Lá na Bahia

João Ubaldo pergunta a minha mãe:

“Você vai beber o quê? Cerveja, uísque?

Meu pai responde por ela:

“Nada. Ela não bebe.”

Glauber se incomoda:

“E é você quem responde por ela?”

Meu responde novamente:

“É. Alguém tem que ficar lúcido para abrir a porta.”

A banca da esquina

As pessoas lamentam tanto o fim das livrarias e dos sebos, e quando um deles fecha sai notícia em jornal e as pessoas choram o fim de uma era, essas coisas que caem bem no seu perfil do Facebook porque lhe fazem parecer mais lido do que você é.

Mas ninguém chora quando fecha uma banca de revistas.

E elas estão fechando. Uma a uma, bancas que estiveram na mesma calçada por duas, três gerações amanhecem fechadas, para nunca mais serem abertas, em ritmo muito mais acelerado que as livrarias.

As bancas de revista são, de longe, as maiores vítimas da internet. São vítimas indiretas, porque a internet mira os jornais e revistas impressos, e durante muitas décadas esses foram a própria razão de ser das bancas. O livro impresso vai continuar, não importam quantos Kindles inventem. Mas revistas e jornais, às vezes inúteis no dia seguinte, encaram um fim inexorável e apenas se perguntam quando virá o dia em que a última prensa rodará a última edição.

Não posso falar quanto aos outros, mas eu certamente comprei muito mais revistas do que livros ao longo da minha vida. Cheguei a ter conta nas duas bancas de um sujeito chamado Florêncio, contas que eu tentava honrar britanicamente por não terem nada de oficial, nenhuma promissória, nenhum recibo; eram contas feitas no fio do bigode, e sempre achei que minha palavra valia mais que minha assinatura. Quando quebrei pela primeira vez, aí pelos 19 anos, a sua foi a primeira conta atrasada que paguei quando voltei a colocar as mãos em algum dinheiro — parco, mas dinheiro ainda assim.

Por isso acho um esquecimento injusto, quase canalha, quando vejo pessoas carpindo o choro fácil diante das mortes das livrarias, mas esquecendo das bancas. Elas fazem parte da minha vida como as livrarias; mas eram mais comuns, mais diversas e mais presentes, e se o conhecimento que se adquire numa livraria é mais sólido, o das bancas é mais variado, mais urgente, mais palatável. Não foram poucas as vezes, nem têm sido, em que deixei de lado um Proust para acompanhar as aventuras do Batman ou um artigo na New Yorker.

Houve um tempo em que além dos diários sergipanos as bancas vendiam os principais jornais do sudeste — hoje, o único jornal de fora que ainda circula por aqui é o A Tarde de Salvador, ele mesmo uma sombra pálida do que era há 30 anos. Lembro de ter comprado, em seus últimos dias, o Última Hora, o Notícias Populares e outros jornais que já se foram, como a Tribuna da Imprensa, o Jornal da Tarde e a Gazeta Mercantil. Mas comprava, principalmente, a Folha de S. Paulo e o Jornal do Brasil, e o Estadão quando passou a circular também às segundas-feiras com a coluna do Paulo Francis.

Os jornais que vinham de avião chegavam às bancas a partir das quatro da tarde, mais ou menos. O Zero Hora, que era vendido apenas na banca do Moacir e na do Careca, velho comunista, chegava apenas no dia seguinte, o que reforçava a minha teoria de que o Rio Grande do Sul não ficava no Brasil. O JB, especificamente, era leitura obrigatória no fim de semana, por causa dos cadernos Livros e Idéias — e um sinal grave de que esse tempo é cada vez mais distante é que eu não consigo mais lembrar qual circulava no sábado e qual circulava no domingo. Um pouco mais tarde, os primeiros tempos do Mais! da Folha de S. Paulo representaram os últimos suspiros de razoabilidade e acessibilidade no jornalismo cultural tapuia.

Olhando para trás, parece haver algo de estranho em comprar um jornal no fim da tarde. Àquela época já não existiam vespertinos, a televisão já tinha acabado com eles. Mas eles eram tão melhores que os jornais locais — a Gazeta de Sergipe onde meu pai tinha sido preso em 64 e o Jornal de Sergipe e o Jornal da Manhã, os três já extintos, e o Jornal da Cidade —, e o tempo da informação era tão diferente, que ler o jornal à noite valia a pena, sempre.

Mas eram as revistas que faziam valer a pena ir com frequência a uma banca de revista, quando menos para checar o que havia saído nos últimos dias. A Veja, a IstoÉ, a Senhor (e a IstoÉ/Senhor), a Playboy, as tantas e tantas e tantas revistas em quadrinhos que comprei ao longo da vida, primeiro Disney, depois Marvel e DC, e ao menos um exemplar de virtualmente toda revista interessante que foi publicada com regularidade naquelas décadas; uma banca de revistas era a promessa de um mundo diferente.

Foi numa banca, não numa livraria, que um jornaleiro mais compassivo diante das dificuldades enfrentadas por dois adolescentes ensinou a mim e a Rone como abrir o plástico das Mini-Fiestas e depois fechá-las, queimando o plástico com um isqueiro, multiplicando o número de revistas que podiam ser lidas e aprendendo indecências inesquecíveis. Para quem descobriu assim esses truques, é ainda mais espantoso que hoje pornografia não seja mais algo de que se vá atrás sub-repticiamente, mas sim algo de que se precise proteger em tempos de internet, uma eterna ameaça de virii e trojans que parecem se materializar em cada pop up.

Tantos títulos que sumiram no tempo. Revistas como a Somtrês, Manchete, Be-a-Bá da Eletrônica, Bizz, Set, os quadrinhos Disney, os álbuns de figurinhas que iam além da Copa do Mundo; tantas editoras, também, como a Ebal e a Vecchi. E mesmo tantos livros comprados em bancas, mais baratos num tempo em que não havia Amazon.

O fim de quase todos os títulos e editoras que citei não tiveram nada a ver com o fim das bancas; mas isso não importa mais. O que acontece hoje é algo muito mais grave, mais dolorido, e é isso que mais se deve lamentar. O que mudou foi mais que o meio. A informação condensada em um único espaço, que tornava mais fácil a formação do pensamento, deu lugar à fragmentação total e irremediável, aos bits espalhados por todos os quadrantes. É um mundo mais vasto, mas ao mesmo tempo mais ignorante, mais cansado, enfastiado de informação. Talvez eu esteja velho; mas cada vez mais prefiro o mundo mais fácil e mais simples que tive a sorte de deixar para trás.

Nas bancas, em outros tempos, chegávamos a comprar enciclopédias: lembro da Novo Conhecer, da Biblioteca do Estudante, finalmente da Informática Hoje. Ou dos fascículos que tentavam me ensinar a tocar violão, Toque e Acorde. Era nas bancas também que comprávamos cigarros, primeiro “a retalho”, varejo, e depois maços inteiros que aos poucos duravam cada vez menos. Hoje poucas são as bancas que ainda vendem cigarros. Cigarros, como revistas, estão desaparecendo.

É incômodo ver bancas que em seu auge traziam uma diversidade imensa de produtos encolherem e desaparecerem. A banca que ficava no Largo da Barra, por exemplo, cujo dono, Renato, era a cara do Emerson Fittipaldi e que nos anos 80 vendia jornais estrangeiros, trocava dólares para os turistas e tinha até o luxo de um telefone. Ou do Moacir, quase em frente ao Cine Aracaju, também com sua cota imensa de jornais de todo o país e revistas de fora. Mas morreu o Cine Aracaju e morreu Moacir, e a banca do Renato, já uma sombra esmaecida do que fora por décadas, desapareceu durante a última reforma do largo. Assim como elas, tantas outras bancas definham, já sumiram — e ninguém parece ter chorado por elas. Dois anos atrás, tomei um choque de ver que a banca da rodoviária de Salvador, amiga velha de muitos anos, tinha fechado. Ninguém parecia ligar. Na verdade, ela fechou porque ninguém ligava.

Uma das bancas mais antigas de Aracaju, ao lado de um hipermercado, ainda tenta resistir. Vende jornais e revistas, também. Mas tenta desesperadamente diversificar sua atuação, se transformando também em uma espécie de armarinho, de venda de quinquilharias. A dona da banca entendeu que o seu tempo passou. Quem não entende sou eu.

Adeus ao Pato Donald

É mais ou menos como se, de repente, você recebesse a notícias de que seus avós estão se separando.

Na semana passada, a notícia de que a Editora Abril tinha perdido os direitos de publicação dos personagens Disney no Brasil chocou os fãs mais antigos. A manchete do Planeta Gibi, que deu a notícia, resume tudo: é o fim de uma era.

Eu cresci com esses quadrinhos, e os considero muito melhores que os da Turma da Mônica; enquanto Carl Barks e Don Rosa nos apresentam o mundo, Maurício de Sousa nos regala com as pequenas coisinhas fáceis de um mundo restrito à rua do Limoeiro. Para a Abril, no entanto, esse episódio deve ter um peso ainda maior.

