McCartney III

Sempre que Paul McCartney lança um disco, é inevitável que as pessoas se façam uma pergunta: será que é o último? Aos 78 anos, ele lançou hoje McCartney III, em que, como nos álbuns com títulos semelhantes lançados em 1970 e 1980, toca todos os instrumentos.

Se for o último, McCartney pode bater as botas tranquilo: é o melhor álbum do velho sir em um bom tempo. Melhor certamente que New, de 2013, e na minha opinião melhor que o Egypt Station, de dois anos atrás. E é melhor principalmente por uma razão simples: a simplicidade.

Os últimos discos de McCartney parecem assolados pela praga da superprodução. Esse sempre foi um defeito seu, é verdade. Mas nos anos 2010 ele parece ter sido elevado à vigésima sétima potência. Em New, em que a maioria das canções é pouco inspirada, McCartney tentava obter uma sonoridade moderna que lhe soa estranha. Em Egypt Station, um número maior de boas canções às vezes patinava na necessidade de ser moderno, no excesso de sons. Daí porque a simplicidade de McCartney III é tão bem vinda.

Talvez isso se deva ao fato de que o disco, não planejado, é um produto das circunstâncias, daquilo que Macca aqui chama de rockdown, num trocadalho do carilho que quase se pode tolerar. A consciência da pandemia, a angústia existencial que tomou conta da humanidade, os dilemas que todos têm que enfrentar no conflito entre ganhar a vida e não morrer, tudo se reflete no álbum.

Como seus antecessores, McCartney III não foge à sonoridade da música pop inglesa atual. Talvez nem pudesse. Mas desta vez Paul parece estar no controle, o que parece lhe permitir adotar a abordagem mais simples em muitos anos e ressaltar a qualidade (ou não) de cada canção. Em seus melhores momentos, traz canções curtas que funcionam muito bem. Em seus piores, traz o velho McCartney que não sabe a hora de parar.

A crítica tem saudado o experimentalismo do disco. É possível ver isso em algumas canções, mas é exagero. Talvez mais acertado seja chamar o disco de simples, contido, e muito bom.

Faixa por faixa:

Long Tailed Winter Bird é um instrumental construído sobre um riff de violão com traços indianos que deriva para um típico groove “mccartneyano”, e serve admiravelmente como introdução ao disco. É provavelmente a música que define o clima do disco como “experimental”, e é surpreendentemente boa. Traz ecos também do primeiro disco do Fireman.

Find My Way é uma bela canção pop que poderia ter sido composta nos anos 80. Simples, direta, agradável como pouca coisa que McCartney fez nos últimos anos. Dela McCartney tirou o primeiro clip.

Pretty Boys fala sobre a relação de fotógrafos e seus fotografados, aparentemente sobre suas sessões como beatle; se você não sabe disso, no entanto, provavelmente achará que é sobre michês. Como provavelmente a pessoa mais fotografada na história da humanidade, McCartney parece ter uma relação ambígua em relação a isso, e o seu lado negativo está explícito aqui. É uma balada que lembra muito as que ele vem soltando ultimamente, mas a instrumentação mais esparsa, contida, ajuda a lhe dar uma beleza que muitas vezes falta em suas similares.

Women and Wives é uma balada em que McCartney abusa de acordes que se tornaram comuns nos seus últimos discos e um piano que parece saído de Chaos and Creation in the Backyard para filosofar sobre o sentido do casamento, suando um moralismo familiar que eventualmente marca sua obra e, eventualmente, o aproxima de George Harrison.

Lavatory Lil é um ataque de McCartney a alguém que lhe sacaneou — e é impossível não achar que ela é dirigida à sua ex-mulher, a perneta que lhe passou uma rasteira memorável. Lembrando muito um blues inglês dos anos 60, é uma das melhores canções do disco, com uma das letras mais diretas e bem construídas. Uma espécie de Poison Ivy com mais veneno, mais raiva e um bom riff copiado de John Lee Hooker. É a melhor canção do disco, a mais espontânea, a mais vibrante, e que serve para lembrar que McCartney, quando quer, é um grande roqueiro à moda antiga.

Deep Deep Feeling é aparentemente uma tentativa de traduzir a angústia de viver sob o lockdown. Deve ser por isso que dura intermináveis oito minutos. Se você olhar por este prisma, a canção cresce e adquire um significado maior. Se não, vai achá-la apenas excessiva, longa demais, com bons elementos aqui e ali. Uma canção que poderia ser boa se fosse editada com cuidado, mas que ainda soa melhor do que soaria se fosse tocada apenas no violão. É também a mais claramente experimental.

Slidin’ seria melhor se fosse uma homenagem à heroína, mas parece ser sobre paraquedismo — ou sobre um urubu, ou uma muriçoca, sei lá. Bom rock, talvez um pouco excessivo — não à toa tem a participação de Greg Kurstin na produção —, mas longe ser uma das piores canções do disco.

The Kiss of Venus vem num tom em que McCartney não pode mais cantar, mas ele insiste. Não muito inspirada, traz uma letra barroca que, diz o autor, é filosófica e profunda. Na verdade é um monte de bobagem enfileirada para parecer fazer algum sentido. Truque velho, que às vezes funciona, mas não aqui.

Seize the Day é uma boa canção, evocando um pouco da criatividade melódica de McCartney. Em alguns momentos ela ameaça crescer e desabrochar, mas para logo com essa frescura e volta a ser a musiquinha menor que é.

Deep Down é talvez a música mais chata do álbum. Basicamente um trecho artificialmente estendido muito além do razoável em estúdio, uma espécie de jam session do eu sozinho. Muita gente, no entanto, vê nela o ponto alto do disco. Tem gente para tudo nesse mundo.

Winter Bird/When Winter Comes é a música perfeita para encerrar o disco: uma típica balada ao violão de McCartney, um lembrete de que nesse estilo ele sempre foi insuperável. Gravada há mais de 30 anos, numa sessão em que George Martin estava presente, ela traz um McCartney com uma voz muito mais jovem, mas já um cinquentão relembrando dos tempos em que saiu dos Beatles e morava numa fazenda na Escócia.

O resultado é isso: o melhor disco de McCartney nesta década.

Que um homem de quase 80 anos consiga fazer um disco como esse é um milagre inexplicável. Independente de sua qualidade, McCartney III já cumpre um papel importante, agregar mais um elemento à lenda de Paul McCartney, definitivamente o maior nome da música popular de todos os tempos. É esse aspecto maior que a vida, o fato de ser um tijolo não importa se grande ou pequeno numa obra monumental, que é visto antes de qualquer outra coisa em um novo disco de McCartney. Não poderia ser diferente.

Propaganda de cigarros

Uns anos atrás, em São Paulo, fui comprar um maço de Free e me entregaram uma caixinha azul, de Kent. “Moça, eu pedi Free. Isso é Kent, eu nem sabia que ele tinha sido relançado.” A moça me disse que aquele era o cigarro que tinha ficado no lugar do Free.

Foi estranho, mas tudo bem. Ao longo da minha vida, vi marcas e marcas de cigarros surgirem e desaparecerem. Continental, Minister, Belmont, Arizona.

Até a marca Carlton tinha desparecido. Algum tempo antes pegaram uma das marcas mais tradicionais do mercado, o cigarro que fumo há décadas, e trocaram seu nome para Dunhill, uma marca popular lá nos estrangeiros mas absolutamente desconhecida aqui. Mantiveram a identidade visual antiga, ao contrário do que fizeram com o Free; mas o Carlton, mesmo, aquele raro prazer, acabou.

O que eu nunca tinha visto era uma marca ser diretamente substituída por outra, assim, na cara dura. E o problema é que eu não entendo essas mudanças.

Entenderia em outros tempos. Como subsidiária da British American Tobacco, faria sentido à Souza Cruz unificar suas marcas globalmente. Uma grande campanha aclimataria o consumidor à nova marca, agora encontrável em virtualmente todo o mundo civilizado, e no longo prazo ela economizaria em posicionamento de marketing, provavelmente também em propaganda.

Mas desde o século passado a publicidade de cigarros é proibida nestas plagas. A única explicação que consigo encontrar é que eles decidiram que este é um mundo globalizado e que vai ficar mais fácil para um brasileiro em Berlim comprar a mesma marca de cigarros que compra em Chorrochó. Dunhill aqui, em Roma, em Londres.

