Wonka

Mês passado fui assistir a “Charlie e a Fantástica Fábrica de Chocolates”.

Os primeiros 15 minutos do filme são excelentes. A cenografia, típica dos filmes de Burton, é muito boa, e chega a lembrar “Edward Mãos de Tesoura” (a cena de Wonka com a tesoura certamente é uma referência). A casa inclinada da família Bucket também é uma grande sacada — provavelmente a segunda melhor do filme. Finalmente, a idéia de usar o mesmo ator como todos os Oompa Loompas é absolutamente genial.

Mas — e tudo o que a gente diz antes de um “mas” não importa — aqui acabam os méritos desse filme.

Seus valores de produção são, claro, muito superiores aos do filme original, feitos há quase 35 anos. A direção de arte é perfeita. Mas isso não é suficiente para compensar uma série de deficiências do filme, algumas visíveis por si sós, outras claras em comparação ao original.

Talvez a maior ironia do filme tenha sido o tratamento dado a Charlie Bucket. O filme original se chamava Willy Wonka and the Chocolate Factory; o novo se chama troca o nome de Wonka pelo de Charlie — mas neste filme o personagem perde importância, sua passagem pela fábrica é insignificante. O processo que leva Charlie à fábrica é contado mais rapidamente, e com isso perdemos muito da compreensão do personagem. Essa é a tônica durante todo o filme: Charlie é apenas um transeunte em um filme que não é mais o seu.

E então aparece Willy Wonka.

Há mais de um ano eu me perguntava o que iam fazer com um filme que, afinal, foi adorado por crianças durante mais de três décadas. Meu medo era o de que fizessem de Willy Wonka um louco óbvio. Porque por melhor ator que seja Johnny Depp, não há ninguém capaz de interpretar com a sutileza necessária as mais variadas nuances de loucura como Gene Wilder. Se alguém tem dúvida, assista a “Tudo o Que Você Queria Saber Sobre Sexo Mas Não Tinha a Quem Perguntar”, de Woody Allen.

Mas eu não precisava ter medo. Burton e Depp não fizeram de Wonka um louco óbvio. Fizeram dele um imbecil.

O novo Willy Wonka é um sujeito com a cara do Steven Tyler sob muita maquiagem e a psique do Michael Jackson em Neverland Ranch. É de se perguntar como um idiota daqueles conseguiu construir um império. Porque aquele sujeito perturbado, incapaz de pronunciar a palavra “pai”, no mundo real só poderia almejar a uma cela acolchoada. Willy Wonka é, talvez, a maior decepção do filme, embora não pelos motivos que eu esperava.

Decepcionante também é a trilha sonora. Danny Elfman está se tornando uma espécie de John Williams: todas as suas trilhas são basicamente variações de uma só. E assim como eu costumo confundir os temas de Superman, Indiana Jones e Star Wars, para mim todas as trilhas de Elfman são a mesma coisa.

Curiosamente, é nas canções que ele deixa o bastão cair de verdade, contrariando a expectativa do sempre generoso Bia Jones, que lembrou o histórico pop do sujeito. Quem viu o original certamente lembra da Oompa Loompa Song. Mas as novas canções, embora mais bem elaboradas, perderam todo o apelo. Ninguém se lembra delas assim que sai do cinema.

Segundo suas próprias declarações, John August, roteirista da nova versão, nunca tinha assistido ao filme original. Depois de terminar o roteiro assistiu — e ficou surpreso ao ver o quanto o filme original era mais “sombrio” em relação ao seu. Mesmo com acréscimos desnecessários, como a infância de Wonka, o original continuava assustando mais.

Mas eu não diria que ele é mais sombrio. Eu diria que o filme original é mais denso, apenas, e melhor construído. É um filme, não um passeio vazio por uma fábrica surreal. A versão de Burton perdeu densidade psicológica, e mesmo o roteiro acrescentou falhas sem tirar as do filme original. O pai de Charlie Buckett, por exemplo — afinal, o que ele faz no filme, além de tirar parte da justificativa para a miséria em que a família vive? E o avô de Charlie — na hora que vê o ingresso salta da cama e começa a dançar uma espécie de hornpipe; quer dizer que o entrevado estava só fingindo, dividindo uma cama com mais 3 macróbios e se contentando com sopa de repolho? Seu personagem não tem um décimo do carisma do original, e com isso o filme perde muito.

