Seara Vermelha

O Grilo vê “Seara Vermelha” de uma forma exatamente contrária à minha. Acha que o problema é o realismo socialista em si (“O problema maior é que JA escreve de modo a tentar convencer o leitor que a solução é o comunismo”).

Em termos literários, o realismo socialista nunca foi um problema. Não há nada de errado — a não ser que você jogue em cima de uma obra literária todos os seus conceitos ideológicos — em escrever um final de livro dentro desses parâmetros, como não havia no naturalismo. É só uma escola a mais, não é melhor ou pior que o realismo fantástico, ou que Chaplin e Paulette Godard terminando “Tempos Modernos” seguindo estrada afora. O realismo socialista só se transformaria em problema com o zhdanovismo.

Se esse fosse o problema de Jorge Amado, então praticamente toda a sua primeira fase seria ruim. Ele tentou convencer a todos que o comunismo era a redenção em vários outros livros, com bons resultados artísticos. Pedro Bala, líder dos Capitães da Areia, se torna líder sindicalista (mas Jorge Amado não deixa que o futuro do proletariado atrapalhe uma das mortes mais belas da literatura mundial, a de Sem Pernas). Linda, personagem de “Suor”, vira militante de distribuir panfleto na rua e levar porrada da polícia. Os exemplos são muitos.

Em todos esses casos, são transformações — ou evoluções — lógicas, conseqüentes, aceitáveis dentro de um ambiente urbano, e onde saiu praticamente todo o movimento comunista brasileiro.

Mas os problemas do sertão nordestino nunca tiveram muito a ver com o comunismo, e o próprio fato de o Ismael notar que há algum problema naquele final é um indício de que há, sim, quebra narrativa ali. Ainda que historicamente não seja exatamente um absurdo (não foram poucos os sertanejos que se tornaram militantes comunistas ao migrar para as cidades, e o personagem é uma fotografia de José Praxedes, líder da Revolução de 1935 em Natal), o resultado é mais ou menos como contar a história de uma favela a partir de um ganhador da loteria. Para utilizar uma linguagem marxista, as contradições sociais da região se manifestavam de várias formas — mas a militância comunista certamente era a menor delas. Mesmo um velho comunista como eu não consegue sentir verdade nessa situação.

Um dos defeitos desse final vem do fato de enxertar um ambiente urbano em um livro que se passou inteiro no interior do país. Até aquele momento, cada segmento se relaciona harmoniosamente com o outro, estão todos dentro de um mesmo mecanismo social; o panorama revolucionário traçado em Natal não tem absolutamente nada a ver com o resto do livro.

O outro problema é o final revolucionário, quase um corpo estranho dentro do que seria um dos mais completos painéis da realidade sertaneja. É aquele painel, e não a saga da família retirante ou a de cada irmão, que faz de “Seara Vermelha” um grande livro, ao mostrar um sertão dividido entre as principais forças existentes na época: a natureza pouco dócil, o messianismo religioso, o cangaço, um Estado ineficiente e repressor. E Jorge Amado avança pelo livro sem cair naquela armadilha que fez com tanta gente considerasse um exemplo acabado do atraso como Canudos um marco imaculado de resistência, e bandidos como Lampião heróis populares.

Se terminasse o livro ali, “Seara Vermelha” seria a “Ilusões Perdidas” da literatura brasileira.

Mas com a história do último filho o livro se apequena, recua diante da grandeza do painel que traçava e o transforma em mero pretexto para sua profissão de fé. É isso que possibilita a leitura reducionista que o Grilo faz; e é isso que faz de “Seara Vermelha” uma promessa não cumprida.

5 thoughts on “Seara Vermelha

  1. Essa história do “poderia ter sido foda” é triste, nada pior do que uma obra que se estraga no final. É a impressão que eu tenho daquele filme “Fim de Caso”, até postei algo sobre isso recentemente no Por Água Abaixo falando que o filme devia ser enfiado na bunda do diretor. Essa tua frase cabe perfeitamente: “(…)recua diante da grandeza do painel que traçava e o transforma em mero pretexto para sua profissão de fé.”

    Eu tava vendo ali uma história foda a respeito da interação destrutiva de pessoas presas a suas “trajetórias emocionais”, mas nos 10 minutos finais apareceu uma redenção forçada. Aí o filme virou um panfleto carola e me fez regurgitar todas as minhas opiniões quase-formadas a respeito dele… Foi feio.