O único problema dessa explicação é que a conta não bate. O custo da mudança da marca, mesmo que os cigarros permaneçam os mesmos, não faz sentido para mim. O volume de fumantes brasileiros que viajam regularmente é muito pequeno para fazer valer a pena o investimento industrial feito nessa mudança. E o número de viajantes que não levam alguns pacotes do seu cigarro nas malas é próximo a zero. Ao mesmo tempo, quero crer que homens de marketing regiamente pagos não fariam uma coisa aparentemente sem sentido como essa sem pelo menos uma justificativa, por equivocada que venha a se mostrar depois.

Mas para mim é difícil entender essa mudança. Ainda hoje, muitas pessoas vão atrás do Free, como eu ainda peço Carlton. Me lembra aquelas mercearias parisienses que, quase vinte anos depois do fim de sua moeda nacional, ainda exibem placas com os preços de suas mercadorias em francos. Kent, para elas, é a penas o Free disfarçado. Não justifica a mudança.

***

Isso me lembra que houve um tempo em que a propaganda de cigarros podia ser brilhante.

Tenho a impressão de que a maior parte das pessoas com menos de 40 anos repete a expressão “Lei de Gérson” sem fazer a mínima ideia de que ela nasceu de um comercial de cigarros Vila Rica, em que Gérson dizia “O negócio é levar vantagem, certo?” Ou, se ainda lembram do “fino que satisfaz”, não lembram que era assim que Pedrinho Aguinaga, “o homem mais bonito do Brasil”, descrevia o Chanceller.

A campanha de lançamento do Plaza ainda é um exemplo de excelente propaganda conceitual, de uma sutileza que não se usa mais. Carlton, por sua vez, era sinônimo de elegância, de requinte e sofisticação, e sua propaganda, feita pelo Zaragoza, estava à altura. Um raro prazer.

Mas em termos de sucesso popular acho que nada se compara aos comerciais de Hollywood. Músicas de sucesso embalando imagens de jovens praticando esportes diferentes e caros, como se ainda tivessem pulmão para isso depois de fumar dois maços do bom e velho “Ao Sucesso”. Ainda hoje se encontra, no YouTube, coletâneas desses comerciais, cobrindo décadas.

E tem a campanha do próprio Free. Eu lembro do seu lançamento. Na época, estava na moda uma tal de “propaganda comportamental”, lançada nestas plagas em comerciais antológicos da Calvin Klein pela então Fischer,Justus. “Cada um na sua, mas com alguma coisa em comum” era um conceito absolutamente brilhante para um produto que buscava um público mais jovem, nos bons anos 80.

Mas isso faz parte de um passado quase tão distante quanto o cartaz do Rhum Creosotado que recebia o sujeito que acabava de pagar a passagem do bonde:

Não dá para questionar a proibição da propaganda de cigarros. O único argumento possível é o de que, se algo pode ser legalmente consumido, deveria poder ser anunciado, e as pessoas deveriam ter o direito de poder escolher. O argumento não se sustenta muito bem diante dos dados e necessidades da saúde pública, mas é válido. Velhos como eu só veem um problema nisso: para quem gosta de propaganda, o fim dos comerciais de cigarros tornou os intervalos na TV um pouco mais pobres.

Sobre música datada

Serge pergunta:

Qualquer sucesso dos Beatles parece uma música que poderia ter sido composta ontem, ou seja, não é datada, enquanto quando ouvimos os sucessos do Elvis, é sempre bom, mas parece coisa do passado. As da década de setenta, paradoxalmente, estão ainda mais datadas que as da década de cinquenta. A que voce acha que se deve isso?

A resposta é simples, e está contida no post anterior.

Porque os Beatles codificaram essa linguagem musical, como Napoleão fez com o Código Civil francês.

Não acho que isso se deva unicamente à sua qualidade intrínseca. Independente dela, essa codificação se deve principalmente a uma convenção, à conjunção perfeita entre os astros. O mundo decidiu, em algum momento, que os Beatles eram o padrão musical a ser seguido, o marco inicial da música que se faria depois.

Eles pegaram aquela música gestada em campos de algodão e acrescentaram a ela a tradição de séculos da música popular europeia, de Bach (que está na base da progressão de acordes de Blackbird, por exemplo) ao vaudeville inglês. Esse talvez seja o seu grande diferencial musical.

Toda a música pop ocidental deriva daí. Talvez não haja comparação possível, por exemplo, entre o Led Zeppelin e os Beatles. Mas o que o Zep, ou qualquer outra banda, fazia tinha no horizonte a música que os Beatles estavam fazendo ou fizeram antes. Podia ser vista como um ponto de partida, um ponto a ser evitado, ou alvo de um esforço deliberado para ignorar, podia ser qualquer coisa: mas era impossível não reconhecer a sombra massiva dos quatro cabeludos de Liverpool.

É a mesma razão pela qual as músicas de Elvis the Pelvis soam menos datadas hoje do que as de Elvis the Putz. Em 1956, Elvis definiu o padrão comercial daquela música que vinha sendo gestada por uma infinidade de artistas, ao miscigenar definitivamente o rhythm and blues e o country and western. Os Beatles não existiriam, literal ou figurativamente, sem Elvis. Em 1972, Elvis já não tinha nenhuma relevância musical havia mais de uma década, e sua música não trazia absolutamente nada de novo. Claro que no período que se seguiu à sua volta da Alemanha Elvis apresentou algumas belas canções, como Suspicious Minds — mas agora havia uma diferença crucial, ele tinha deixado marcar o passo da caminhada, e todas elas, sem nenhuma exceção, vinham a reboque do som que que se fazia na época.

É também a razão pela qual o Kind of Blue, de Miles Davis, parece ter sido lançado ontem (e o Bitches Brew, não).

No caso dos Fab Four, há outros elementos. Em primeiro lugar, os Beatles tinham uma dupla de compositores excepcional. Não apenas pela genialidade musical, mas pela sua dedicação e habilidade como artesãos.

Lennon e McCartney tinham ojeriza ao clichê musical. Estavam sempre em busca de algo novo, diferente. E mesmo quando usavam sequências conhecidas de acordes, algo difícil de evitar dentro da linguagem musical do rock, faziam isso sob uma melodia que trazia algo de permanente e inovador.

A primazia da canção ajudava. Diferente de outras bandas, em que as canções costumam se ajustar ou ser reflexo claro das características de seus integrantes, nos Beatles acontecia o contrário. Eles davam a cada canção o que ela precisava — Yesterday não precisa de nada mais que violão e um quarteto de cordas? Vão ali tomar um chá, John, George e Ringo. Cada canção era maior que a banda.

Sempre defendi que a música dos Beatles é revolucionária desde o início. Mas outras bandas inovadoras se acomodaram com o primeiro impacto, com o seu próprio jeito de fazer música, e nunca passaram disso — provavelmente porque isso era tudo o que tinham, e não é pouco. Ao contrário, os Beatles estavam constantemente tentando evoluir, ir além do que já tinham conseguido. No fundo, eles competiam com eles mesmos.

E é bom não esquecer que a maior banda de todos os tempos era, antes de tudo, um grande conjunto. Eram todos grandes instrumentistas, sem exceção. Alcançaram um nível de interação e harmonia musical entre seus membros sem paralelo em sua geração. Ficava mais fácil fazer da contribuição de cada membro algo individual, claro, mas também em perfeita harmonia com as outras.

Se alguém parar para ouvir Don’t Bother Me, a primeira composição de George Harrison a ser gravada pela banda, vai perceber isso claramente. A estrutura da canção obedece a um padrão simples, descendo de Bm a Em. Mas é no refrão que ela registra o tempo exato de sua composição: não pode haver nada mais Swinging London do que a sequência de Em e A tocada na guitarra — não, é mentira, aquele C e Em de Goldfinger é ainda mais típico. E no entanto, a maneira como a banda toca a música (principalmente o baixo fantástico de McCartney) dá a ela uma dimensão que, sendo outros a tocarem-na, ela jamais poderia alcançar. Os ex-beatles, sem exceção, se ressentiriam da ausência dessa interação durante todas as suas carreiras solo.

A produção também é outro fator importante. Os Beatles tiveram a sorte de cair nas mãos de um grande produtor (e de um excelente engenheiro de som, Norman Smith) que entendia com perfeição o seu papel e as ideias do grupo, e isso ajudou a fazer com que suas gravações soassem diferentes e melhores do que suas contemporâneas.