A Abril nasceu com a revista do Pato Donald, em 1950. Victor Civita costumava parafrasear Walt Disney ao dizer que “tudo começou com um pato”. Há uns 20 anos, uma matéria com um colecionador das revistas do Pato Donald no Brasil, no caderno de cultura da Gazeta Mercantil, contava que a publicação do Pato Donald era uma questão de honra para a Abril, algo que transcendia os meros interesses comerciais; tive a impressão de que os Civita viam o Pato Donald como o Tio Patinhas via a sua moedinha número 1. A notícia então se torna ainda mais melancólica. Mesmo sendo a Abril, uma editora cujos desserviços para o país são numerosos demais para contar, é impossível não ficar triste. É um pedaço da história de um bocado de gente que vai embora.

Aí pela segunda metade dos 70 havia umas quatro editoras que publicavam quadrinhos de maneira mais consistente. A Vecchi, com seus faroestes tipo Tex e Zagor e os personagens da Harvey (além da Mad); a legendária Ebal, que publicava entre outros Tom e Jerry, a DC, Epopéia Tri e Zorro; a RGE (depois Rio Gráfica e finalmente Globo, quando a rede carioca conseguiu comprar a Editora Globo gaúcha), que publicava a Marvel, Fantasma e Mandrake, Sítio do Picapau Amarelo; e finalmente a Abril, a melhor de todas, com uma qualidade editorial muito superior às concorrentes e que tinha também a Turma da Mônica.

Uma a uma, essas editoras foram desaparecendo. A Vecchi faliu no início da década de 80. A Ebal agonizou durante anos, e quando fechou já não tinha nenhuma relevância. Em 1985 a Abril parecia ser a dona do mundo: Disney, Mônica, Marvel, DC — tudo parecia estar em suas mãos. É verdade que esse fastígio absoluto não durou muito tempo e logo depois a Turma da Mônica foi para a Globo; mas ainda assim a Abril era a grande editora de quadrinhos do país. No início dos anos 2000 foi a vez dos super-heróis irem para a Panini, e a partir daí a decadência parece ter se acelerado, inexorável.

Mais ou menos nessa época, uma olhada nas bancas deixava claro que os quadrinhos Disney passavam por uma fase muito ruim. A Abril tinha deixado de produzir histórias da Disney já fazia algum tempo, e a qualidade das revistas era muito inferior ao padrão a que ela havia nos acostumado ao longo de décadas. (Curiosamente, foi nessa época que, graças ao Inagaki, descobri Don Rosa.)

Mas de lá para cá a situação havia mudado, e isso é o mais irônico. Parecia que a Abril tinha encontrado uma saída comercial para a crise óbvia no setor de quadrinhos, publicando edições de luxo com o melhor da sua produção e reedições dos manuais que tinham feito a alegria das crianças dos anos 70. Ela tinha se voltado para um segmento mais específico e de maior poder aquisitivo — velhos saudosistas e fãs de quadrinhos, especificamente. Além disso, tinha ressuscitado alguns dos seus títulos clássicos, como Disney Especial e Almanaque Disney, embora sem a qualidade editorial de outrora — o novo Almanaque Disney, por exemplo, não tinha nada a ver com a revista original e era muito inferior.

Eu não faço ideia do que está acontecendo, obviamente. Mas os números dos prejuízos recorrentes da Abril, impressionantes, devem servir de indício. A Abril está em processo de falência há muito tempo, e não para de encolher. O que foi um império simbolizado pelo prédio imponente ao lado da rua do Sumidouro está implodindo de maneira consistente há muitos anos, e quando ela chega ao noticiário é com demissões e “reestruturações”, uma palavra bonita que nunca significa outra coisa que não encolhimento. Normalmente, essas notícias são lamentadas por jornalistas que vêm seu mercado de trabalho encolher, ou comemoradas por quem, como eu, tem verdadeira ojeriza ao papel malfazejo da Abril na política nacional. Mas dessa vez não há nenhum aspecto positivo na notícia.

Porque em tudo isso há um aspecto que não devia passar batido, e que deve ajudar a dar a dimensão real desse acontecimento: nos últimos 68 anos, em nenhum momento deixou de haver uma revista Disney nas bancas brasileiras. Isso não aconteceu sequer nos Estados Unidos, onde a Disney passou alguns períodos sem ser publicada. É isso que estamos perdendo agora. É bem provável que os quadrinhos sejam assumidos por alguma editora — a melhor aposta seria a Panini, que já tem todo o resto, mesmo —, e quem gosta dos personagens que ajudaram a definir a visão de mundo de gerações vai continuar sendo servido, talvez até melhor.

Mas há um pessoal que gostava, também, da Disney na Abril. Talvez porque ver o Pato Donald ou o Mickey numa banca de revistas lhes desse um pouco de segurança e familiaridade em um mundo que não para de mudar e que, nos últimos tempos, passou a desafiar até os mais otimistas. Talvez porque mesmo em tempos de Facebook a desgraça dos outros não seja motivo de regozijo. Eu me junto a eles.

Olivetto

Saiu uma autobiografia do Washington Olivetto, e junto obviamente saíram as esculhambações devidas. A mais pesada — entre as que li, ao menos — foi do Mário Sergio Conti na Folha. O título do artigo deixa claro o que se pode esperar dele: “No umbigo da Washingtonlatria”. Eu não sabia do livro até ver a matéria, e me assustei com o vitriolismo do texto. Talvez eu esteja completamente equivocado, mas tive a sensação de que Conti nutre ódio genuíno e pessoal a Olivetto, e não cabe aqui tentar descobrir as razões.

De alguma forma, me senti enviado de novo ao fim dos anos 80, começo dos 90, quando jornalistas e publicitários viviam às turras disfarçadas. Jornalistas gostavam de dizer que tinham uma missão social, que buscavam imparcialmente a verdade, essas coisas que a história recente do país tem passado na cara deles com desprezo, mas também um publieditorial aqui e ali para garantir o leitinho das crianças. Publicitários, por sua vez, então bem pagos e dedicando-se a um tipo curioso e provinciano de sofisticação, se achavam mais do que eram: fingiam que não eram os mascates, do pior tipo, que somos.

Passei os olhos no livro dia desses. É o tipo de obra que eu não compraria, porque é essencialmente o que o Conti diz dele: uma sequência pueril de “eu fiz”, “eu sou”, “eu brilho”. Não acrescenta nada à publicidade, não ensina nada. Está longe de um Ogilvy on Advertising, ou mesmo dos livros dos brasileiros Júlio Ribeiro e Alex Periscinotto, por exemplo. Sendo Olivetto quem foi, teríamos o direito de esperar, ao menos, reflexões e lições sobre o ofício de criador, ou pelo menos da publicidade como negócio; no entanto, encontramos apenas algo que se assemelha a uma “auto-hagiografia” glamourizada e edulcorada de Olivetto. Isso quase reforça o veredito do Conti. Quase.

Porque antes de tudo é necessário lembrar uma coisa simples: Washington Olivetto é maior que Mario Sergio Conti, no sentido de ser infinitamente mais importante para a publicidade brasileira do que o Conti o é para o jornalismo pátrio. E olha que a concorrência é desleal. A publicidade brasileira é, ou pelo menos foi, uma das melhores do mundo, digna, competente, talentosa; o jornalismo brasileiro é um desfile macabro de Chateaubriands, Marinhos, Civitas, Alzugarays, e isso para ficar apenas nos capi dei tutti capi; entre os soldados a lista é ainda mais insalubre, indo de Albericos da Souza Cruz e Mírians Leitão ao jornalista de província que escreve qualquer coisa em troca de uma assessoria ou um contrato de publicidade.

Por isso é injusto, talvez, esperar mais do Olivetto do que aquilo que ele sempre se propôs a fazer. Boa publicidade consiste em descobrir o que há de singular e verdadeiro no óbvio, e utilizar isso para vender. Fazer isso, ao contrário do que parecem pensar, não é tão simples. As pessoas confundem o óbvio com o medíocre, infelizmente. Washington Olivetto entendeu isso e por essa razão foi o maior publicitário da história brasileira.

Deslumbrado com a elegância do texto de um Neil Ferreira, ou a consistência de um Julio Ribeiro, durante muito tempo me recusei a reconhecer esse fato simples. Para mim Olivetto era apenas o símbolo da geração dos 80, aquela que consolidou a publicidade como  uma profissão digna, até desejável. Mais que isso, talvez: Olivetto foi fundamental para fazer do criador o grande protagonista da publicidade, ainda que abusando da autopromoção além do limite do ridículo — muitas vezes incentivado por essa mesma imprensa que gostava de se alardear superior, mas que gastou hectolitros de tinta em textos a respeito das gravatas ridículas que ele usava.

Olivetto foi o primeiro sujeito que se assumiu orgulhosamente, ostensivamente, até ofensivamente como publicitário. Orígenes Lessa criava anúncios para poder comprar o tempo necessário para escrever seus romances. Ricardo Ramos também. Uma multidão de jornalistas em todo o país se aventurou, bissextamente ou não, pela publicidade porque o jornal não pagava. Mas Olivetto não era um jornalista com contas atrasadas ou um escritor frustrado. Ele era publicitário. Não vinha do jornalismo, do direito, não era vendedor. Ele criava anúncios e tinha orgulho disso. Eu sempre tive a impressão de que só vagabundo se mete com publicidade, gente que não sabe fazer conta de dois mais dois; mas Washington Olivetto, com sua egolatria e sua vaidade, deu dignidade moral à profissão. Cada um dos meninos que, coitados, saem todos os anos das faculdades de comunicação lhe deveriam prestar reverência todos os dias — ou rogar uma praga, não sei bem.