Em hipótese alguma o acréscimo do pai de Charlie à história poderia compensar a retirada do sr. Slugworth. No filme original, a proposta escusa de Slugworth é o que faz, em última análise, Charlie herdar a fábrica: é a honestidade de Charlie apesar de todas as adversidades que o faz superar todos os outros, não sua mera sobrevivência ao passeio.

Nesta versão, no entanto, tudo o que aquele pobre coitado (interpretado galhardamente por Freddie Highmore) tem que fazer é ficar quieto e não ser uma menina rica mimada, um glutão com sérios problemas de obesidade infantil para compensar sua vida germânica vazia, um vidiota que não consegue canalizar sua agressividade para algo útil ou uma menina hiper-competitiva que só pode almejar na vida uns 3 campeonatos e 10 anos de análise xingando sua mãe a 100 dólares por sessão. Basta não fazer nada, e não ser eliminado naquele “No Limite Para Hipoglicêmicos”. Só isso. Não há lição a ser aprendida aí, a não ser o contrário do que se pretendia no original: seja atrozmente medíocre e vossa será a Fantástica Fábrica de Chocolates.

Da superioridade filosófica dos baianos

Todo dia eu acompanho o blog da Lucia Malla. Dia desses li a entrevista que ela fez com o montanhista Waldemar Niclevicz, brasileiro que chegou ao cume do Everest.

Eu acho lindo que as pessoas façam isso. Não chego a vibrar como a Lu por cada alpinista que chega ao cume de alguma coisa, por cada sujeito que vence suas próprias limitações e chega ao teto do mundo. Mas reconheço a vitória humana nessas conquistas.

O problema é que apesar disso eu e a Lu temos sérias divergências filosóficas. Que podem ser exemplificadas em uma constatação muito simples.

Ninguém jamais ouviu falar de um baiano que tenha escalado o Everest.

Porque o Everest é a antítese da baianidade. O que a gente iria fazer ali? A idéia nos é inconcebível. Um lugar com sol, mas com um vento tão desgraçado que não dá para aproveitar. Um pedregulho sem praia. Um frio daqueles que lhe corta os ossos e arranca seus dedos. É um frio que arrebenta seus lábios, e nós baianos achamos que lábios devem estar sempre prontos para beijar.

A gente gosta é de brisa, não de ventos de 150 km/h. E por que subir aquele morro, se seria impossível plantar ali dois coqueiros para armar uma rede e tomar água de coco?

Um demente respondeu, quando lhe perguntaram por que escalar o Everest: “Porque ele está lá”. Sir George Mallory, claro, não era baiano. Era inglês e tinha aquela fleuma esnobe meio destacada da realidade prática. Porque, se Sir Mallory fosse baiano, responderia: “Então deixe o bichinho em paz, que ele não tá incomodando ninguém…”

Mas, como eu disse, Sir Mallory não era baiano, e se fosse não seria sir nem Mallory; seria Jorginho, filho de Oxóssi e chegado nas delícias, nos meneios e nos cafunés de uma cabo verde; e saberia que tudo isso é tão efêmero quanto subir um morro anabolizado, mas há efêmeros e efêmeros, e o efêmero do esforço sem sentido não é tão bom quanto o efêmero das coisas boas da vida.

Volta, vem viver outra vez ao meu lado

Acabaram-se as reprises. Agora só no ano que vem.

Quando este post for publicado eu estarei no Rio. Na verdade, no exato momento em que este post vier à tona eu deverei estar no Amarelinho, contando mentiras, aprendendo com o Mauro, escondendo meu pé do Alex, discutindo com o Quacre Punk, um filho da mãe que nunca concorda comigo, declarando meu amor eterno à Tata e tentando passar a mão na bunda da Ninfeta do Demônio — se a desgraçada não der o cano, coisa que ela costuma fazer.

