Adeus, graxeiras

De repente me dei conta que não há mais hibiscos nas ruas da cidade.

Eram elas as flores mais populares, aquelas que encontrávamos em qualquer lugar, em qualquer muro ou grade, qualquer parque. Ninguém, no entanto, as chamava por esse nome, e eu mesmo tive que procurar nas internets da vida para saber qual o seu nome oficial. Em vez disso, o nome nas bocas das pessoas era o popular: graxeira. Eram chamadas assim, dizem, porque nos tempos dos já mortos os estudantes pobres davam brilho a seus sapatos — ainda se usava sapatos nas escolas, quem diria — esfregando suas pétalas neles. Mas disso eu só soube depois. O que eu sabia, ainda criança, é que bastava puxar o tubo estaminal da flor para poder sugar,junto ao ovário, o seu néctar.

Mas graxeira também era como uns tantos cá em meu rincão chamavam as empregadas domésticas, então tão abundantes quanto os hibiscos, e naqueles tempos incorretos não era incomum garotos gritando para empregadas que passavam: “Qual é a flor que não cheira?”, e não esperavam para responder eles mesmos, “Graxeira!”, para revolta e respostas impublicáveis das moças.

Insultos desse tipo não sobreviveram aos tempos, sorte nossa. As graxeiras também não. Morreram junto com os sapatos Vulcabrás escolares e com as graxeiras pagas a 300 reais por mês e um dia de folga na semana.

Como se não fosse morte bastante, cumpre notar que junto com os hibiscos somem também os pardais. Não fui o único a notar que eles estão desaparecendo, tem gente na internet comentando isso. Dizem que é o resultado da verticalização das cidades, do fim dos quintais e dos restos de comida abundantes. Talvez seja. A mim fazem pouca falta, e é com certo espanto que vejo as pessoas lamentando o desaparecimento dos pardais, como em meu tempo lamentávamos a expulsão dos tico-ticos por eles.

O que não vi comentarem é que em Aracaju os carcarás se aglomeram cada vez mais, se tornam cada vez mais comuns — e eu acho que verticalização coisa nenhuma, os pardais estão sumindo porque os carcarás descobriram que aqui há comida de sobra, comida que anda desparecendo do sertão, e estão comendo os coitados. Com um pouco de sorte os carcarás vão descobrir que aqui também há pombos, e pombos são iguaria fina desde os tempos de Roma.

Mas carcarás não comem hibiscos, seria injusto imputar a eles a culpa pela morte das graxeiras. Não é difícil chegar à conclusão a que chego: fomos nós que as matamos, e agora, em vez dos hibiscos, as ruas são tomadas por uma flor a que chamam buquê de noiva.

Todo mundo já passou por isso. A gente passa todo dia pela mesma rua, se torna cego para a beleza ou feiúra em volta, e um dia surge na paisagem uma área vazia, uma casa demolida; e então não conseguimos lembrar do que existia lá antes. Aconteceu algo assim com os hibiscos. Uma hora você olhava e via hibiscos; virou o rosto, olhou de novo, e lá estão aquelas flores brancas, onipresentes. É pior que isso, na verdade. Bastou notar o primeiro pé de buquê de noiva para perceber que elas estavam em todo lugar, e que já não se podia encontrar um velho hibisco vermelho, quanto mais rosa, roxo ou amarelo.

O nome científico dessa intrujona, fico sabendo, é plumeria pudica. Que equívoco, isso. Uma flor não pode ser pudica, longe disso. Flor que se dê ao respeito tem que se dar ao desfrute. Tem que ser amostrada, sibite, vaidosa. Precisa cheirar também, cheirar muito, cheirar tanto quanto penteadeira de puta. A graxeira não cheirava e o resultado é essa pequena tragédia, foi substituída por uma flor que se quer pudica e branca impoluta; e quem pode dizer, de tal horror, que é flor para botar no cabelo e para botar no xibiu, como diziam Jorge Amado e Dorival Caymmi? Não dá. Não um buquê de noiva, uma plumeria pudica.

Mas não adianta, ninguém liga mais. O mundo anda mais chato, de qualquer forma. A pudicícia dessa flor está agora em todo lugar — hoje percebi que está no cemitério diante do qual sempre passo. É um lugar adequado a ela. Por isso dizer adeus a flor boba como a graxeira é tão melancólico. Hibiscos não eram nada. Quando passam fazer falta, é porque as coisas mudaram, e para pior. Nada pode dar certo desse jeito.