Olivetto emergiu de uma geração singular da publicidade brasileira. Um desses estudiosos universitários poderia expandir uma tese que defendo há um bom tempo: a leveza provocativa da abordagem publicitária da Doyle Dane Bernbach nos Estados Unidos encontrou um terreno fértil no Brasil e possibilitou uma abordagem criativa única. Uma geração inteira parece ter se empenhado em criar uma propaganda que era ao mesmo tempo profundamente brasileira e universal. E brilhante.

Aqueles anos 70, que se estenderam 80 adentro, foram impressionantes. Houve tantos grandes publicitários, dos quais cito uns poucos: Neil Ferreira que morreu ano passado e chegou a comentar neste blog (para meu orgulho eterno); Júlio Ribeiro que também morreu há pouco; Duailibi, Petit, Zaragoza; Enio Mainardi que era um publicitário genial mas que parece que vai entrar para a história pelas imbecilidades que fez, a defesa intransigente do porte de arma e o filho Diogo; os baianos Rodrigo Sá Menezes e Duda Mendonça, e um Nizan Guanaes começando a aparecer, como a Christina Carvalho Pinto. Foram esses sujeitos (e mais uns tantos, claro, que a lista é grande demais para ser colocada aqui) que criaram aquela que chegou a ser considerada a segunda melhor propaganda do mundo, perdendo apenas para os ingleses porque os ingleses, bem, os ingleses sempre foram hors-concours. E nessa geração, Olivetto foi especial.

Eu acompanhei a sua trajetória, mesmo quando ainda não sabia que acompanhava. Sem saber de nada, vi alguns dos seus grandes momentos, como os primeiros comerciais do Garoto Bombril no final dos anos 70. Fiquei sabendo de sua existência em 86, quando uma matéria na Veja contava que ele tinha saído da DPZ para montar uma agência chamada W/GGK; a partir daí lembro da maior parte das suas grandes campanhas (até porque ele fazia questão de assinar seus comerciais): o primeiro sutiã que hoje é chamado de machista mas na época era de uma sensibilidade incrível, o comercial “Hitler” da Folha (tirado, acho, do livro do Menna Barreto, “Criatividade em Propaganda”), os anúncios excelentes para o SBT. Lembro da criação da W/Brasil em 89, um nome maravilhoso para uma agência que representava com perfeição a mística da publicidade dos anos 80.

Pensando bem, o parágrafo acima é desnecessário porque a história de Olivetto é conhecida. Ele a repete há uns 40 anos, e há pelo menos uns 20 isso é tudo o que ele diz: as mesmas coisas, das mesmas formas. Que começou na publicidade por causa de um pneu furado, que não saberia fazer marketing político, que é preciso estar atento ao povo, que lê Contigo e Amiga, essas coisas que foram interessantes na primeira vez que foram ditas, mas que aos poucos se tornaram redundâncias chatas, a mesma piada repetida e repetida e repetida, apenas ilustrando o seu envelhecimento e a perda de importância do seu papel na publicidade. Durante anos, Olivetto esteve aquém do limite do ridículo porque oferecia um trabalho à sua altura, até maior. Ultrapassou esse limite quando a vaidade ultrapassou a sua obra. E por isso, epíteto do criador publicitário, Olivetto também oferece involuntariamente uma lição a quem entra nesse mercado: criação publicitária é mister ingrato, adequado especialmente a jovens com fome de conquista do mundo.

Essa redundância acompanhou a W/Brasil. Já no final dos anos 90 ela parecia ter desenvolvido uma fórmula única para todos os seus comerciais: sempre uma coisa engraçadinha, com uma gag no final. Uma fórmula muito limitada, diga-se. Seu primeiro comercial para a Vésper, por exemplo, era inadequado, impertinente e perigoso: se lembro bem, uma série de cenas de bichos tirados do Discovery Channel e, ao final, um sujeito com uniforme da empresa dizendo algo como “Mãe, é isso que eu faço”. Pensávamos que veríamos um comercial de uma empresa telefônica, mas fomos apresentados a um fiscal da natureza, e eu não tenho dúvidas de que esse comercial equivocado, feito para uma empresa que nascia do zero para concorrer com a Embratel e sua estrutura construída ao longo de muitas décadas, deu sua pequena contribuição à debâcle da empresa.

Em 2001, se não me engano, a W/Brasil atendeu a ANEEL, ou algo assim, e se mostrou absolutamente inepta. Ainda lembro de um comercial que eles veicularam em pleno apagão e racionamento de energia dos anos FHC. Um comercial absurdo, aferrado à fórmula de Olivetto, fórmula que exigia uma gag no final. Se não me engano era um casal que conversava com um vendedor de pizza. Ali, a agência simplesmente não sabia o que estava fazendo, a verdade é essa, não entendia que precisava de uma abordagem mais séria. Ou pior, talvez: tinha acreditado no mito de Olivetto e passado a achar que mostrar um filme “criativo” era mais importante que resolver o problema do cliente.

Já então Olivetto tinha deixado de me interessar. Seu tempo já tinha passado. Tivemos um lembrete disso quando, uns tempos atrás, ele deu uma declaração envolvendo aspectos feministas que foi desancado nas redes sociais. Eu compreendi o raciocínio dele, e não discordo; mas ele não entendeu que nestes tempos estranhos a maneira de falar as coisas, e até mesmo as coisas em que se fala, precisam obedecer a critérios e mecanismos mais complexos e delicados. Olivetto dizia ter orgulho de ter “o dedo no pulso no Brasil”; era óbvio que não tinha mais.

Mas quando, há alguns meses, descobri que ele tinha se aposentado e ido morar em Londres eu fiquei chocado, porque tive a sensação de que uma era se encerrava definitivamente. Com atraso, talvez, porque o negócio publicitário mudou muito nas últimas décadas e não permite mais o tipo de protagonista que Olivetto era e preconizava. Além disso, já há algum tempo está claro que a geração de Olivetto também tinha criado um monstro. E não me refiro à publicidade ruim ou à apenas correta que sempre se fez e sempre se fará, agora cada vez mais respaldadas pelas novas ferramentas de marketing e pela própria evolução dos mercados. Falo das centenas de redatores e diretores de arte que hoje fazem serão criando peças fantasmas para concorrerem a prêmios em festivais, que não resolvem problema nenhum, que não contribuem em nada para absolutamente nada, que trabalham por miséria porque acabam acreditando num mito que, hoje, ninguém sabe mais direito qual é. A publicidade brilhante que o Olivetto ajudou a criar tinha se transformado em um clone disforme.

Mas isso não diminui, em nada, o papel do sujeito na história. E pensando no assunto, para mim já não era possível negar o que devia ser óbvio há muito tempo: ególatra ou não, velho ou não, Olivetto foi o maior publicitário da história do Brasil, e dificilmente haverá algum maior que ele, porque aquele tipo de publicidade morreu, as mídias mudaram, de certa forma as coisas se apequenaram, depois de terem esgotado suas possibilidades. Como o próprio Olivetto.

Bruna Lombardi

Fiquei velho.

E cheguei à conclusão de que a única certeza na vida é a Bruna Lombardi.

Uns tempos atrás — mentira; isso foi há oito anos, mas o tempo para mim não passa mais como passava antigamente, o passado não tem mais meio-termo: ou foi ontem ou foi há muito tempo, o passado agora pode ser o que eu quiser, como quiser — passei uma noite vendo as novelas da Globo, depois de uns dez anos sem sequer ter TV aberta em casa. Tomei um susto porque não conhecia os atores novos, e os que conhecia d’antanho, outros tempos de dois canais que entravam no ar às nove da manhã, esses estavam velhos, velhinhos cujo ápice tinha passado. E se o tempo tinha passado para eles, provavelmente tinha passado para mim, também.

Aquilo me lembrou que à medida que meus dias neste vale de lágrimas vão encurtando, o meu passado se torna mais longo que meu futuro. É uma sensação estranha.

Deve ser a idade; mas chega o momento em que a gente precisa admitir que tem menos tempo pela frente do que para trás, que os anos já vividos são mais numerosos do que os que ainda se vai viver. Percebi isso quando entendi que a maneira como eu contava o tempo tinha mudado.

Resumindo, isso foi em 2010. Foi quando percebi que 1990 tinha sido vinte anos atrás.

Antes disso, à medida que os anos passavam eu vinha me acostumando aos poucos, de maneira indolor, a números cada vez mais inflacionados. Ainda lembrava de quando 1977 tinha sido “o ano retrasado” — lembrava do momento exato em que me assustei ao perceber isso, numa manhã chuvosa na rua John Kennedy, na Barra (em frente ao bar do Chico que ainda está lá, com o mesmo cheiro único), e sabia que essa tinha sido a primeira vez em que me apercebi que o tempo, afinal, era e não era relativo. Mas enquanto 1977 tinha sido há cinco, dez, trinta anos, estava tudo bem, o mundo continuava o mesmo. Porque quando eu lembrava disso, lembrava de um momento em que ainda era criança, e havia uma diferença muito grande entre o adulto assustado com o tempo que tinha passado e aquele menino perambulando pela Vila Velha do Pereira.