Mas tudo isso é uma tentativa de explicar o inexplicável. A resposta a essa pergunta é, na verdade, a resposta de um bilhão de dólares. E quem souber, nunca mais vai bater um prego numa estopa para ninguém. Basta pegar quatro cabeludos e montar uma banda.

Réquiem para uma música que morreu

Passei diante de um bar dia desses e de lá dentro ouvi uma banda tocando uma canção do Legião Urbana.

Nada demais. Ou melhor, nada demais se aquela não fosse uma canção com 35 anos de idade.

Essa é a maior prova de que a música pop morreu. Esse é o seu enterro, uma banda tocando “Geração Coca-Cola” em 2020, e aqueles garotos balançando as carcaças ao som de uma canção talvez mais velha que seus pais são a sua second line.

Penso nisso sempre que vejo a meninada ouvindo Beatles como se fosse a última sensação da semana que vem.

Alguns anos atrás, eu estava na fila do show de Paul McCartney em Fortaleza quando olhei em volta e percebi que havia centenas de meninas de 15, 17 anos esperando a abertura dos portões.

Uma garota que tinha feito alguma amizade com minha filha na fila, provavelmente impressionada porque tínhamos adentrado os portões da casa de McCartney em St. John’s Wood alguns dias antes, comentou: “Poxa, eu queria ter um pai assim.”

Ela só não apanhou ali porque eu estava mais preocupado em mijar numa garrafa de água mineral no meio da multidão, e as meninas cumpriam o digno papel de barreirinha.

Porque pouco antes, olhando para a multidão de adolescentes ansiosas para ver um ancião tocar as mesmas músicas que vem tocando há 60 anos, eu só conseguia me perguntar: onde vocês estavam 30 anos atrás? Onde vocês estavam quando eu tinha que me sujeitar a blocos de carnaval em busca da única coisa que me interessava mais que Beatles e Balzac?

Saibam vocês que carnaval é coisa tão ruim e medonha que as pessoas têm que encher a cara para suportar.

Onde vocês estavam quando eu tinha que beber cachaça barata para suportar o batuque irritante e eletrônico daquela música que vinha da terra que me havia parido, enquanto meus olhos se tornavam mais míopes ante a visão tenebrosa das pessoas dançando o fricote e a dança da galinha? Onde vocês estavam quando eu me esgueirava pelo Bar do Bruno, por biroscas inconfessáveis, e calado e com um sorriso bovino ouvia Joana, José Augusto, Roupa Nova, Rosana?

Era uma pergunta retórica, apenas. Eu sabia a resposta. Elas estavam ouvindo a música do seu tempo.

Até então eu me dava por satisfeito por ter chegado aos tempos atuais em idade provecta e não precisar ouvir nem fingir tolerar as barbaridades que hoje passam por música popular. Mas depois daquele momento, quando vejo essa meninada ouvindo essa música tão velha, por melhor que seja, é inevitável pensar em como gostaria que tivessem ouvido quando eu era também adolescente, e lido as coisas que eu lia, e me preservado de descer tão abaixo da minha própria dignidade. Mas para além da minha vida mesquinha e precária, há algo mais grave que isso.

Eu era adolescente e gostava de música de velho, a verdade é essa. Por causa dos Beatles descobri Chuck Berry e Little Richard, e o blues de Chicago, e o jazz de Charlie Parker — na verdade o caminho contrário ao que devia seguir, mas isso é outra história. Em 1985 Beatles tinham acabado havia apenas 15 anos, mas já eram coisa do passado e fora de moda. Já tinham sido até mais, na verdade, mas a morte de Lennon tinha lembrado as pessoas de sua existência e aos poucos seu nome vinha sendo rememorado; além disso, em 1983 houve uma certa comemoração pelos 20 anos de seu primeiro disco — ou era 84 pelas duas décadas de chegada à América, eu não lembro, memória de velho é uma droga.

E era assim que tinha que ser. Porque os Beatles acabaram em 1970 mas a música pop continuou evoluindo. Hard rock, rock progressivo, heavy metal, o punk e a new wave — e do outro lado dos trilhos o funk e o soul, até mesmo a discothèque — e finalmente o rap e o hip-hop, talvez a única coisa realmente forte, verdadeira, que conseguiu enfrentar os anos 90 e 2000, mas que também já se esgotou a ponto de chamarem Kanye West de gênio.

Se você era jovem nos anos 70 e 80, as rádios e as lojas de discos lhe ofereciam a cada dia algo novo, algo que, bom ou ruim, dava um passo à frente em relação à música que você ouvia ontem. No final dos anos 70 e durante a maior parte dos 80, a maior banda da história era uma lembrança e uma referência. Não havia por que lamentar o seu fim, nem mesmo tentar fazer parecer atual o que naquele contexto tinha cumprido seu papel histórico, por mais importante que fosse, e agora era apenas mais uma banda do passado, entre tantas outras e tantos ritmos diferentes. A linguagem que os Beatles tinham criado havia se estabelecido definitivamente, e partir dali milhares de músicos em todo o mundo continuaram a criar algo novo, sem parar.

Algo aconteceu nos anos 90, no entanto: a música pop se esgotou e a internet chegou ao comum dos mortais.

É só olhar para trás e ver que, no campo da música popular, o melhor que aquela década e as seguintes produziram, e continuam produzindo, representava antes de tudo um diálogo com o que veio antes. Oasis nunca passou de sub-Beatles requentado para os anos 90, alimentando-se de tudo o que tinha acontecido naqueles 25 anos. Nirvana é uma apropriação muito própria do punk, e o último suspiro de uma linguagem que tinha esgotado suas possibilidades. O mesmo vale para a MPB, com a diferença de que aqui eram os nomes de sempre tentando fazer o que sempre fizeram enquanto competiam com a revolução do axé music, o pastiche de terceira que é a música sertaneja e a chegada do funk carioca ao resto do país — ou, o que se tornaria praticamente a norma nessa música de “elite”, meninos requentando o que já era velho antes deles nascerem.

E essa é a parte boa. A parte ruim é muito pior do que os mais horripilantes pesadelos de Thomas Edison. À medida que a tecnologia tornou a produção musical acessível a qualquer um, e depois que a internet quebrou o monopólio de distribuição de produtos culturais, abriu-se uma caixa de Pandora que, a cada dia, não cansa de lançar horrores a uma humanidade que não tem mais na música a relação de definição de identidade e comunhão que teve em décadas anteriores. Não é apenas a produção computadorizada, homogeneizante e desumanizadora. Acontece que, bem ou mal, a estrutura de produção e distribuição de produtos culturais fazia uma triagem mínima — havia, afinal, um lado bom na indústria musical. E assim como, tendo nas redes sociais a ferramenta necessária para ignorar a mediação da mídia, o povo elegeu Bolsonaro, ao poder produzir e distribuir música sem intermediários ele gerou essas atrocidades que hoje passam por música e que fazem o mainstream musical de hoje: um mundo que adora Anitta.

Mas os resultados vão muito além da estética.

Durante algumas décadas do século XX, a música unificou e canalizou as ideias de gerações, tornou-se um elo de ligação entre pessoas das mais variadas origens e destinos. Isso acabou, fragmentando-se em produtos direcionados para nichos e que se prestam essencialmente como combustível para pequenos transes hedonistas e efêmeros.

É por isso que aqueles garotos ouvindo Legião Urbana me incomodaram tanto. É muito triste quando uma geração inteira se resigna a aceitar como referencial a música de meio século atrás, porque ficou mais fácil convencê-la disso. Alguém consegue imaginar a juventude dos anos 60 ensaiando uma mudança profunda de costumes e percepções enquanto ouvia a música feita não 30, mas 15 anos antes — ouvindo Frank Sinatra e Glenn Miller? Um doidinho em Hashbury balançando a carcaça em meio a uma miríade de cores de LSD e ao som de Al Jolson?

Eu não. Talvez seja mais uma das tantas deficiências minhas. Não importa. O que sei é que sinto um desânimo profundo ao ver relançamentos de discos dos Beatles entre os mais vendidos. Não significam uma vitória da boa música. Significam, ao contrário, a sua derrota.