Também espero que o XXX BBB — Trigésimo Batalhão de Balzacas Bufantes — não resolva me encher de porrada justamente em um momento de alegria e confraternização, ou que os Astrólogos de Maria resolver realizar um tribunal de inquisição, ou que os amantes de animais nao joguem tinta na minha cara, ou… Ah, esquece.

Durante as férias eu fiz algumas mudanças no blog. Agora o index.rdf contém posts completos, também. E há um novo feed, apenas para os comentários.

Comédia vocabular

Palavras são como pessoas. Algumas têm origem nobre e acabam na lama; outras, vindas do nada, conquistam sua ascensão lentamente, pela persistência e pela determinação.

Como acontece às pessoas, é tão fácil esquecer suas origens. É fácil, por exemplo, esquecer que esculhambação, palavra se não nobre com livre trânsito no Country, é aquilo que sai dos colhões. Das alcovas, de contratos escusos feitos em casas de má fama, a palavra conseguiu limpar sua origem e adentrou os salões graças ao seu talento pessoal, à sua sonoridade, ao seu aplomb.

Enquanto isso sua irmã, coitada, desenxabida e sem tantas graças, continua desprezada. A porra continua aí, pelos cantos. Mas se não tem brilho tem vontade férrea, velha maquiavélica e calculista que veste minissaia e continua a beijar a boca dos meninos ansiosos por se tornarem homens. A porra sabe que seu dia chegará, e então poderá beijar livremente, e mesmo recusar pretendentes com coquetismo e brejeirice de menina.

É com essa porra que a porrada tenta negar qualquer parentesco, explicando sempre que sua origem está em uma velha clava com ponta redonda e reforço de ferro; e assim a porrada tenta mistificar a todos, tenta se dar uma origem nobre que não tem porque sua família vem do mesmo degredado que engendrou a porra, o alho-porro. Mulata de gingado macio e navalha escondida nas dobras do vestido, a porrada bem que preferia poder dizer que de alguma forma é gêmea da esculhambação, com quem sente ter muitas afinidades, mas sabe que suas mães são diferentes.

Algumas palavras levam a vida imutável do interior, debruçadas na janela, vendo a vida passar com a tranqüilidade de quem se sabe permanente. Xibiu (ou xibio, na versão que começa a ser dicionarizada) é provavelmente uma palavra índia, dos tempos heróicos dos bandeirantes, e ainda hoje dá nome às mesmas duas coisas: um diamante pequeno e “a vulva”, como sempre dizem os dicionários; vulva, para quem não sabe, é o pseudônimo da boceta. Tão belo substantivo, amado ainda nas ladeiras da cidade da Bahia, ciosa de suas origens e de sua cultura — substantivo que no fundo continua a significar a mesma coisa, porque um e outra têm o mesmo valor para alguns.

Sorte diversa teve o viado perdido em lembranças de tempos de respeitabilidade, em que era apenas um tecido de lã riscado. Ainda hoje tenta salvar o que acha ser a tradição honrada de sua história dos amantes que conquistaram o direito de ousar dizer seu nome. O viado pertence a outros tempos, tempos de uma elegância e hipocrisia que a vida moderna destruiu, e ainda não percebeu que eles só continuam a existir em sua memória.

Ou aquele caralho — caralhete, se pequeno, tímido e envergonhado diante do xibiu glorioso lavando roupa nas águas escuras da Lagoa do Abaeté — nascido como estaca, palavra de bem, que se majestade não tinha podia ostentar a honra do trabalho duro, e que agora se esconde em cuecas sob as calças, reticente em se mostrar como velha senhora de beleza esvaecida, escondida em seu quarto escuro para que ninguém veja a ruína corrugada em que o tempo a transformou.

A vida das palavras traz histórias tristes como a da puta e sua trajetória de decadência e humilhação. Em terras d’El Rei era apenas uma menina de venerável família romana, mas ao transpor o Equador em busca de vida nova seguiu caminhos tortuosos de degradação. Hoje a puta está lá, nas praças, nos bordéis, seu rosto antes infantil agora maculado pela maquiagem excessiva; ela já não se lembra de tempos diferentes e doces em que era inocente e pueril.