Essa diferença permitia que aquele momento se congelasse para sempre, enquanto permitia uma elasticidade e conforto na percepção do tempo que outros dias não permitiriam. Porque enquanto o tempo passava eu mudava, aos poucos mas com constância, e isso criava um universo de distância entre um adulto e uma criança, algo que os separa e os torna independentes, uma ruptura que, paradoxalmente, estabilizava as coisas. É um universo que pode ser de dois, cinco, vinte, cinquenta anos; não faz diferença, porque são pessoas diferentes. Em 1987, em 1997 ou em 2007, 1977 continuava no mesmo lugar e eu era outra pessoa.

Ao mesmo tempo, enquanto 1990 era o ano retrasado, ele continuava próximo, e o tempo não tinha passado para mim. (As pessoas reclamam que o tempo está passando mais rápido. A verdade é que a memória tende a fixar apenas o que é novo; e o ser humano não lembra das coisas — lembra na verdade da última vez que lembrou das coisas, e por isso as memórias tendem a mudar com o tempo. Por isso, quando se tem oito anos, seis meses duram uma eternidade; é tudo novo e a mente tem que processar muita coisa. Mas quando ficamos adultos, e como há pouca coisa realmente nova entre o que acontece, a memória tende a processar apenas o inédito e o tempo parece mais curto.)

Mas quando 1990 se tornou vinte anos atrás, passei a lembrar de um Rafael adulto, ou quase. Era o Rafael de então, o mesmo de hoje; o Rafael que estava se tornando Rafael Galvão porque começava a ganhar a vida escrevendo e tinha que assinar com um nome diferente do nome do pai. Era o mesmo Rafael, só que vinte anos mais velho.

Há uma infinidade de experiências e percepções novas que constroem um abismo quase intransponível entre o Rafael de 1977 e o de 1990; mas quase nenhuma entre o de 1990 e o de 2017. Há experiências novas, sim; mas o que importa é a maneira como você reage a elas, e essa maneira já não muda.

Aparentemente, o mundo em que vivo é o mesmo em que vivi nos anos 70, nos 80, nos 90 ou no início deste milênio, quero crer. Internet, satélite, celular, saco plástico no supermercado, freio ABS e um bocado de eletrônica no carro? Isso não é nada. Balangandãs, só. Uma roupa diferente, o rayon que era moda e depois virou brega, os jeans verdes e as camisas verde-limão no intervalo, dos quais ficou apenas o orgulho por não tê-los usado. Balangandãs, bugigangas do tempo.

Mas ao mesmo tempo, tanta coisa ficou para trás, tanta coisa mudou. À medida que o tempo passa, entendo que lembro de tempos diferentes, que garotos de hoje não conseguem entender. De tempos piores e melhores, tempos em que as pessoas tinham aprendido a se comportar com medo do que os generais iriam dizer, mas também tempos em que as pessoas não se irritavam porque não conseguiam lhe encontrar ao celular. Tempos em que era educado oferecer um cigarro antes de fumar, de cinzeiros na mesa de trabalho, tempos de ler o jornal e ficar com as mãos sujas de tinta. Esses meninos, a quem o mundo vai jogar o fardo de lhe carregar, não podem ver a queda do muro de Berlim, não sabem o que foi o dia 15 de novembro de 1989, não viram a Challenger explodir a professorinha, não puderam acompanhar as mudanças que eu vi, não entendem o meu mundo. Não podem entender, e para eles o impeachment de Collor é tão distante quanto o suicídio de Vargas era para mim. A eles o mundo que para mim ainda está em construção lhes foi dado de porteira fechada.

Muita gente enfrenta isso dizendo que “minha infância foi melhor que a sua”, tentando disfarçar o fato singelo de que estão ficando obsoletos, de que a pele se torna mais flácida, de que as carnes despregam dos ossos, de que os cabelos cada vez mais brancos rareiam, e de que sua infância foi apenas a que ele pôde ter, assim como a de hoje é somente a infância possível a esses meninos. Mas não há enfrentamento possível. O tempo passa, você está mais perto da morte, e ela virá — embora eu insista que, ao menos no meu caso, isso não é garantido; embora às vezes desconfie de que há uma boa probabilidade de algo tão deselegante acontecer a mim, uma probabilidade talvez tão grande quanto a de eu, que não jogo, ganhar na Mega Sena.

O mais fascinante em tudo isso é que a mesma tecnologia que ressalta essas diferenças é a mesma que torna a velhice mais complexa.

40 anos atrás, o passado só existia na sua memória. Às vezes existia também na memória de um amigo com quem você conversasse eventualmente sobre os bons velhos tempos, lembra disso, lembra daquilo? Fulano, o que foi feito de fulano? O passado estava no seu lugar, agradavelmente distante mas guardado à sua disposição, e era tão pouco diante do presente, às vezes do futuro.

Mas então veio a internet e a humanidade passou a poder compartilhar com os outros as suas próprias lembranças, algo que jamais deveria ter sido permitido, como jamais deveriam ter aberto a caixa de Pandora. Para algumas pessoas, a principal mudança que a tecnologia trouxe não foi o futuro: foi o passado. Não é o YouTube que vejo na minha TV, e transforma a televisão em algo assíncrono, que faz essa mudança: são os programas que encontro nele, programas que vi há 40 anos e que agora posso ver de novo, iguais ao que eram e diferentes do que eu lembro. É essa onipresença de um passado que se recria diante de mim, essa subversão da passagem do tempo que incomoda e reforça essa sensação.

A chegada do que devia ser o futuro, seu rebaixamento a presente, fez com que o passado mudasse, e por isso ninguém esperava. Às vezes pode-se ter a impressão de que as pessoas mudaram. Gente que nos anos 80 conseguiu a proeza de programar seu videocassete para gravar um filme na TV hoje compartilha não os filmes, mas os comerciais que os mutilavam, porque são eles que se tornaram raros. Tudo isso em um espaço de tempo que, do ponto de vista histórico, é menor que um átimo.

O passado faz escândalo diante de você, o seriado que você viu há 40 anos está no YouTube, no Mercado Livre alguém tenta vender a coleção de revistinhas que você leu aos sete anos, a edição exata do livro que lhe deu uma nova visão de mundo. E tudo isso adquire uma grandiosidade ainda maior porque esteve ausente da sua vida durante tantas décadas, que é como as coisas devem ser. O passado deveria ficar lá, no passado, recriado apenas no momento em que você quer recriá-lo, da maneira como você quer recriá-lo; e não jogado na sua cara, com a objetividade estúpida da gravação magnética, agora digital.

Rever agora um dos primeiros episódios do Sítio do Picapau Amarelo, que você viu há exatos 41 anos, quando você ainda nem era você, é uma experiência perturbadora. Porque a cena que você lembrava de um jeito na verdade ocorreu de outro, a câmera estava à direita, não à esquerda de Pedrinho. Tudo isso lhe tira o conforto de ter o seu passado do seu jeito; agora, nem o seu passado você pode ter. E do futuro, se o presente lhe foi generoso e lhe ensinou alguma coisa, você nunca foi dono.

Mas ao mesmo tempo o resto está lá, imutável; a mesma música, os mesmos rostos, as mesmas vozes. Há uma familiaridade inevitável e irrecuperável nesse reencontro, e ele transforma o não em sim, o sim em não, e ambos são reais e não deveria ser assim.

Porque tudo isso ajuda a romper o fluxo normal do tempo, a maneira como ele seguiu durante tantos anos, anos que você viu passar. Mas o tempo não é o verdadeiro criminoso: esse é você, a maneira como você o enfrentou ou se abandonou a ele, a maneira como os significados mudaram quando você se tornou menos do que sonhava em ser.

Por isso olhar para Bruna Lombardi me acalenta e me dá a sensação ilusória de que não, o tempo não está passando, é tudo a mesma coisa. Olhar para uma mulher que é bela em 2017 como era em 1977 dá uma sensação de permanência que poucas outras coisas em todo mundo podem dar. E sua visão oferece um aconchego que o mundo tende a lhe negar, às vezes com violência, às vezes com a delicadeza cínica e hipócrita devida aos velhos e anciães.

É quase como se 40 anos não se tivessem passado para Bruna Lombardi. Ela é a casa antiga da sua rua que ainda não foi demolida. Os mesmos 40 anos que passaram para você, e deixaram cicatrizes, quando maus; aprendizados, quando justos; saudades, quando bons.

E isso lhe dá a impressão falsa, que você traduz em esperança, de que o mundo ainda é o mesmo. Que essencialmente a beleza do mundo é a mesma beleza, e você é a mesma pessoa, ou pelo menos pensa que é, e isso é suficiente, tem que ser suficiente, precisa ser suficiente.