A morte do faroeste

Achei por acaso um excelente canal sobre cinema no YouTube. Se chama EntrePlanos e tem uns tantos vídeos muito bons sobre faroeste. Com informação sólida e bons argumentos, ele me pareceu bem acima da média. Outros canais que vi por aí não passam de amontoados de lugares comuns ou bobagens ignorantes e descontextualizadas. O EntrePlanos me lembrou que aqueles que sentem falta da era áurea dos blogs apenas não sabem procurar: os canais do YouTube são os blogs de hoje.

Um vídeo me chamou a atenção. Fala sobre o fim da era dos westerns no cinema. Ele começa fazendo um paralelo entre o domínio dos filmes de super-herói hoje com a era de ouro do faroeste. Particularmente acho uma comparação complicada, até por uma diferença de escala, mas é válida e interessante. A maior parte dos cerca de quinze minutos de vídeo é muito boa — ele traz uma excelente explicação sobre as razões pelas quais os bangue-bangues se tornaram um gênero de sucesso no mercado. Talvez fosse possível acrescentar outro, uma reinterpretação da opinião de André Bazin de que o western era o único gênero que só se pôde realizar completamente no cinema (o que, a propósito, reforça a comparação do EntrePlanos com os filmes de super-heróis neste século).

Mais adiante ele estabelece uma dicotomia equivocada entre faroeste e ficção científica — na verdade, os anos 50 foram o ápice do sci-fi em termos de alcance popular, com uma enormidade de filmes B que faziam a alegria das matinês e vesperais (“Matinê”, de Joe Dante, é uma homenagem a esses filmes, e sobre isso escrevi algo aqui há muitos anos e não vou me alongar.) Também atribui importância demais a “O Portal do Paraíso” na agonia do bangue-bangue; quando o filme de Cimino saiu, o western já estava morto havia tempo, e nem mesmo ele impediu que logo depois alguns faroestes bem-sucedidos, como Silverado e Pale Rider, fossem feitos.

Há um momento, no entanto, do qual discordo absolutamente: quando o canal fala das razões pelas quais o bangue-bangue virtualmente acabou.

Segundo o EntrePlanos, uma nova mentalidade surgiu no final dos anos 60. Ele credita a derrocada dos westerns à mudança no cenário político e cultural. Hippies, protestos contra a guerra do Vietnã, o movimento pelos direitos civis, o questionamento do mito americano. Uma nova geração não mais se sentia à vontade com a representação de índios malvados, mocinhos impolutos, etc.

É uma visão rósea e excessivamente acadêmica. Não é apenas revisionista, mas equivocada.

Para começar pelo menos importante, é claro que o faroeste tradicional estava cada vez mais em desacordo com os tempos. Mas ele vinha mudando. Índios já não eram unicamente retratados como assassinos selvagens havia um bom tempo. Mesmo mexicanos — pense em quantos westerns americanos tradicionais se passam em Sonora, Los Angeles, San Francisco, San Antonio e não trazem sequer um mexicano, nem mesmo aqueles gordinhos vestidos de branco e ostentando um bigodão, subservientes, preguiçosos e frouxos, nem mesmo bandoleros ou señores rancheros — àquela altura vinham aparecendo mais e melhor. Os americanos apenas não conseguiam (e não conseguem até hoje) retratar a importância dos trabalhadores chineses na construção do Oeste americano.

Se fosse essa a razão, bastava mudar o enfoque ideológico e pronto. Mas isso não aconteceu, que me perdoe “O Pequeno Grande Homem”, ou “Meu Ódio Será Tua Herança”, ou tantos outros.

A verdade é que a decadência do faroeste como gênero cinematográfico se deve a dois fatores, e a política não era um deles.

O primeiro foi o simples esgotamento. Pensando bem, os faroestes resistiram tempo demais: os filmes de super-herói têm uns vinte anos e já se esgotaram. Mas nos anos 70, o bangue-bangue já não tinha mais nada de novo a dizer. O spaghetti western não fez muito para reverter a situação. Diante daqueles filmes, um americano se sentia ainda pior que um brasileiro horrorizado diante de um francês tentando lhe mostrar como fazer samba; embora a essência não fosse tão diferente assim — o faroeste sempre foi sobre a conquista da fronteira e os conflitos que vêm daí, e por exemplo os filmes estrelados por Kirk Douglas, quase sempre, traziam personagens ambíguos, quase anti-heróis (em The Last Sunset, por exemplo, ele conscientemente comete incesto) —, havia um mundo de distância estética, e também uma maneira não muito agradável de recontar a história americana mitificada pelo faroeste.

O outro fator, talvez o mais importante, foi a TV.

A principal mudança que a televisão infligiu ao cinema tem origem no fato de que ela passou a oferecer dramaturgia gratuita e confortável a milhões de pessoas, que agora já não precisavam ir ao cinema.

Agora, adivinha o que essas pessoas viam na telinha.

Mesmo antes do acordo entre a Universal e a NBC, através do qual o estúdio jogou boa parte do seu acervo na TV, faroestes já tinham se tornado o esteio da programação televisiva americanas. Desde o fim dos anos 40, quando ela começou a se popularizar, todos os canais apresentavam um volume desproporcional de westerns. “Cisco Kid”, “O Homem de Virgínia”, “O Homem do Rifle”, “Durango Kid”, “Bat Masterson”, “Zorro” (de capa e espada), “Zorro” (The Lone Ranger), “Roy Rogers”, “Bonanza”, “Chaparral”, “Laredo”, “Lancer”, “Big Valley”, “Os Pioneiros” — o número de seriados de faroeste exibidos à exaustão entre as décadas de 50 e 70 é quase impossível de ser contado. Na verdade, era ainda pior do que se pode imaginar: em um tempo em que o satélite não existia, esses seriados não desapareciam da programação quando sua produção era cancelada: sempre havia um estado, uma cidade onde eles seriam novidade, e “Cisco Kid” era exibido logo depois de “Bonanza”. De maneira caótica, mas simultânea, sempre havia um western sendo exibido em alguma TV. Mais de vinte anos de faroestes esquemáticos ao extremo conviviam alegremente e chegavam às casas de milhões de americanos.

O gênero já vinha se esgotando no cinema e encontrou na TV uma sobrevida, até mesmo uma reinvenção. Mas paradoxalmente, essa sobrevida nos lares americanos acelerou ainda mais a sua decadência nas salas de cinema.

Ao contrário do que diz o EntrePlanos, o público mais fiel do faroeste não foi tão afetado pela mudança de percepção sobre a Guerra do Vietnã. Ele continuaria o mesmo, vivendo no mesmo meio-oeste, com os mesmos valores que hoje fazem a delícia de organizações como a NRA; em 1972 votaria em Nixon, oito anos depois, em Reagan, e nos anos 80 iria aos cinemas assistir a “Rambo II”, “Rocky IV” e a “Cobra”; mais recentemente votaria em Trump, e continua não gostando de índio, de preto ou de mexicano. Mas algo muito importante tinha mudado: ele já não tinha mais razões para sair de casa e assistir um faroeste. Seus ídolos, como Audie Murphy, John Wayne, James Stewart ou Randolph Scott, estavam velhos ou morrendo. As únicas novidades estavam na TV, e lhe bastavam.

Para eles, o faroeste não morreu. Só mudou de casa.

Reencontrando os Clássicos da Literatura Juvenil

No último Natal consegui me dar um presente que procurava havia muito tempo.

Eu tinha sete anos, quase oito quando cheguei em casa e havia uma encomenda para mim. Naquele dia específico as pessoas estavam com raiva desta pobre criança, porque aparentemente eu tinha desaparecido a tarde toda, com um amigo. Era injustiça, porque não procuraram direito: tivessem ido ao Porto da Barra e nos encontrariam mergulhando do quebra-mar, aproveitando a maré cheia do fim de tarde.

Jailton, o amigo que estava comigo, ganhou uma surra. Eu ganhei um esporro e livros. Minha avó tinha mandado do Rio uma caixa com uns quinze volumes de uma mesma coleção, “Clássicos da Literatura Juvenil”. Os números dos livros eram descontinuados, e isso me deu a certeza de que havia mais volumes. Eu estava certo, e algumas semanas depois chegaria outra remessa: eram trinta, ao todo.

Eram livros belíssimos para mim: capa dura, bem ilustrados, um cheiro único e inesquecível. Nos três anos seguintes eu leria todos os eles, alguns muitas vezes. Só não li então o número 21, “Robinson Crusoé”, que caiu do caminhão numa mudança, e “Aventuras de um Petroleiro” porque me parecia chato — quem em sã consciência deixaria de reler “As Aventuras de Tom Sawyer” para saber das desventuras de um navio? Eu os leria anos depois, mas não seria a mesma coisa e eles não fazem parte da minha infância — não, mentira: a ausência de “Robinson Crusoé” faz, sim, parte dela.