Palavras são como pessoas, e dicionaristas são meros recenseadores de estreitos horizontes; para contar a sua história é preciso um Balzac que invente todo um mundo em que se conte a saga de cada uma delas e sua convivência umas com as outras. Palavras, como pessoas, só existem dentro de sua sociedade, com suas grandezas e suas mesquinharias. Um dia alguém ainda vai escrever a Comédia Humana das palavras, a história de sua ascensão e de sua queda.

Originalmente publicado em 23 de abril de 2004.

Contos de fadas, reloaded

Alguém veio parar aqui procurando pela combinação de palavras Chapeuzinho Vermelho e canibalismo.

É um ângulo interessante sob o qual olhar a história, mas o canibalismo que me vem à cabeça é outro.

Para mim (e para o Neil Jordan, que fez um filme inteiro sobre isso), as entrelinhas dizem respeito à sexualidade, e não a hábitos alimentares lecterianos.

Descobrir as delícias do sexo extra-marital — e os horrores da condenação social — é o que acontece a quem não ouve os conselhos de sua mãe. Cabe à Chapeuzinho não repetir o erro da vovó, enganada por lobo semelhante em sua juventude. Lobos são uns cafajestes. Pedem, prometem tudo, até amor.

Mas isso importa pouco. Talvez seja uma teimosia burra, mas por várias razões tento não deixar que o que acho hoje sobre essas histórias atrapalhe a visão mágica que já tive deles.

Eu já sei que Rapunzel é a vítima alegre de uma velha lésbica, que resolveu trancar a pobrezinha numa torre para poder desfrutar sozinha de seus encantos sáficos. Rapunzel, no entanto, se encantou com a beleza fálica do príncipe e renegou a pobre bruxa, que estava velha e desdentada (mulheres desdentadas, como se sabe, são mais adequadas à felação que à cunilíngua). Coladoras de velcro, desde que não masculinizadas, podem e devem ser recuperadas.

Sei que “Para Não Ser Triste” (Quero ver você não chorar, não olhar pra trás…) é a melô do sexo anal.

Que os Três Porquinhos são uma maneira simples de incutir nas crianças a ética protestante do trabalho.

Sei que a Dona Baratinha mostra que mulher que escolhe muito acaba no caritó, que não tem o direito de querer algo melhor do que ela, deve se contentar com o pouco que se lhe oferece.

Que o Gato de Botas, além de uma lição de alpinismo social, ensina que para subir na vida o importante é mentir e ser esperto, porque isto aqui é uma eterna luta de classes e os ricos são o inimigo a ser vencido, ao mesmo tempo que o prêmio a ser conquistado.

Sei também que Cinderela é a prova de que, se você for uma pessoa humílima e comer o pão que o diabo amassou, um dia Deus se apieda e lhe manda uma fada madrinha para fazer com que você deixe de morder beira de penico dizendo que é biscoito. Recomenda-se apenas que você seja bonita, porque Deus não tem dó das feias.

E que a Bela e a Fera mostram que, mesmo que você tenha um pai covarde, egoísta e venal, é melhor aceitar o casamento por interesse que ele te arranja com um homem detestável, porque embaixo daquela máscara de grosseria e maus modos pode haver o doce consolo de uma alma nobre ou, sendo mais realista, um sujeito que que sustente você e o vagabundo do seu pai.

É, eu já sei de todos esses detalhes. O mundo, no entanto, não fica melhor por isso.

Fica combinado assim: Chapeuzinho Vermelho, et nunc et semper, é só a história de uma menina que mora na fímbria da floresta e que, certo dia, vai levar uma cesta de doces para a vovozinha.

Cena baiana

Salvador, conversando com um amigo num boteco.

— Rafael, tem uma festa de 15 anos ali no Cabula pra gente ir. Vamos?

Vamos. Entramos na festa lotada e Waltinho pergunta:

— Como é o nome da aniversariante?

— Adriana.

De repente, algo me diz que não fomos convidados para a festa.

Mais uns passos e Waltinho comenta com alguém que passa:

— A Adriana está linda, né?

Vejo duas mulheres e me afasto de Waltinho. Começo a conversar com elas, falo umas gracinhas. Uma delas já está na mira. Elas são amicíssimas da aniversariante, cujo ar da graça até agora não vimos.

