é a de que o Terceiro Mundo sempre foi rápido em culpar o Primeiro por seus próprios problemas. Não que não haja uma grande dose de razão em tudo isso, mas nesse processo costumamos omitir as nossas próprias falhas, as nossas próprias responsabilidades. Como dizia De Gaulle, “um país é do tamanho que quer ser”.

Mas a coisa chega a um exagero insano quando chegamos a protestar contra a Santa Coca-Cola, com palavras de ordem como “Coca-Coca, além de fazer mal / É veneno produzido por multinacional”.

Há limites que não podemos ultrapassar.

Resenhas

Antigamente a maior parte dos que chegavam aqui através do Google era composta de pervertidos pessoas que tinham interesse em aspectos alternativos de sexo.

Era algo educativo, porque uma rápida leitura dos referrers me mostrava que há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã indústria pornográfica. Ultimamente, no entanto, eles têm rareado.

Não sei quem mudou; se foi este blog ou se os tarados de todo o país formam um clube pequeno e seleto, que me colocou em sua lista negra sob a rubrica “Rebate Falso”.

Em vez disso, cada vez mais pessoas vêm para cá atrás de resenhas prontas sobre livros brasileiros. Rubem Fonseca é campeão, mas Jorge Amado, pelo visto, tem seus fãs entre os professores do Ensino Médio ou entre aqueles que elaboram as provas do vestibular.

Sinceramente, eu não sei o que faz alguém procurar uma resenha pronta de um livro — ainda mais desses dois autores, de leitura fácil e normalmente apaixonante. É difícil alguém passar por Rubem Fonseca e por Jorge Amado incólume, e é uma pena que esses garotos se recusem a experimentá-los. Um bocado de gente veio atrás de “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”, uma novela curta, brilhante, que não custa ser lida. Acho até que dá menos trabalho.

Estamos criando uma geração de idiotas ignorantes, que procuram o caminho que parece mais fácil para se livrar de um ato — ler — que lhes causa progressiva ojeriza. Para isso contam com a preguiça de professores, que poderiam evitar essas cópias dando uma olhada na Internet. Se eu fosse professor, sempre que recebesse uma resenha de um aluno iria ao Google e digitava uma frase dela. Se a resenha fosse copiada, esse aluno receberia 0: -5 pela preguiça em ler e -5 pela preguiça em alterar o texto.

De vez em quando ficava me perguntando se a resenha que fiz para a Maiza Correa Mendes não tinha sido uma crueldade, embora ache que ela sequer tenha lido. Agora acho que não. Eu devia era ter enviado por e-mail. Ela ia ter uma bela surpresa na escola. E talvez a lição servisse para alguma coisa.

De como não saber cantar me faz idolatrar Billie Holiday

Tenho três grandes frustrações na vida.

Uma é não falar francês. Outra é não tocar piano. A terceira é não saber cantar.

Pelo menos em dois casos essa frustração é culpa da minha preguiça baianidade. Aprendi inglês sozinho e não demoraria um ano até entender francês o suficiente para ler Balzac no original. Mais difícil seria aprender a tocar piano, mas duvido que não conseguisse, e não acho que demorasse muito até estar tocando músicas dos Beatles ou Whole Lotta Shaking Goin’ On.

Agora, cantar é que são elas.

Não tem jeito. Não vou aprender nunca. Se me matriculasse num curso de canto talvez até conseguisse cantar um pouco afinado, mas jamais seria um cantor. E as melhoras que eu conseguiria certamente não compensariam o sofrimento que impingiria aos ouvidos da professora.

É aí que, para piorar as coisas, eu lembro de Billie Holiday.

Qualquer pessoa minimamente entendida em jazz vai lhe dizer que Ella Fitzgerald era melhor cantora, tecnicamente. Vai incluir na lista uma série de outras, como Sarah Vaughn, talvez até Peggy Lee. Mas esse sujeito, quando tocar no nome de Lady Day, vai jogar para o alto toda essa conversa de técnica e se desmanchar em declarações de amor.

(Se ele não fizer isso dê as costas e vá embora. Ele pode entender de música, mas não entende de jazz. Não entende de gente, também. Eu não duvidaria que ele saísse por aí molestando criancinhas, em obediência às vozes em sua cabeça. É uma pessoa má e doente que deveria ser internada, pelo bem da sociedade.)

Tenho uma tendência esquisita a admirar principalmente gente que faz o que quero fazer e não consigo. Admiro o baixo de Paul McCartney porque nunca tocaria como ele — mas no fundo de minha pretensão acho que conseguiria tocar como John Entwistle, e por isso não o acho essas coca-colas todas. Acho Hendrix o máximo porque ele reinventou a guitarra — e sei que com um pouco de esforço tocaria como George Harrison.

Mas o caso de Billie Holiday é ainda mais grave. Porque ela tem uma vozinha de nada. Porque não tem a técnica de Ella. Em tese, é mais fácil cantar como Billie do que como Ella.

Agora tente. Tente passar em sua voz o sofrimento que ela passa, mesclada ao mesmo tempo com uma doçura marinasilviana. Vai, tenta. Cante, com toda a verdade que você puder encontrar dentro de si mesmo, que “My man he don’t love me, he treats me oh so mean.”

Tenta. Eu espero. Eu tenho tempo.