Como vieram em levas diferentes, desde o início tive a impressão de que havia mais do que apenas aqueles trinta. Essa impressão durou anos, e aumentou em 80, 81, quando comprei dois livros de banca, “O Corsário Negro” de Salgari e “O Máscara de Ferro” de Dumas. Eles tinham muitas semelhanças com a minha coleção, embora fossem brochuras e pertencessem a outra série, “Grandes Aventuras”: mas era o mesmo estilo de capa, a mesma estrutura, até a mesma tipologia. Só fui confirmar essa desconfiança no final dos anos 80, quando achei o número 38 na casa de um amigo. Eu estava certo desde o início. Eram cinquenta volumes, quase o dobro do que tinha embalado a minha infância. Mais tarde, cheguei a comprar alguns que achava em sebos, mas eles não me interessavam mais, e eu comprava para dar de presente.

Com o tempo a minha coleção foi se deteriorando e sumindo. Depois, morando no Rio, eu os encontraria em absolutamente todos os sebos a que ia, custando 2, 3 reais. Mas nunca a coleção inteira, e nunca em bom estado.

Com a chegada do Mercado Livre passei a procurar por ela com alguma regularidade. Mas as que apareciam eram sempre esculhambadas, degradadas em excesso pelo tempo, ou excessivamente caras. A essa altura os livreiros entenderam que só quem procura por esses livros é gente nostálgica que quer recuperar um pedaço de sua própria infância e que, naturalmente, está disposta a pagar mais por isso; só não entendem que nenhuma infância vale o preço que eles passaram a cobrar, e que criança é bicho chato que só merece cascudo. Além disso, eu nunca quis a coleção completa. Queria apenas os trinta primeiros.

E então, no fim do ano passado, apareceu uma coleção incompleta, mas com todos os volumes que eu queria em excelente estado e mais uns 15 de lambuja, pelos quais não me importaria em pagar.

Feliz Natal, Rafael.

***

Anos atrás, falando dessa coleção aqui no blog, um post comparando-a à Coleção Vagalume gerou uma pequena polêmica, desnecessária. As pessoas ficam ofendidas quando você não liga para algo que lhes é importante, exigem um respeito indevido; se eu disser que Anitta é lixo, o que sinceramente acho, vai aparecer alguém para falar da minha estupidez, do meu preconceito, do meu elitismo, do meu mau gosto. Nada contra a Vagalume (li quase todos os publicados até o início dos anos 80, e alguns, como “Cabra das Rocas”, são excelentes), mas não dá para comparar Marcos Rey a Alexandre Dumas, mesmo aguado para crianças. Revendo a minha coleção, passando os olhos em todos eles para reencontrar palavras velhas conhecidas, essa certeza aumentou.

Dei sorte de ler esses livros quando era criança. Se tem algo por que devo ser grato é pela chance de passar a infância em meio a essa coleção. A literatura moderna só existe por causa de livros como esses. O século XX viu se esgotarem as possibilidades do grande romance, e foi forçado a ir além, a lidar com outras formas de contar uma história, porque autores como Dickens, Dumas ou o Balzac que não está aqui contaram o que havia para ser contado. Proust, Mann levaram o romance adiante por falta de opção, porque livros como os desta coleção já tinham sido escritos. Posso apostar que Joyce só escreveu Finnegan’s Wake porque Cooper já tinha escrito “O Último dos Moicanos”.

Mas há um outro aspecto que me chama a atenção. Passar os olhos sobre essa coleção, se me traz de volta à infância, também mostra que vivo em outro tempo.

O fato é que, parcialmente graças a esses livros, boa parte dos meus referenciais estiveram sempre no passado, e o faroeste sempre foi mais interessante para mim do que, por exemplo, ficção científica — mesmo os livros de Verne faziam parte do passado, o futuro do pretérito. Por isso não me interessei por “Aventuras de um Petroleiro”. A II Guerra Mundial ainda era muito recente, havia acabado menos de trinta e cinco anos antes; é menos tempo do que o que se passou desde que aquela caixa de livros chegou lá em casa. E este é um mundo totalmente diferente. Daqui a pouco se comemora o centenário da invasão da Polônia pela Alemanha. Veteranos da II Guerra, se ainda existem, não estarão vivos em quinze anos, e nenhuma informação nova poderá ser produzida, e a guerra que definiu o mundo em que cresci será algo que definitivamente ficará no passado, congelado para sempre. As bancas em que esses livros eram vendidos vivem hoje seus últimos dias, desaparecem uma a uma como lemingues se jogando de um penhasco.

***

Infelizmente a coleção que comprei não tem mais o cheiro da que minha avó me mandou mais de 40 anos atrás, e do qual ainda lembro. Mas reconheço todos esses livros. Sempre soube de cor a ordem de cada um deles, e há uma série de nomes, como Miécio Tati (que ainda hoje pronuncio Táti), Marques Rebelo, Carlos Heitor Cony, Herberto Salles, Paulo Mendes Campos, Virginia Lefèvre, até mesmo Orígenes Lessa, que conheci ali e que foram meus amigos de infância. Eram os responsáveis pelas adaptações. Alguns deles sabiam até onde ir em termos de supressão de informações — Miécio Tati, por exemplo, adaptou “O Conde de Monte Cristo” e retirou de maneira bastante sutil as referências à homossexualidade da filha de Danglars; Oswaldo Waddington julgou melhor não nos informar que Emily foi seduzida por Steerforth em “David Copperfield” e virou puta. Outros não: Herberto Salles omitiu a morte de Beth em “Mulherzinhas”, e não havia necessidade disso.

A internet me mostrou que não fui o único a ser profundamente influenciado por esses livros. Uma moça dedicou um blog inteiro a eles.  Dia desses o Sergio Leo, numa discussão no Facebook sobre o racismo de Monteiro Lobato (discussão para mim excessivamente adulta e acadêmica, porque tenho a impressão de que crianças hoje se interessam tanto por Monteiro Lobato quanto por Huckleberry Finn), falou da coleção. E um repórter da Globo, em suas aparições em casa durante a pandemia, ostentava orgulhosamente esses livros em lugar de destaque na sua estante.

Já vi internet afora gente lamentando que a “Clássicos da Litertura Juvenil” deveria ser republicada. É bobagem. As pessoas já não se interessam por esses livros, porque eles dialogam com outro tipo de sensibilidade, e com outro tempo. A coleção, por exemplo, traz dois livros de Zane Grey, e não foram poucas as vezes em que, caindo de algum cavalo, me imaginei um Nevada ou um Ben Ide em dia de pouca sorte. Muitos dos seus livros de faroeste ainda estão no prelo nos EUA. Mas eu realmente não compreendo que uma criança urbana brasileira hoje tenha algum interesse nisso. Esse mundo não lhes pertence mais, eles seguiram adiante. Videogames, redes sociais e maratonas de séries na Netflix vêm antes de livros; e se os leem, garanto que preferem Harry Potter ou Percy Jackson a mosqueteiros seiscentistas usando talabartes e espadas.

Em algum momento, imaginei que deveria ter esses livros para que meus filhos os pudessem ler. Vã esperança. Como eu disse, eu não esperava que o mundo continuasse girando e as pessoas perdessem o interesse por coisas de duzentos, trezentos anos atrás. Quer dizer: ninguém, não. Só eu, bobo a ponto de comprar de novo aqueles livros que li na infância, apenas para poder passear pelas suas páginas, e reencontrar a infinidade de pedaços de texto que nunca esqueci.