Sobre o crescimento do cristianismo em Roma

Os comentários do Thiago e do Serge sobre as razões para o crescimento do cristianismo em Roma merecem um post à parte. Ao contrário do Thiago, não acredito que o processo tenha sido mais ou menos como transformar Wall Street em um reduto marxista; ao contrário do Serge, acho difícil identificar, dentro do contexto histórico romano, a alegada superioridade do cristianismo. Essa, aliás, é uma noção bastante comum. É inerente às causas apontadas por Gibbon para esse crescimento, mas ele escreve dentro da tradição cristã, pressupondo ainda que inconscientemente uma certa superioridade doutrinária e histórica do cristianismo, e certamente não tem à disposição o volume de dados e análises que apareceram depois.

Primeiro é preciso entender o ambiente em que o cristianismo surgiu.

As religiões romanas, se podem ser chamadas assim, eram basicamente cúlticas, antes de doutrinárias. Mais importante que a crença em si era o cumprimento dos rituais. Cultuava-se um deus porque respeito lhe era devido; porque cumpria mantê-lo satisfeito para evitar que ele se irritasse e mandasse uma hecatombe como uma seca, uma enchente, ou mandasse sua sogra morar em sua casa; para conseguir alguma coisa — a cura de uma doença ou a vitória numa batalha, por exemplo; porque seus pais o cultuavam. Não era muito diferente do que vemos hoje. E como lembrou o Thiago, era algo mais cívico do que propriamente místico. Muitas vezes era o interesse da sociedade que estava em jogo, não a crença individual. Era uma espécie de imposto.

Um aspecto importantíssimo e determinante para o crescimento posterior do cristianismo é que os cultos romanos eram includentes. Ou seja, o fato de você cultuar o deus de sua família, ou da sua cidade, não implicava a necessidade de negação dos outros — nem da sua existência, nem da sua validade. Você podia passar a cultuar um novo deus sem precisar abandonar o que você já cultuava.

Além disso, a ideia de um deus hierarquicamente superior aos outros estava crescendo no mundo romano, em cultos como o de Isis ou do Sol Invictus, por exemplo. Se tornava mais comum, também, a visão dos diversos deuses e daemons como manifestações de um ser superior e único.

O mais próximo disso que temos hoje é o culto aos santos católicos. Você é devoto de Santa Edwiges, mas pode trocar para Santo Antônio daqui a pouco, ou apenas rezar para Santo Expedito em uma situação específica, e em nenhum momento você nega a santidade ou a força de Santa Bárbara ou Santa Zita. É fascinante como a Igreja Católica Apostólica Não Por Acaso Romana conseguiu acomodar, dentro de si, as práticas do paganismo romano.

Mas o cristianismo era diferente, e aqui está uma das principais razões para o seu crescimento: ele era excludente. Deus não pedia apenas que você O adorasse, como todos os outros: Ele também exigia que você negasse todos os outros. A bicha era ciumenta. Ninguém pode fazer ideia de quantas conversões se deram de maneira completa — para alguma parte dos convertidos, é bem provável que Jeová fosse apenas um novo deus superior aos outros, ao menos inicialmente —, mas de qualquer forma a exigência de exclusividade, mais cedo ou mais tarde, cobrava sua conta.

Um estudioso propôs uma situação hipotética que ilustra bem essa matemática. Imagine que numa cidade que cultua Minerva chegam dois pregadores, um cristão e um adorador de Esculápio. Cem pessoas vão assisti-los debater e pregar. No fim da sessão, cada pregador consegue convencer cinquenta pessoas. Parece um empate? Não é. No fim das contas, Jesus conseguiu cinquenta novos fiéis e não perdeu nenhum, porque mesmo os pagãos não se preocupavam em negar Sua existência. Mas Esculápio, Minerva e todos os deuses pagãos perderam cinquenta adoradores.

O cristianismo cresceu não pela oferta de aceitação de Jesus, mas pela exigência de negação dos outros deuses, como um cuco que precisa matar os filhotes dos outros para sobreviver.

De qualquer forma, isso só era importante, mesmo, dentro de outra característica única do cristianismo: o fato de que, acima de tudo, ela foi a primeira religião evangelizadora. Esse foi, talvez, o seu grande diferencial.

Nenhuma outra religião fazia algum tipo de esforço missionário. Conversões, como são entendidas hoje, eram um conceito estranho aos pagãos, porque para cultuar um novo deus não era necessária essa mudança absoluta de visão de mundo. Em termos religiosos, o mundo romano era extremamente tolerante.

Diferente delas, o cristianismo apostou no proselitismo. E mais que uma escolha, isso está no seu DNA.

Do ponto de vista da história judaica, Jesus foi um Messias absolutamente fracassado: não construiu reino nenhum, não resgatou nada. Ao contrário, foi executado por crimes contra o Estado. Assim, para seus seguidores a única forma de legitimá-lo como o Salvador foi fazer d’Ele não um rei secular, mas um redentor que veio salvar as almas imortais daqueles que O aceitam a partir do seu próprio sacrifício, ao mesmo tempo em que ameaça jogar todos os outros em algo pior até que Maricá. E se Deus amou a humanidade a ponto de sacrificar Seu filho por ela, era obrigação de todos os seus fiéis salvar essa humanidade, levar a ela a Boa Nova, dar-lhe a chance de se salvar.

Nisso, os cristãos estavam sozinhos. De certa forma, é quase como um time ganhando um jogo por WO.

O cristianismo cresceu no boca-a-boca, na convivência entre cristãos e pagãos, no trabalho de formiguinha. Cresceu no esforço sincero, altruísta e fanático dos fiéis para trazer mais ovelhas ao rebanho do Grande Pastor, e para isso é provável que a vida comunitária dos cristãos, os valores que professavam e sua ética social tenham tido algum papel. É muito fácil entender como funcionava: não é como uma Testemunha de Jeová batendo na porta de desconhecidos. Em vez disso, pense na sua vizinha bem-intencionada, sempre disposta a lhe ajudar sem pedir nada em troca, que vive lhe dizendo como a Igreja Universal melhorou sua vida, como tirou seu filho das drogas e salvou o emprego do seu marido — pense nela lhe chamando para ir a um culto, sem nenhum compromisso.

O cristianismo também cresceu principalmente entre a ralé, e é bom nunca esquecer isso. Não foi à toa que ele não conseguiu muito sucesso entre os judeus. Em vez disso, cresceu principalmente entre os pagãos pobres, mais tolerantes, mais abertos, criados dentro da noção de que não havia problema em cultuar um novo deus; e mesmo assim principalmente em segmentos intelectualmente pouco favorecidos, empobrecidos, ignorantes e incultos. Só no século IV começa-se a ver um número ainda pequeno de intelectuais cristãos.

Para essa patuleia, vulnerável e crédula, dois aspectos interligados devem ter sido importantes na criação de razões para a conversão: a ameaça de um inferno corroborada pela realização de milagres.

A literatura cristã fala de milagres quase tão grandes quanto o crescimento econômico do governo Temer com emprego informal. É preciso admitir: os cristãos nunca tiveram nenhuma vergonha de mentir descaradamente, de inventar as coisas mais mirabolantes se isso servia à sua missão.

Então como hoje, ninguém vê milagres acontecendo. Mas todos ouvem falar — olha aí o dr. Fritz ou Chico Xavier como prova —, e acreditam a partir daí, pelo desejo de acreditar e pela confiança em quem lhe conta deles. A força evangelizadora do milagre não está em seu acontecimento, mas na sua apresentação como fato e na fé de quem o utiliza como argumento. Não era diferente em Roma. A mensagem dos cristãos tinha como base um evento miraculoso, a ressurreição do Cristo que um primo do tio do cunhado da irmã do seu amigo tinha visto com seus próprios olhos; e a toda hora relatos de novos milagres apareciam. A literatura cristã, canônica e apócrifa, tem coisas do arco da velha: conversões imediatas de cidades inteiras, bichos falando, apóstolos matando e ressuscitando. Procure pelos duelos de São Pedro com Simão Mago, ou os Atos de João, um dos tantos apócrifos sobreviventes, e divirta-se com fábulas que deixam Hogwarts parecendo uma convenção de ateus materialistas. Mas elas funcionaram na época, mais ou menos como os martírios que foram pouquíssimos mas, recontados por cristãos fervorosos e fanáticos, viravam exemplos cabais e insuperáveis da força de Jesus.

O fato de esse ser um Deus pródigo na realização de milagres dava força à Sua maior ameaça: o desgraçado que não cresse n’Ele estaria destinado ao sofrimento eterno no inferno. Parece pouco cristão ameaçar as pessoas dessa forma, e ainda demoraria séculos até Dante nos mostrar a miséria que eram aqueles círculos, mas relatos detalhados nunca foram necessários: um Deus que fazia tantos milagres tinha força suficiente para lhe castigar de formas inimagináveis. O cristianismo cresceu também impondo o medo às pessoas, mais ou menos como uma milícia cobra proteção a um comerciante.

Mais tarde, quando o Império Romano entrou em crise, quando as ameaças bárbaras se tornaram mais presentes, com um imperador matando outro apenas para ser assassinado em seguida, o ambiente de incertezas e insegurança pode ter reforçado a mensagem apocalíptica dos cristãos. A promessa de um retorno iminente de Jesus, para acertar as contas com todos, e a oferta da ressurreição devem ter tido o seu apelo aumentado. Mas isso simplesmente não é relevante. O que importa é o inferno.