  2. Talvez a obra já tenha nascido “não tão foda” assim como nós a imaginamos. Talvez nós que tenhamos dado a ela um status que ela não carregava; ou seja, cobramos dela algo que ela não podia oferecer, mas que pensamos que podia.

  3. Santo comunismo baiano, Batman! Ilusões Perdidas da literatura brasileira, não fosse o final?
    Quer dizer que eu não devia ter deixado o Seara Vermelha na estante de meu pai, quando roubei o Teresa Batista O capitães de Areia, o Farda, Fardão e o Jubiabá?
    Pior que saber que o livro não merecia a leitura reducionista que se fez dele é descobrir que você fez as opções erradas e perdeu a oportunidade de ler uma obra merecedora de discussão…
    Vou voltar à estante do velho; nunca é tarde. Obrigado, Galvão.
    (Belo sítio, Ricardinho).

  4. Não vejo evolução lógica nos personagens Pedro Bala e Professor pra que eles se liguem ao PC; essa ligação só é usada pra transformá-los em heróis, mas é totalmente implausível. Fosse escrito 15 anos depois(época da pavorosa Subterrâneos Da Liberdade), JA, pra exagerar ainda mais, teria transformado o trapiche em uma célula do partido. Aliás, quando Barandão assume a chefia dos Capitães e Bala orienta que eles sigam as orientações do estudante(não lembro o nome), é quase isso que acontece.

    ***

    A questão de Nenê é que a história dele é um elemento externo ao painel pintado, mas que serve como resposta e sequencia aos conflitos criados no sertão.O sertanejo na cidade é só o passo seguinte a tudo o que já aconteceu, e aí, de elemento externo, se torna parte fudamental na construção da trama. Não há motivo pra não usar isso. O problema é que JA abre mão da riqueza literária pra criar frases de efeito e diálogos doutrinários. Mas ainda assim, nada pior do que a consciência de classe de Bala ou do protagonista de Cacau.

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    Elevar Lampião ou Conselheiro à categoria de heróis é fruto de uma visão maniqueísta. Analisa-se uma oprssão histórica no Brasil, vê-se Canudos e o cangaço como uma resposta, ainda que torta, a essa opressão e pronto: “ah, não se submeteram ao que tava estabelecido, resistiram aos opressores, então são heróis!” Mas tachá-los simplesmente de bandidos, desconsiderando as condições em que surgiram, é tão maniqueísta quanto. É como chamar os palestinos de terroristas malvados e não levar em conta os conflitos que existem por lá.

    ***

    Por fim, CADÊ O IDELBA? Já que ele tocou em Seara Vermelha no comentário do outro post, quero saber, pelo menos, se a visão do Galvão contempla mesmo a dele.

  5. Grilo,

    E daí que ele tivesse transformado o trapiche de “Capitães da Areia” em célula do partido? É uma obra de ficção e presume-se que ele tenha o direito de escrever o que quiser. A obrigação que ele tem é de fazer uma obra com qualidade literária.

    O resto é conceito ideológico, é alguém se incomodar porque Jorge Amado aponta o comunismo como solução. A mim ela não incomoda, não apenas por afinidade ideológica, mas porque eu só exijo que esse processo seja bem construído. Você consegue ver e compreender o caminho traçado por Pedro Bala. O protagonista de “Cacau”, por sua vez, é um dos menos carregados, porque a consciência de classe que ele passa a ter ainda não implica, imediatamente, na adesão ao Partido Comunista.

    De qualquer forma, acho que você está errado ao dizer que Jorge Amado precisa levar Pedro Bala ao Partido para transformá-lo em herói. É o contrário: Pedro Bala é um herói e por isso é “abduzido”.

    Nenê (eu já nem lembrava do nome do desgraçado) não serve de resposta a nada. Jorge Amado está fazendo ali a crônica da Revolução de 1935, e o problema é que isso não tem nada a ver com o resto do livro. Foi um movimento, para começar, urbano. Usou Natal porque foi o único lugar onde tomaram o poder, por alguns dias. Não tem nada a ver com a questão sertaneja. É esse o problema, que venho apontando há tempos: é a quebra da unidade narrativa. Aliás, foi por isso que começou essa discussão, não por causa do realismo socialista em si. Você não via quebra narrativa ali. Mas já melhoramos, porque você já admite que “a história dele é um elemento externo ao painel pintado”.

    Quanto a Lampião, respondo depois em um post.

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