Revisionismos

O Edilson publicou, no Facebook, um texto de autor desconhecido sobre a natureza positiva dos super-heróis. Lá vai:

  • X-Men é sobre direitos civis. Se você não percebeu isso, não entendeu X-Men.
  • Pantera Negra é sobre direitos civis. Se você não percebeu isso, não entendeu Pantera Negra.
  • Capitão América literalmente enfrentou nazistas. Ele é a personificação da luta contra a extrema-direita. Se você não percebeu isso, não entendeu Capitão América.
  • O Império em Star Wars é fascista. A Aliança Rebelde é antifascista. Se você não percebeu isso, você não entendeu Star Wars.
  • O Justiceiro não foi feito para ser um modelo para a polícia ou Forças Armadas. Seus roteiristas o fizeram falar claramente contra isso em suas revistas. Se você não percebeu isso, você não entendeu o Justiceiro.
  • Deadpool é queer. Ele é pansexual. Fato. Se você não percebeu isso, não entendeu Deadpool.
  • Star Trek é sobre igualdade entre todos os gêneros, raças e sexualidades. Já em meados dos anos 60, a série adotava uma postura pró-escolha e defendendo o direito de escolha das mulheres. Um de seus temas mais claros é aceitar diferentes culturas e aparências e trabalhar juntos pela paz. (Também é anticapitalista e pró-vegana). Se você não percebeu isso, não entendeu Star Trek.
  • Superman e Supergirl (e vários outros super-heróis) são sobre imigrantes. A posição desses quadrinhos é pró-imigração e pró-igualdade e aceitação. Se você não percebeu isso, você não entendeu Superman ou Supergirl.
  • Stan Lee disse: “O racismo e o fanatismo estão entre os males sociais mais mortais que assolam o mundo hoje”. Se você é fanático ou racista, não entendeu nenhum dos personagens que Stan Lee criou.
  • As histórias com as quais crescemos nos ensinaram a valorizar outras pessoas e culturas e valorizar as diferenças entre nós. Somente os vilões eram xenófobos, sexistas, racistas ou totalitários. Não consigo entender como alguém poderia não ter percebido isso.
  • Se você está chateado por haver um Homem-Aranha preto, ou um Capitão América preto, ou uma Thor, ou que a Miss Marvel seja muçulmana, ou que a Capitã Marvel seja pró-feminismo ou qualquer outra coisa que os “fãs” de direita dizem, como ”estarem roubando a minha infância” – você nunca entendeu isso, em primeiro lugar. As coisas que você alega que estão agora “cedidas aos esquerdistas” nunca estiveram do seu lado, para começar.

Se você se considera um fã dessas coisas, mas ainda acha que a comunidade LGBTQ + está muito “na sua cara”, ou tem um problema com o Black Lives Matter, ou deseja “tomar o país de volta dos imigrantes”, então você não é realmente um fã.

A cultura nerd não se tornou de repente de esquerda… sempre foi sobre igualdade. Você foi ensinado a ser intolerante. Você se tornou o vilão nas histórias que costumava amar.

E o que eu queria dizer é: quanta bobagem.

Super-heróis podem ser sobre o que se quiser que eles sejam, porque são obras de ficção em construção permanente. Vão, necessariamente, refletir o seu tempo e os valores da maioria. Mas tentar dar a eles uma natureza intrínseca a partir de um tempo específico é uma grande forçação de barra.

Acho que nada pode simbolizar isso como Star Trek. O autor desconhecido tem toda a razão sobre a série original. Era isso mesmo, e refletia o zeitgeist dos anos 60. Mas a última releitura, disponível na Netflix, é completamente diferente. Está centrada nas conquistas individuais da personagem principal — uma mulher negra —, refletindo o individualismo dos nossos tempos e uma consciência identitária que se torna, aos poucos, mais sólida.

No fundo, super-heróis são basicamente sobre oportunidades de mercado. Há um mercado de meninas que não tem um personagem com quem possam se identificar? A Mulher Maravilha vai nos redimir. Bandas de rock tomaram a juventude de assalto? Olha os Jovens Titãs aí, gente. O movimento pelos direitos civis está crescendo? Vamos criar personagens para esse nicho. No caso do Pantera Negra, nunca vi um rei multibilionário sem todos os direitos civis, militares, sexuais e siderais que quiser. É bom lembrar que muito mais próximos do movimento negro estão Luke Cage e o Falcão — estes, sim, sempre lidaram com essas questões. O Pantera era um americano rico numa América africana, só mudava a cor.

Dizer que somente os vilões eram “xenófobos, sexistas, racistas ou totalitários” é desconhecer a história desse tipo de quadrinhos. Ou melhor, é fazer uma leitura parcial das coisas, em que se seleciona os valores que se quer impor sobre o passado. De modo geral, eles até se enquadram no combate ao totalitarismo, porque essa sempre foi a mensagem básica da democracia capitalista americana, e racismo declarado nunca foi bem aceito no mainstream. Quanto ao resto… Lembrei agora do Aranha esculhambando os ativistas universitários na NYU, fazendo libelos contra o uso de drogas — ou o Superman sempre salvando a Lois Lane que insistia em fazer “coisas de homem” (como ser uma repórter infinitamente superior a Clark Kent) e sempre quebrava a cara.

O mais absurdo, no entanto, é essa história sobre “Super-Homem imigrante”. Isso só pode ser sacanagem, não há outra explicação. Porque se Kal-EL é imigrante, é um sueco multibilionário e super-armado numa aldeia de pigmeus. É para comparar mesmo com os haitianos na Av. São João ou os bolivianos nos ateliês de costura? E não custa lembrar que o sujeito, desde o início, foi um baluarte do american way.

O Capitão América enfrentou nazistas, é verdade. Foi criado para isso. A verdade, no entanto, é que até o Batman enfrentou nazistas. A velhinha racista, matadora de índios e exploradora de mexicanos no Wyoming, ao seu modo, enfrentou nazistas comprando war bonds. Mas bastou a guerra acabar e o bom e velho Capitão passou a descer o cacete nos comunistas, enquanto nas horas vagas Steve Rogers era um professor dedicado a extirpar das universidades americanas a ameaça vermelha. Morasse no Brasil nos anos 70 e seria informante do SNI.

Essa do Justiceiro é barra pesada. Porque ele simboliza tudo que há de ruim na cultura americana de violência e o libertarianismo com sua negação da necessidade do Estado. É bom lembrar que nasceu como vilão nas revistas do Aranha. O fato de ser alçado a herói (assim como o Venom, embora este represente um aspecto moral enquanto o Justiceiro é claramente político) é sintoma de uma banalização da violência e de uma desmoralização do Estado que devia nos preocupar.

E me desculpem pelo que vou dizer: não acompanho quadrinhos novos há tempos, mas não acho que seja tão simples dizer que um Aranha negro me incomoda pelas razões apontadas aí. Perdi interesse no Aranha quando ele foi substituído pelo Ben Reilly, que por sinal era louro. O problema é que Peter Parker sempre foi tão ou mais importante quanto o Aranha; simplesmente não dá para pegar a essência do personagem e mudar. Fingir que não se entende isso, em nome de uma luta identitária, é simplesmente má-fé.

Muito melhor é fazer o que se tem feito: valorizar adequadamente personagens negros como Luke Cage ou o Pantera Negra. E por favor, botar a Capitã Marvel nesse bolo é complicado, porque ela sempre foi feminista. Não sei se ainda é a Carol Danvers, mas nos anos 70 era já era uma mistura bem adequada de Superman e Lois Lane.

Isso está pior que o revisionismo de Kruschev.

Saudades da Editora Abril

Vi há um tempo uma matéria antiga falando do suicídio da Editora Abril, escrita pelo Thales Guaracy. Ele conta das opções equivocadas, do gerenciamento caótico que levou a editora a um fim melancólico. A incompetência dos herdeiros de Roberto Civita já tinha sido matéria para muito mais gente, crônica de morte anunciada ao longo desses anos em que o fim da Abril vinha sendo dado como inevitável.

Eu acompanhei a sua agonia. Quando anunciaram o cancelamento das revistinhas da Disney era óbvio que o fim estava próximo, porque “O Pato Donald” era uma espécie de talismã do fundador Victor Civita e um símbolo importante do que a editora representou um dia. Depois vi o cancelamento de outros tantos títulos importantes, como a Casa Cláudia. Finalmente vi a editora ser vendida por quaisquer mil-réis, seus títulos entregues a outros como os filhos de um retirante, e a Veja circulando com uns anunciozinhos pingados em suas páginas, sombra pálida do que foi em outros tempos e muito inferior às suas concorrentes, hoje.

Não dá para dizer que é injusto, porque em seus últimos anos a Abril decidiu errar a mão na mistura possível de jornalismo e política. Chegou a ser mais vilificada que a TV Globo, especialmente por causa da guinada em direção à extrema direita e ao não-jornalismo dado pela Veja. Não foi pouca gente que comemorou a derrocada e venda da editora.