A conversão de Constantino é um excelente exemplo de tudo isso. Se se converteu por um sonho com Deus lhe dizendo in hoc signo vinces, ou depois de observar o crescimento do cristianismo entre seus soldados, ou por calcular que esse deus era mais forte que os de Maximiano — nada disso interessa: o fato é que ele é mais consequência do que causa do crescimento do cristianismo. Àquela altura, o cristianismo já tinha pelo menos 10% das almas do Império. Mais cedo ou mais tarde, canibalizando as outras religiões, ele seria dominante.

Claro, sua conversão deu início a um novo tempo. A boa vontade imperial e a construção maciça de novos templos favoreceram o crescimento do cristianismo. Provavelmente pavimentou o caminho para que as elites aderissem, também, vencendo o preconceito contra aquela religião de pobre e solidificando-a definitivamente. O Édito de Milão de 313 abriu as portas para a legislação anti-pagã de Teodósio 70 anos depois. O cristianismo se tornou totalizante, ameaçador, criminoso. Mas isso é outra história, e o resto é história.

Jesus, Maria e José

Dia desses vi um pastor falando do Jesus revolucionário (nessas horas eles esquecem do “a César o que é de César”), que andava com a escória da sociedade (e eu, besta, pensando que os apóstolos eram gente boa, o que me faz pensar agora que Simão assaltava caravanas, Tomé pedia esmola se fingindo de cego, Filipe vendia muamba, Tiago era estelionatário e João filho de Zebedeu, bem, João filho de Zebedeu era michê. Judas Iscariotes, claro, era X-9 da polícia, mas isso a gente já sabia). Outros falam do Jesus quase zelote que expulsou os vendilhões do templo, pouco condizente com Aquele que mandava dar a outra face.

É aquilo que todo mundo já sabe: Jesus é o que a gente quer que Ele seja.

Mas pouca gente fala da mensagem estranhamente retrógrada, reacionária de Jesus em relação às mulheres — fora, é claro, o bom gesto em relação a Maria Madalena ao salvar sua pele de umas pedras que andaram querendo jogar nela, ou a outra Madalena de quem Ele expulsou sete demônios.

Os judeus aceitavam o divórcio. Era muito simples: não dava mais certo, você oficializava a coisa com uma carta e cada um seguia o seu caminho, de acordo com a lei de Moisés. Mas então veio Jesus e disse que não, que casamento era sagrado, que se você fizesse isso estava cometendo adultério. O casamento era indissolúvel, era pior que tiro na boca.

Ninguém se pergunta por quê?

Eu me pergunto. E por isso cheguei a uma teoria que é tão válida quanto aquelas que dizem que Jesus era budista, que Jesus viveu na Índia, que Jesus escapou da cruz, pegou Sua nega Madalena e se mandou para a França porque sabia que um dia viraria tema de filme do Tom Hanks: é uma teoria que, como essas, não vale nada, mas a gente joga e espera que algum bobo acredite nela. Sei de gente que ficou rica acreditando que bobos não faltam neste mundo.

Minha teoria é a de que José largou Maria. Aquele safado. Cafajeste. Homem cis hétero canalha, como todos eles.

Antes que alguém se erga em suas patas traseiras e diga que essa ideia é idiota como as outras que ando tendo por aí, quero reafirmar que ela faz sentido e é profundamente lógica. Os evangelhos falam tanto de José na infância do Cristo, mas quando Jesus começa a pregar não há mais nenhum sinal dele. Nada. Citam Maria e Tiago, citam até seu primo maluco que batizava as gentes no Jordão, mas necas de José. É como se, em algum momento entre os 13 e 30 anos de Jesus, José tivesse saído para comprar mirra e não tivesse voltado. O pessoal supõe, claro, que ele morreu, que morrer é coisa comum até hoje e naquela Judeia as pessoas ainda por cima caíam no gládio. Mas isso não justifica a ausência absoluta de referências ao carpinteiro.

A mim, que não entendo dessas coisas de religião, me parece pouco cristão obliterar dessa forma a memória de um ancestral. Então José não ensinou nada a Jesus? Então o coitado estava ali apenas para aturar as piadinhas de corno e os risinhos disfarçados quando ele passava com aquele menino que, por não parecer com o pai, devia parecer com um vizinho cachaceiro?

Eu fico imaginando José vendo aquele menino crescer. Sentado à mesa, partindo o pão ázimo, ele olhava para Jesus e olhava para Maria. E uma raiva surda crescia dentro dele. “Esse guri é filho do pedreiro”, ele devia pensar, engolindo a dor e a frustração junto com o pão, ajudado por uns litros de vinho. Até o dia em que disse que ia comprar falafel e não voltou mais: chegou o momento em que José não aguentou mais o peso dos chifres, ainda que putativos porque chifre de Deus é ainda mais honroso que chifre do chefe, e largou Maria com o filho que não era dele e também os filhos que eram.

Não deve ter sido fácil para Maria, uma moça de seus vinte e poucos anos, de repente obrigada a sustentar o legado que José lhe deixou. Tendo que se virar para criar aquelas crianças, lavando roupa para fora, costurando tarde da noite à luz mortiça de uma vela, fornecendo marmitas. Imagino que naqueles dias de sofrimento e ocupação romana, o único alívio que a pobre Maria tinha eram os encontros de sábado à tarde com a prima Isabel, cada uma falando do desgosto que seu filho lhe dava.

Mas tampouco foi fácil para Jesus. Imagine o trauma que aquele menino sofreu. De repente, lá estava sua mãe, abandonada como adúltera e sabendo-se inocente. Os amiguinhos de Jesus, enquanto brincavam de apedrejar apóstatas, faziam piadinhas sobre ela. Contavam para Ele seus pensamentos impuros quando a viam passar pela rua, carregando na cabeça a trouxa de roupa que lavara nos dias anteriores nas margens do rio Jordão e que agora levava para Caifás.

Para piorar, que nessas horas o diabo tem artes do cão, cumpre lembrar uma das verdades universais: tudo sempre sobra para o filho mais velho. Pense naquele garoto que até uns dias antes estudava para ser rabino, impressionava os doutores no templo, e agora rodava as ruas de Nazaré carregando aquele bocado de marmitas nos braços. Ele tinha passado os primeiros anos de vida com algum conforto; Seu pai (“Pai coisa nenhuma!”, gritou José) era carpinteiro, ou mais exatamente um technon, artesão, mas isso não vem ao caso: Jesus era de classe média, José conseguia botar comida na mesa. A vida não era fácil, mas tinha peixe e tinha mel na mesa, e umas tâmaras para a sobremesa. Agora tudo havia mudado, e imagine Jesus se perguntando no meio da rua, debaixo do sol do meio-dia: “Mas poxa, Eu sou tataraneto do rei Davi, Eu sou um sujeito de família tradicional, e agora tenho que entregar essas marmitas.”

Ser abandonado pelo pai putativo não cai bem para um filho de Deus; cai menos ainda a mácula no passado de Sua mãe, a dúvida sobre um mau passo, como se dizia em tempos d’antanho. Não admira que o menino tenha ido atrás do primo, aquele que enchia Santa Isabel de desgosto, e o resto é história. Uma história que mostra a pobre Maria correndo atrás do filho pregador, tentando fazê-lo abandonar sua missão divina, desesperada, e só quem não tem coração consegue não derramar uma lágrima pela pobre mulher, que passava as noites angustiada pelo seu filho, sem poder ao menos rezar uma Ave Maria.

Claro, contra mais essa teoria rafaeliana há um detalhe complicador. Os evangelhos, a começar pelo de Marcos, apareceram pelo menos uma década depois das epístolas de Paulo, que não conheceu Jesus, e mesmo o lendário Q não deve ter aparecido muito antes. É bem possível que a mensagem original de Jesus, seja ela qual fosse, já tivesse sido corrompida pela visão paulina das coisas; certamente foi pela transmissão oral ao longo de umas poucas décadas, a ponto de, a essa altura, o profeta que precisou da chancela de João Batista para se legitimar como pregador já ter virado o filho de Deus e ser o responsável por uns milagres bem batutas. E não é bom esquecer que Paulo tinha uns problemas aí com as mulheres. Minha teoria, portanto, depende muito da visão paulina, do Paulo criador do cristianismo e dono de uma misoginia que faria envergonhar o Bolsonaro.

Mas ela ainda é válida. E isso leva a mais uma explicação necessária. Diz respeito ao dia em que Jesus foi crucificado.

Ali, entre ladrões, sufocando aos poucos pelo peso do Seu próprio corpo, Jesus filho de José agoniza. Uma dor lancinante vem de Seus pés, das Suas mãos presas ao patibulum. Ele não consegue enxergar direito, cego pelo sangue que a coroa de espinhos faz escorrer pelos Seus olhos. Ele lembra de sua trajetória, de tudo o que fizera até ali, Sua vida passa diante de Seus olhos como um filme que ainda não haviam inventado. Então Ele lembra de José mais uma vez, como se algum dia tivesse deixado de pensar, como se José não estivesse presente em cada um dos Seus pensamentos, como se a angústia e a dor em algum momento O tivessem abandonado. E Ele grita para um Gólgota que não pode entendê-lo:

“Pai, por que me abandonaste?”