— Você conhece a Adriana?

— Não.

— Você veio com quem?

— Com Waltinho.

— Quem é Waltinho? E quem convidou ele?

— Ninguém. Ele entrou de penetra.

— Quer dizer que você é penetra?

— Não, sou convidado. O Waltinho me convidou.

E a conversa continua, elas me chamam de descarado enquanto riem, aquela moça olha diferente para mim, até mesmo sou apresentado à Adriana — que não estava tão bonita assim.

Algumas horas depois, eu sentado numa escada esquecido da festa, me aplicando em descobrir mais detalhes da anatomia da moça, e Waltinho aparece com dois copos de uísque na mão. Nada demais, se todos ali não estivessem bebendo cerveja.

10 anos se passaram, e ainda continuo convicto de que nunca dois penetras foram tão bem tratados em festa alguma.

Originalmente publicado em 3 de julho de 2004.

A mais doce profissão que um homem pode ter

Gigolôs estão entre os profissionais que mais admiro.

Jorge Amado dizia que essa era a mais doce profissão do mundo; dizia isso em seu baianês leve, com a ética diversa que faz parte do espírito da Bahia. Uma definição comum, mas mais cínica, é a de que um gigolô é um sujeito pago para fazer o que qualquer idiota faz de graça.

Dizer que a melhor coisa que você faz é sexo não é como dizer que escreve ou elabora e destrincha fórmulas matemáticas complexas. Porque tudo isso é algo restrito, faz parte das habilidades de pequenos grupos, é a própria razão da diversidade humana.

Se alguém diz que pinta melhor do que você, sua resposta pode ser um simples dar de ombros, porque isso lhe importa pouco ou nada. Você nunca pegou em um pincel na vida e isso não significa que ele é melhor que você — você duvida, por exemplo, que ele seja melhor jogador de basquete, e se o Michael Jordan disser que é melhor você pode dizer que entende mais de marcenaria. A vida é um infinito sistema de compensações, e então ficam elas por elas, e os egos de cada um se satisfazem plenamente.

Mas um gigolô, não. Ele faz o que todo mundo faz. E faz melhor. É um conceito absoluto, completo. Se tal sujeito é melhor de cama do que você, ele está se referindo àquilo que você faz com dedicação e abandono, está entrando no seu campo, está lhe vencendo no seu próprio jogo. E você não pode recorrer ao consolo do despeito e da negação, porque as provas estalam em sua cara. É assim que ele ganha a vida. Ele é bom o suficiente para que lhe paguem para fazer, com mais talento, mais sensibilidade, aquilo que você também faz e que constitui uma das partes fundamentais da sua vida. Ele está dizendo que, enquanto você se limita a nascer, crescer, reproduzir e morrer, ele dominou a a técnica do supérfluo e elevou o ato da reprodução ao nível de arte, e superou a mera humanidade.

Você é apenas espasmos, gemidos e suor. Ele é transcendência. Onde você é tosco, irremediavelmente tosco, ele é um artista. E, sim, se alguém pode dizer que é melhor que você, esse alguém é um gigolô.

Originalmente publicado em 28 de maio de 2004.

Belle Époque

Cartaz francêsEste cartaz francês para uma marca de absinto, do início do século passado, é de uma crueldade absurda.

É como se o artista, morando numa mansarda em Montparnasse, revoltado por finalmente perceber que seus quadros nunca venderão e que como ilustrador ele jamais chegará aos ombros de um Toulouse-Lautrec, tivesse decidido demonstrar todo o seu desprezo à burguesia na sua encomenda. E com que prazer ele deve ter conseguido convencer aquele comerciante abrutalhado de que essa peça era sensual e lhe traria lucros estupendos. Com o dinheiro no bolso, dirigindo-se à casa de ópio, ele deve ter se sentido reconfortado por sua pequena vingança.

O honrado e elegante senhor parece estar dizendo com o olhar coisas indizíveis à moça que bebe com circunspecção e recato. Espera sua presa com uma calma antecipatória do prêmio. E traduz o lado obscuro da Belle Époque — ou talvez o mais brilhante deles.

Originalmente publicado em 10 de maio de 2004.