Eu não estava entre eles porque sempre achei que as coisas nunca foram assim tão simples, e a disputa política acaba obscurecendo um fato que não pode ser esquecido: a Editora Abril foi, talvez, a editora mais importante do país.

As pessoas gostam de falar da Companhia das Letras ou da CosacNaify, ou de alguma outra que esteja na moda hoje ou seja grande o bastante para angariar simpatias. Nenhuma tem a importância da Abril na história deste país.

Ela fez ao menos tanto pela alfabetização de milhões de brasileiros quanto o Mobral; provavelmente mais. De lambuja, junto com a Globo, deu lá sua contribuição ao processo ainda incompleto de definição de uma identidade cultural brasileira, que abrangesse o país todo como um fator comum e se sobrepusesse ao regional, dando sequência a um projeto nacional iniciado durante o Estado Novo.

Victor Civita, judeu ítalo-americano, começou a Abril com uma revista que não deu certo, “Raio Vermelho”. Pouco depois lançou “O Pato Donald”, porque seu irmão Cesar já tinha os direitos de publicação da Disney na Argentina. A editora se virou por algum tempo, expandiu o número de títulos aos poucos, deu sorte com fotonovelas, e nos anos 60 passou a crescer em ritmo vertiginoso.

No final da década de 70 a Abril vendia quatro milhões de revistas em quadrinhos por mês; Tio Patinhas, por exemplo, vendia 500 mil exemplares. E tinha o que se poderia considerar as melhores revistas adultas do país. Veja, Exame, Placar, Cláudia, Quatro Rodas, Nova, Playboy.

Mas na minha imodesta opinião seu grande papel na história do país não está aí. Ele começou, mesmo, com a decisão que salvou a editora: publicar enciclopédias em fascículos e coleções de livros nas bancas, no final dos anos 60, seguindo um modelo que dava certo na Itália.

Isso não fez dela apenas a maior editora do país, uma terra em que edições de livros raramente passavam dos três mil exemplares. Com os fascículos, a Abril possibilitou a centenas de milhares de famílias o acesso à cultura. Porque uma coisa era o sujeito conseguir, sei lá, 1000 cruzeiros para enterrar numa Barsa, numa Mirador, nas esperança tantas vezes vã de que servisse para desasnar comme il faut sua prole. Outra era comprar, a cada semana ou quinzena, mais um fascículo da enciclopédia tal e qual por cinco ou dez cruzeiros. Num país que praticamente inventou o cheque pré-datado, isso era o paraíso. Conhecer, Novo Conhecer, Enciclopédia do Estudante, Informática, Nosso Século: qualquer pessoa com mais de quarenta anos consegue lembrar imediatamente de várias enciclopédias lançadas pela Abril. Foram dezenas.

Além disso, as tantas coleções de livros que ela lançou ao longo de sua história levaram o melhor da literatura mundial e brasileira a uma infinidade de casas. A coleção “Imortais da Literatura Universal”, reempacotada em diversos formatos ao longo das décadas até o começo dos anos 2000, ainda hoje é respeitável. A “Grandes Sucessos”, dedicada à literatura do século XX,  lançou no Brasil “A Sangue Frio”, de Capote. As coleções “Mistério” e “Série Mistério e Suspense” quase não devem nada à insuperável “Colecção Vampiro”. Virtualmente toda área da cultura foi abordada pela Abril em suas coleções: “Teatro Vivo”, “Os Pensadores”, “Os Economistas”, tantas outras. E a “Clássicos da Literatura Juvenil” merece mais um post neste blog.

Sem falar nas tantas coleções de discos, da “Taba” à “Gigantes do Jazz”, passando pela ópera e pela MPB.

Hoje os sebos do país estão repletos de coleções da Abril, inúteis como jornal de ontem, acumulando poeira em suas estantes. As enciclopédias desnecessárias porque perderam sua função; os livros sem valor porque, sendo edições de massa, são descartados como quase lixo quando seus donos morrem. Mas isso dá uma ideia bem aproximada da grandiosidade desse projeto cultural.

Para mim, ela era essencialmente duas coisas: a editora das melhores e mais bem cuidadas revistas, fascículos e livros que eu podia comprar numa banca e uma espécie de companheira de infância e adolescência. Faço parte da última geração a crescer com os quadrinhos Disney.

Nos anos 80, a Abril deu uma dignidade às revistas da Marvel e da DC que as editoras anteriores, como Cruzeiro, Bloch e Ebal jamais conseguiram dar — embora uma certa elite acostumada a quadrinhos importados, já naquela época, reclamasse do que chamavam “formatinho”, da demora na publicação de histórias, disso e daquilo. A minha vontade, cá nos ermos de Lampião, era de enfiar a peixeira no bucho desses playboys, porque eu ainda lembrava das revistas da Ebal. Obviamente, eu mal fazia ideia de que esse tipo de coisa só ia piorar nas décadas seguintes.

A Bizz apresentou para um bocado de gente as novas tendências em música. Era uma revista canalha, típica do pior que a cultura paulista pode oferecer, um provincianismo deslumbrado e colonizado, e que contava com articulistas cuja ética profissional era mais rarefeita que o vácuo sideral. Mas para quem morava longe dos grandes centros era uma referência importante. Tem tanta coisa de que ouvi falar primeiro na Bizz: REM, Jesus and Mary Chain, umas coisas aqui e outras ali. Até mesmo coisas de que só ouvi falar, mesmo, mas que não ouvi porque nas rádios daqui isso não tocava e eu não tinha interesse em ir atrás.

É por isso que não consigo ter raiva da Abril. Pelos quadrinhos Disney, pela unificação dos quadrinhos da Marvel e DC, pelos livros que comprei em bancas. E a verdade é que morro de saudades da Veja.

Não tenho a mínima vergonha de dizer que tenho saudades daquela revista canalha. Nunca foi um grande padrão de notícias, é verdade. Uns anos atrás, com algum tempo livre, saí procurando notícia sobre os Beatles em seus arquivos e fiquei impressionado com a imprecisão, com o diz-que-diz repetido em seções diferentes, com os boatos falsos impressos em suas páginas. E isso nos anos 70.

Mas ela foi, durante muito tempo, a melhor revista semanal do país, e não à toa sobreviveu a tantas outras: Cruzeiro, Manchete, Fatos & Fotos, Agora, Amanhã, Visão. Até hoje, sempre que ponho as mãos em uma, e mesmo odiando as mudanças a que o tempo lhe obrigou — tipologia, adequação a um mundo com fotos grandes e textos menores, excesso de colunistas, entre umas tantas outras —, ela traz uma sensação de familiaridade que nenhuma outra revista pode trazer para mim. Me sinto à vontade lendo a Veja porque foi ela a revista que mais li durante muito tempo.

Em uma de minhas fotos mais antigas, eu estou “lendo” uma Veja. Mais tarde, ainda criança mas já reconhecendo duas ou três letras, lia a revista com certa frequência — aqueles bons tempos em que a gente só lia o que interessava, no meu caso principalmente as notícias sobre livros e filmes. Depois, já trabalhando, a Veja era uma das revistas fundamentais para se ler toda semana. Não há como não sentir saudades.

Mas por mais variada que tenha sido a atuação da Abril, agora que tudo acabou e ela é uma sombra do que foi, longe dos Civita e sem nada da personalidade que tinha em seu fastígio, é curioso ver que sua glória e decadência acompanharam a trajetória dos quadrinhos Disney.

O fim começou bem antes da internet. Segundo “O Homem Abril”, do Gonçalo Júnior, Roberto Civita identificava o início do fim no momento que a Censura Federal liberou a nudez total nas revistas masculinas, em 1980. A queda nas vendas foi imediata. Ali os quadrinhos perderam o público adulto. Mas a decadência continuou e se acentuou ao longo das duas décadas seguintes por mais razões. Mais e mais casas com televisão, o surgimento do videogame e depois da TV a cabo, até mesmo o aumento da violência urbana que fez com que as crianças deixassem de ir sozinhas às bancas de revistas, a necessidade de escala da Abril, tudo isso foi destruindo as vendas das revistas em quadrinhos. A Turma da Mônica sofreu menos, ancorada em um bom esquema de assinaturas e a mudança para a Editora Globo. Finalmente veio a internet, o apocalipse da mídia impressa.