Um estado de espírito

Campanha de Zé Eduardo Dutra para o Senado, 2006. Uma campanha de resto inesquecível.

Bebeto de Freitas apareceu em Sergipe e foi convidado por Zé para dar um depoimento sobre sua atuação no Senado: Zé tinha sido o relator do Timemania, ou algo assim; Bebeto, se não me engano, era presidente do Botafogo naqueles dias, ou tinha sido.

Eram dois botafoguenses doentes, se me perdoam o pleonasmo. Quando o Botafogo perdia, eu já sabia que Zé ia achar defeito nos programas; ele era uma figura incrível, com um coração imenso e um senso de humor debochado debaixo de uma cara enfezada, mas tinha esse defeito de torcer pelo Botafogo. Acontece nas melhores famílias, menos na minha.

A conversa entre os dois, claro, era sobre o time pelo qual sofriam.

Enquanto a gente estava preparando as câmeras, peguei um trecho de uma conversa entre os dois.

— …Porque o Botafogo é um estado de espírito…

Naqueles tempos eu perdia o amigo mas não perdia a piada. Não podia deixar passar a oportunidade.

— …Também conhecido como depressão…

Incrivelmente, não fui linchado. Prometi a mim mesmo, e avisei a eles, que se ganhássemos a eleição eu publicaria esse diálogo no meu blog. Não ganhamos, mas Zé e Bebeto de Freitas me perdoarão por eu publicar essa história hoje.

Os bons anos 80

Lembrei uns dias atrás de um dos tantos motivos para odiar os anos 80, esses que os últimos tempos têm edulcorado e levado a uma reapreciação degenerada da sua música horrível, da sua moda tenebrosa, do seu cinema cheio de maneirismos infelizes.

Aquela década viu a primeira geração a chegar à puberdade sob o fantasma aterrorizante da Aids.

Para quem nasceu nos anos 90 a Aids é uma doença grave, incurável, e que condiciona em maior ou menor grau a vida sexual de todos. Mas naqueles tempos um diagnóstico de Aids era uma sentença de morte quase imediata, e dolorosa. Eu ainda lembro da confusão que cercou a sua descoberta, a maneira como as pessoas inicialmente a chamavam de “praga gay”, e de como o pânico se espalhou aos poucos, mas com firmeza, ao verem que gays não eram suas únicas vítimas.

Uns anos atrás, conversando com Almir Santana, coordenador da luta anti-Aids em Sergipe, comentei que o número de contaminações parecia estar diminuindo. Ele, delicadamente, me deu uma aula e tentou me ensinar a não falar besteira sobre o que eu não entendo. Este blog é prova de que ele não conseguiu.

O que mais me surpreendeu foi a informação de que, depois de anos em declínio, o número de infecções vinha aumentando em três segmentos: jovens gays do sexo masculino, velhos e mulheres casadas. Os dois últimos me pareceram bem lógicos: os velhos ganharam o presente inestimável do Viagra, mas não os novos hábitos; mulheres casadas não costumam usar preservativos com seus maridos, mesmo os que têm um pé fora do armário. Eu só não consegui entender imediatamente o caso dos jovens, que eu achava terem aprendido com o sofrimento dos que lhes precederam — até lembrar que adolescente é animal idiota, e essa juventude usa camisinha principalmente para evitar filhos, não para evitar morrer. Além disso, o fato de que aparentemente pode-se viver hoje normalmente com o vírus faz com que a urgência em evitá-lo diminua.

A geração anterior à minha lembrava dos tempos anteriores, tempos perdulários de fartura e exuberância e alegria de viver; e por isso os mais odaras tentavam entender o que se passava, os mais místicos viam a Aids como uma espécie de punição pelo desbunde dos anos 70. A minha, que não tinha vivido nada disso, tinha apenas o medo e a obrigação de desenvolver uma visão nova sobre a moral sexual, algo que tentasse combinar a liberdade alcançada com a ameaça constante de morte. Isso se tornou pior quando Henfil e seus irmãos foram condenados à morte por receber transfusões de sangue contaminado. Alguns anos depois, como se a situação já não fosse crítica o suficiente, Magic Johnson anunciou que tinha o vírus e nós levamos um golpe fatal no pé do ouvido, coitados de nós, que então nos víamos diante da prova definitiva de que era possível pegar Aids com mulheres. “É, gente. Ferrou de vez.”

Lembrei dessas coisas que o tempo deveria ter enterrado porque vi uns trechos de uma série recente da Globo, ambientada no início dos anos 80, que tinha entre seus personagens uma moça morrendo de Aids. Me impressionou a maneira como ela era bem tratada, como as pessoas bebiam do seu copo, beijavam sua boca. Tão bonito.

E tão falso. Era tudo mentira. Esse cenário quase idílico, do amor superando a incompreensão e a ignorância, não existiu. Naqueles anos 80 a regra era o medo, e a falta de certezas. As pessoas tinham medo. Medo de abraçar, medo de apertar a mão, medo até de respirar o mesmo ar que o “aidético”, era assim que os portadores de HIV eram chamados, respirava. Certo, não demorou tanto assim para entendermos que abraço não transmitia Aids. Mas nenhum pesquisador tinha certeza absoluta de que beijo não transmitia. E o medo continuou por muito tempo.

Já faz um bom número de lustros, isso. Os anos passaram, a cura não veio mas o pânico passou. E como o esquecimento leva sempre a distorções, hoje as pessoas até acreditam piamente que os anos 80 foram uma época boa.

Mas os que vivemos aqueles anos sombrios temos uma missão diante das novas gerações. Temos o dever cívico e moral de descortinar a tragédia daqueles dias. Esses eram os anos 80, os bons anos 80 em que sentíamos que a vida tinha nos pregado uma peça de muito mau gosto e encerrado a festa justamente na hora em que conseguíamos driblar os leões de chácara e entrar. E como se não bastasse, toda essa tragédia se desenrolava ao som da música desgraçada de Rosana, Yahoo e Kátia Cega.

Woody Allen e Harvey Weinstein

As denúncias contra Harvey Weinstein, e o movimento #metoo que se segue a elas, têm sido uma das melhores coisas que aconteceram à indústria cinematográfica em muito tempo. É um passo importante para garantir que nunca mais uma mulher precise abrir as pernas para trabalhar em Hollywood — embora não haja discurso de sororidade capaz de me convencer de que isso vai evitar que as que abrirem voluntariamente continuarão tendo uma grande vantagem sobre as outras. Diz a segunda epístola de Paulo aos coríntios que Deus ama e entrega melhores papéis a quem dá com alegria.

Mas há nisso tudo algo que me incomoda, e muito. Esse artigo publicado no New York Times resume um pouco desse incômodo. Nele, Aaron Sorkin, roteirista e diretor, e Greta Gerwig, atriz e agora diretora aclamada, falam sobre Weinstein e, para não sair do assunto do momento, sobre Woody Allen. Woody voltou à ribalta porque sua filha adotiva, Dylan Farrow, publicou recentemente um depoimento fazendo pressão no mundo artístico para condenarem Woody Allen, que teria abusado dela aos 7 anos de idade.

Quando Sorkin alega ignorância total sobre os hábitos predadores de Weinstein, ele está mentindo. Mesmo o comum dos mortais sabe das fofocas do mundo dos artistas, quanto mais insiders como ele. O que temos de mais próximo a Hollywood no Brasil é o ecossistema da Rede Globo, e até os macacos mortos de Mairiporã sabem de parte pequena do que acontece. Sabem de atrizes consagradas cujos maridos cantam taxistas (e levam murros deles); sabem do diretor que tem uma escola e garante espaço em novelas para os alunos que pagam mais que a mensalidade; sabem do galã cujo primeiro casamento terminou porque ele foi descoberto num banheiro de festa prestando um serviço sexual a outro ator; sabem do ator que há alguns anos denunciou um diretor por tê-lo levado para a cama por dois anos e não ter cumprido sua promessa de lhe arranjar um papel numa novela; sabe do galã recém-separado filmado com uma imensidão de cocaína por um dos travestis que tinha levado para casa.

Sorkin sabe como Hollywood funciona, certamente ouvia histórias sobre Weinstein, e sabe como funciona o mercado de poder e sexo na mídia. Nisso, Sorkin age como os alemães que, perdida a guerra, diziam não saber dos campos de concentração. Mas ele sabe também que, hoje, defender uma posição fora do consenso, ou falar algo que pode ser tirado do contexto e usado para estigmatizar uma pessoa, ou mesmo simplesmente abrir o flanco para ataques de militantes raivosos nas mídias sociais pode significar o fim de uma carreira.

Mais irritante é a alegação da Greta Gerwig, fazendo a madalena arrependida, de que hoje não trabalharia mais com Woody Allen. Essa declaração se junta a outra, de Mira Sorvino, que diz essencialmente a mesma coisa. A tocaia está armada para Allen há muito tempo, e agora parece ter chegado o momento de desferir o golpe de misericórdia.