Em dezembro de 1979 havia 85 títulos de revistas nas bancas brasileiras, de todas as editoras. Em dezembro de 2018 havia 279. Pelos números pode-se pensar que o mundo melhorou muito. Mas duvido que a tiragem do conjunto dessas 279 revistas chegue a pelo menos metade dos quatro milhões que só a Abril, com 29 daqueles 85 títulos, tirava.

A Abril pertence a um outro mundo, que a internet enterrou. Recentemente, dando uma volta na zona norte de Aracaju, notei algo que nunca havia percebido antes: não há mais bancas de jornal ali.

Na zona sul elas também são cada vez mais raras. Umas poucas resistem, uma luta inglória já condenada ao fracasso, e não acredito que revistas continuem sendo sua principal mercadoria. A banca de Florêncio, onde décadas atrás eu tinha conta, hoje vende frutas e verduras. Bancas de revistas pertencem a um passado cada vez mais distante. Como a editora Abril.

Síntese

Pipocando, nas redes, artigos questionando o modelo de trabalho do capitalismo.

Resumindo da maneira mais grosseira possível a dialética marxista, um problema só aparece quando a solução já existe.

Resta saber se o pessoal está realmente a fim de encarar o modelo social e de trabalho chinês.

Daniel Boone

Entre as coisas boas da quarentena está assistir a episódios de “Daniel Boone” com a minha mãe.

Não apenas por passar esse tempo vendo a véia adivinhar os finais dos filmes. Mas porque assistir a “Daniel Boone” é sempre um prazer enorme, que raramente pode ser compartilhado.

Durante anos fui a única pessoa que se lembrava de alguns seriados antigos, como “Daniel Boone” e “Joe, o Fugitivo”. A internet veio me mostrar que eu não estava sozinho. Escrevi sobre o seriado uma ou duas vezes aqui, e esses são daqueles posts que receberam, ao longo dos anos, centenas de comentários, cada um deles provando novamente que durante muitos anos estive errado, eu não era o único a lembrar.

Rever os episódios agora — dublados, óbvio, porque não existe “Daniel Boone” sem a dublagem da AIC, não para mim — me faz lembrar que, em 1979, a TV Aratu exibia o seriado a partir das 11:45. Eu voltava da escola ansioso para assisti-los. Durante mais de um ano, uma eternidade quando se tem 8 anos, assisti a todos os episódios que pude do seriado, inclusive da tal primeira temporada que dizem nunca ter sido reexibida no Brasil depois dos anos 60, o que apenas mostra que quem escreveu isso não entendia como as TVs funcionavam antes das antenas de satélite se espalharem pelo país.

Ultimamente tenho pensado no quanto esse seriado me influenciou na época. Difícil saber. O que sei é que durante anos eu quis ter um chapéu de raccoon. Na verdade ainda quero, a única diferença é que não sairia à rua com ele. Lembrei também que, com meus revólveres e espingarda de espoleta, varri da Barra os casacas vermelhas (você já viu um soldado inglês com túnica vermelha e mosquete na Barra? Pois é, eu fiz um bom trabalho). Meses mais tarde, ganhei uma faca de caça e uma bússola, e explorei os areais e arbustos de Itapuã como se estivesse me escondendo de shawnees. Os areais não existem mais, foram soterrados pela especulação imobiliária. A criança também não existe mais, ou está escondida esperando dias melhores para voltar.

O tempo passou e vieram outros seriados. Mas olhando para trás, com a falsa sabedoria que os anos me deram, acho que nenhum foi tão importante quanto “Daniel Boone”. Não que eu conheça bem o mundo dos seriados mais modernos, com umas poucas exceções; mas tenho a impressão de que, mesmo se conhecesse, não faria diferença. Não existem mais seriados como aquele: feitos para toda a família, seguindo uma série de normas e tabus e o que jovens rebeldes chamariam de hipocrisia, enquanto vendem valores tão paradoxais quanto honra, honestidade e altruísmo de um lado, e do outro a justificativa da invasão e roubo das terras dos índios; aliás, nem mesmo índios existem mais, inventaram uns substitutos para eles chamados nativos americanos. Por tanta coisa, por tanta água passada debaixo da ponte, um seriado como esse seria inviável hoje em dia, ao não condenar peremptoriamente a expansão inglesa no território americano, ao não incluir a devida proporção de negros e gays, ao não inventar mulheres protagonistas em outro tempo histórico, porque o diálogo a ser feito é com dias bem diferentes.

Pois é, ultimamente tenho pensado nessas coisas.

Assistir a esses episódios me faz lembrar também que, para mim, o YouTube é a grande maravilha da internet. Essa invenção dos diabos, essa tal de internet deu ao mundo coisas ruins e deletérias como o Facebook e o Twitter e é a causa de um mal-estar civilizatório geral, e vai demorar muito tempo até a humanidade conseguir usar essas ferramentas de maneira minimamente racional. Mas deu também o YouTube. Eu não paro de me impressionar com o acervo que as pessoas disponibilizam nele. É a melhor coisa a assistir num aparelho de TV hoje, muito melhor que qualquer Netflix na vida. Nos últimos anos, assisti a coisas inimagináveis: seriados que assisti há décadas, desenhos de que já não lembrava, capítulos finais de novelas que 40 anos atrás eu odiava, comerciais inesquecíveis, tutoriais de quase tudo.

Uns anos atrás, em Miami, assisti num desses canais de TV aberta a um episódio de “Ilha da Fantasia” que tinha visto em 1980, e que tinha me ensinado que havia existido uma sujeita chamada Mata Hari. Foi uma surpresa agradável. Mas o fato é que no mundo analógico e unidirecional em que cresci e do qual nunca saí completamente, demorou 34 anos para ver aquilo de novo, e mesmo assim por acaso. Isso me lembra que cresci numa época em que momentos como esse eram raros e, talvez por isso, mágicos. O YouTube torna isso quase normal, fácil, realiza o sonho de criança de muita gente — ao mesmo tempo em que tira quase toda a sua importância.

Venho de um tempo em que essa universalidade da oferta não existia. Se você perdesse um episódio do seu seriado favorito, um capítulo de sua novela predileta, dificilmente poderia assistir a ele em outra ocasião. Isso acabou, mas eu sou um filho do meu tempo, e assim me dou ao direito de me maravilhar a cada edição do Globo Rural que assisto no Globoplay. E a cada episódio de “Daniel Boone” que alguém disponibiliza no YouTube.

Assistir a “Daniel Boone” e aos aforismos pseudo-índios de Mingo me faz lembrar também que escrevi aqueles posts há 15, 10 anos. De lá para cá, tanta coisa mudou. Fess Parker morreu, até a Patricia Blair morreu. Incrivelmente, além do Darby Hinton e da Veronica Cartwright, mais jovens, está vivo Ed Ames — embora não por muito tempo, aparentemente. Mais um indício mal-vindo de que o tempo passou. A mulher de cabelos de fogo como a palha do milho que eu cobiçava na flor dos meus 8 anos morreu em 2013, aos 80. O homem que certamente foi um modelo para mim morreu antes e ainda mais velho. Isso me faz ter consciência de que o tempo está passando. E me faz lembrar de coisas não tão boas.

“Daniel Boone” é referência para parte da minha geração e da geração anterior à minha. Gente que viu o seriado como hoje assistem a Walking Dead, às vezes como “televizinho”, na maior parte das vezes em TVs preto e branco. Fazem parte de um tempo que, a cada nova descoberta, a cada nova tecnologia, parece mais e mais distante, até pré-histórico.

Essas pessoas, assim como eu, hoje têm mais tempo para trás do que pela frente. Elas vão desaparecer, pouco a pouco. E é aí que toda essa tecnologia nova, que me permite o resgate de algo tão velho, se mostra anacrônico, quase patético. É possível que todo esse material que colocaram na internet sobreviva, que continue aí enquanto o coronavírus não nos mata a todos. Mas breve não vai ter mais função, porque as pessoas não estarão mais interessadas em “Daniel Boone” ou “Sítio do Picapau Amarelo” ou “Túnel do Tempo”.

Talvez essa seja uma das razões por que, nesta quarentena meia boca, eu goste tanto de assistir a “Daniel Boone” com minha mãe. Porque por 50 minutos voltamos 40 anos no tempo, e assistimos a um tipo de filme que não se faz mais, e isso congela o tempo e o faz eterno, imutável.

Numa quarentena, eu não preciso de muito mais que isso.