As afirmações de Gerwig, assim como as de Sorvino, são no mínimo oportunistas. Em 2012, quando ela atuou em To Rome, With Love, todos os fatos relativos ao escândalo Woody Allen/Mia Farrow já eram conhecidos. Nenhum fato novo surgiu de lá para cá, além da carta de Dylan Farrow, que agora se chama Malone. Mas hoje Gerwig é uma atriz respeitada e diretora superestimada, e sua fala é conveniente e perfeitamente ajustada à matilha; em 2012 ela ainda era uma atriz iniciante diante da chance de trabalhar com uma lenda viva. O que quer dizer que entra século, sai século, e Hollywood continua a mesma.

Eu nunca duvidei, por um segundo, de qualquer acusação feita contra Weinstein. Elas não apenas tinham “cheiro de verdade”, mas correspondiam a tudo o que sabemos de Hollywood. Mas simplesmente não acredito nas denúncias de Mia Farrow contra Woody Allen.

Até onde sei, Allen nunca foi um pedófilo; no máximo, se se cometer o erro de julgar um artista pela sua obra, ele poderia ser considerado um efebófilo em conflito — algo que sequer é crime, embora cada vez mais reprovado pela sociedade. Mas isso não importa. O caso Allen-Farrow vem rendendo manchetes de jornal há quase 30 anos. Embora Allen raramente se pronuncie sobre o caso, Farrow não parece estar disposta a deixar o caso morrer. Sempre que Allen é lembrado por algo, o clã Farrow parte para o ataque e volta a jogar sua tragédia familiar ao público.

Farrow e Allen namoraram durante mais de uma década, mas nunca viveram juntos. Tiveram um filho, Satchel, e juntos adotaram outros dois, Moses e Dylan. Além disso Farrow tinha vários outros filhos, uns paridos, outros adotados, alguns com André Prévin. Segundo as próprias memórias de Farrow, publicadas antes do escândalo, Allen nunca teve muito contato com os filhos dela, especialmente com Soon-Yi Prévin, o que a fez incentivar os dois a saírem juntos — e aparentemente foi aí que se originou o romance entre o velho e a adolescente. Quando Farrow descobriu que os dois estavam tendo um caso, seguiu-se um escândalo sem precedentes, extremamente público.

Não é difícil compreender, quase justificar o comportamento inicial de Mia Farrow. Não deve ser fácil ver que o seu namorado está saindo com a sua filha. A indignação e a revolta devem ser inconcebíveis. Da mesma forma, é fácil entender a desconfiança nascida ali. O raciocínio talvez não seja psicologicamente acurado, mas é simples: se ele pegou a minha filha de 15 anos, quem garante que não vai molestar a de 7? Para Farrow, Allen já era um monstro. Ninguém poderia garantir que ele não poderia ser um monstro ainda maior.

Até aqui estamos no campo dos fatos incontestados. Mas quatro meses depois do escândalo estourar, já separado de Farrow e morando com Soon-Yi, Allen fez uma visita aos filhos. É fácil imaginar o clima naquela casa. Assim como é fácil imaginar, a julgar pelo seu comportamento desde então, como andava a cabeça de Farrow. Durante alguns minutos em que não estariam sendo vigiados, Allen teria levado Dylan para o sótão e “tocado inapropriadamente” nela. Farrow, logo depois, gravou em vídeo um depoimento de Dylan recontando o que ocorrera. A fita foi severamente editada, o que para alguns pode indicar que nos intervalos cortados Farrow estava fazendo a menina dizer o que ela queria ouvir.

A essa altura a coisa tinha saído das colunas de jornais e chegado à justiça. Namorar a filha adulta de sua namorada é canalha e eticamente reprovável, mas não é crime; abuso sexual de uma criança é. O caso foi investigado pelas polícias de Connecticut e de Nova York. Chegaram à conclusão de que Dylan não tinha sido abusada, e o juiz fez algo estranho: encerrou o caso, mas disse que tinha motivos para acreditar que Allen era culpado; encerrava apenas para não prejudicar Dylan, o que soa quase inacreditável.

Mais tarde, uma babá das crianças diria que foi pressionada por Farrow a mentir e corroborar a acusação contra Allen. Diria também que Farrow vinha há algumas semanas preparando a cena para a denúncia, insistindo de repente que ele não fosse deixado a sós com Dylan. Um dos filhos adotivos de Farrow e Allen, Moses, que na época escolheu não ver mais Allen, acabou se afastando de Mia, se reaproximado do pai e hoje fala em “lavagem cerebral”. Ele diz perceber hoje que tudo isso é essencialmente a vingança de Farrow por Allen tê-la trocado por Soon Yi.

Neste link estão alguns dos principais argumentos a favor de Allen, e valem a pena serem lidos.

Eu acredito na inocência de Allen principalmente porque, cá entre nós, é difícil aceitar que um sujeito que jamais teve histórico de pedofilia, antes ou depois, escolha justamente o momento em que toda a sua vida está perdida em um turbilhão, com todos os olhos voltados para ele em uma casa traumatizada e ainda em choque, para abusar de uma criança que até então não demonstrava nenhum dos sinais comuns a vítimas de abuso sexual. Se Allen fosse doente a esse ponto, seria de se perguntar por que nenhuma oura acusação, antes ou depois — ele adotou algumas crianças com Soon-Yi — foi feita contra ele.

Eu acho plenamente factível que a pobre Dylan possa ter criado, instigada pela mãe, falsas memórias perturbadoras sobre seu relacionamento com Allen. Cada tempo tem sua histeria particular, e talvez não coincidentemente, naquele início dos anos 90 apareceu uma série de casos de pessoas que, em sessões com terapeutas, lembravam de repente que tinham sido abusadas na infância. Grande parte dessas denúncias acabaram sendo provadas falsas; a mente das pessoas é uma coisa esquisita, complicada. Mas isso lembra como memórias podem ser implantadas, ainda mais facilmente numa criança num lar em crise, com uma mãe que, independente do que qualquer um ache dela, decidiu que iria destruir Allen pelo que ele fez (Soon Yi) e pelo que talvez acredite que ele deve ter feito (Dylan).

Há alguns anos ela insinuou que Satchel, que agora se chama Ronan e desempenhou um papel fundamental nas denúncias contra Harvey Weinstein, não era realmente filho de Allen, mas de Frank Sinatra, seu primeiro marido (curiosamente, Sinatra e Farrow se casaram quando tinham respectivamente, 50 e 21 anos). Sinatra teria 71 anos ao gerar Ronan, mas ainda que ele não tivesse feito uma vasectomia, essa história é um indício que Farrow está disposta a qualquer coisa para destruir Allen, inclusive envergonhando outras pessoas, como Barbara Sinatra.

Eu não tenho muitas dúvidas de que Farrow é uma mulher perturbada. Não pela sua história, com sua cota de fatos que fazem a delícia das colunas de fofocas, mas pela sua reação à traição de seu namorado e de sua filha, e pelo esforço em destruir Allen a partir daí. Em parte é compreensível. Estender suas suspeitas ao relacionamento dele com Dylan só é maldade para quem está de fora: é quase justificável em uma mulher magoada e revoltada.

O que não é justificável é que Farrow possa ter destruído a vida de algumas pessoas por causa de sua vingança. Isso não exime Allen, claro. Independente da verdade, uma coisa é inquestionável: Satchel/Ronan e Dylan/Malone Farrow são as grandes vítimas em tudo isso — a ponto de fazê-los mudar de nome, tentar trocar de identidade como se isso pudesse apagar os traumas do passado. A culpa inicial, claro, é de Allen, por tomar a decisão de namorar a filha de sua namorada. Mas há culpas e culpas. Eu estou convencido de que as atitudes de Farrow, insistindo em algo questionável e mantendo viva uma vendeta por longuíssimos 25 anos dentro de sua família, fizeram um mal irremediável e imensurável aos seus filhos.

É muito difícil, para qualquer pessoa que represente algo nesse meio, assumir uma defesa de Woody com base, quando menos, no fato de que a justiça decidiu não processá-lo. Allen foi tornado um monstro, e essa mancha dificilmente será retirada. Os tempos não permitem que alguém se disponha a arriscar a carreira por Woody Allen. Uns poucos atores hoje têm coragem de defendê-lo, um dos quais o velho e bom Alex Baldwin, com um histórico pouco recomendável de violência familiar.

Há hoje um clima de caça às bruxas em Hollywood, e as pessoas parecem viver com medo de falar a coisa errada, aquela pequena bobagem que vai fazer a alegria dos justiceiros de internet. Há uma necessidade de condenação pública em que o volume de convicções fáceis tomam o lugar da verdade. Ela não interessa mais: Allen foi condenado, e essa condenação só foi possível porque os tempos andam complicados.

Eu sou um otimista. Gosto de acreditar que que da confusão que se tornou a marca destes tempos vai sair uma síntese nova, melhor. Que os exageros e injustiças eventualmente perpetrados sao percalços inevitáveis no caminho para uma ordem nova e mais justa. Mas enquanto isso, está muito, muito difícil.