Oscars 2021

The Sound of Metal parece um daqueles filmes para a TV que passavam na Sessão da Tarde antigamente, como “A Família Que Ninguém Queria”, ou “Meu Filho, Meu Mundo”, o tipo de filme que busca sensibilizar o expectador através da identificação com o drama pessoal do protagonista — aqui, a surdez de um baterista de música estranha. Direção, edição, roteiro, tudo aqui está completamente dentro dos padrões conhecidos do cinema dito independente, mas ouça bem: ele não tem nada de especialmente notável ou brilhante além da interpretação de Riz Ahmed, e se está na lista do Oscar deve ter sido por lobby da APADA. Muito melhor é assistir a Plemya, de 2014.

Minari não leva a lugar nenhum. Alguém deve ter dito ao diretor que o mais importante é o que se deixa de dizer, e ele levou isso ao pé da letra. Superficial, é apenas mais um filme de memórias de um menino criado no campo (durante os anos Reagan — não que isso faça alguma diferença neste filme), e inferior a obras que abordaram o tema com mais vigor, como “Um Lugar no Coração” ou “O Rio do Desespero” ou “Amor à Terra”, para não falar de “Vinhas da Ira”. É quase como se o diretor soubesse que histórias semelhantes já foram contadas tantas vezes que basta dar pinceladas bem leves sobre o assunto que o espectador vai entender. É simpático e suave, o que alivia um pouco sua barra; mas o fato é que a única coisa digna de nota no filme, mesmo, são as excelentes atuações de Will Paxton e Youn Yuh-jung. A impressão que fica é que depois de Parasite ano passado, coreano passou a ser obrigatório no Oscar. Não tem problema, isso acaba ano que vem.

Promising Young Woman poderia ser mais do que é. Baseado em uma visão infantil e esquisita do que andam chamando sororidade (a vingança da protagonista pelo estupro, humilhação pública e posterior suicídio de sua melhor amiga, e que redefine a sua vida, é abrir mão de sua vida e todo final de semana se fingir de bêbada em bares, atrair predadores sexuais e, na hora H, fazê-los colocar a mão na consciência. Surreal). O filme tem um ponto de vista a defender, e isso até o valoriza um pouco, mas não o suficiente. Além disso, seria melhor sem o twist final, que diminui o impacto da tese que defende ao fazer o bem vencer o mal e, no fim das contas, apenas reforça a sensação que permeia todo o filme: o machismo mata, mas tem umas psicopatas autodestrutivas, como a personagem de Carey Mulligan, que complicam tudo.

The Trial of the Chicago 7 é um excelente filme de tribunal, gênero que já deu boas obras ao mundo, e um dos dois concorrentes deste ano que tratam de um mesmo momento da história política americana, embora com um viés menos identitário e muito mais frouxo. Tem contra si o fato de que, embora seja correto, ter tantos clichês quanto uma tipografia antiga. Bom filme, mas não mais que isso. Ele também parece ter uma pinimba contra Tom Hayden enquanto celebra Abbie Hoffman e Jerry Rubin. E a bem da verdade histórica, não custa lembrar que, alguns anos depois do julgamento, Jerry Rubin era o sujeito cuja namorada deu para John Lennon debaixo do seu nariz, e Tom Hayden era o sujeito que comia a Jane Fonda, quando Jane Fonda era Jane Fonda.

Mank é um belo filme, mas é bom mesmo para cinéfilos, que conhecem a história de Mankiewicz (e do seu irmão mais talentoso, Joseph). David Finch fez um filme tradicional, com recursos fáceis a velhos gimmicks (como as marcas artificiais que tentam reproduzir o desgaste de celuloide antigo, algo que deveria ser objeto de um novo Código Hays e banido do cinema) para glamourizar a velha e boa Hollywood. Nesse aspecto, é um filme que poderia ser feito nos anos 50, inclusive em suas falsificações da verdade. É cinema de primeira qualidade, mas é praticamente a antítese de “Cidadão Kane”: dialoga com o velho enquanto “Kane” trazia o novo.

(Nota: se seguir os passos do Golden Globe, o Oscar de melhor ator vai para Chadwick Boseman, o que na minha opinião só não é injusto porque o cabra está morto e de defunto a gente não fala mal; mas é bom registrar que seu desempenho em Ma Rainey’s Black Bottom [que traz Viola Davis — talvez a mais importante atriz americana da atualidade — num papel que mostra que ela chegou à maturidade e conquistou o direito de representar Viola Davis] não foi o suficiente para me fazer esquecer a atuação estelar de Gary Oldman aqui.)

Por pouco Judas and the Black Messiah não é o melhor filme do ano. Bem feito, com uma trilha sonora brilhante e algumas atuações impressionantes, é uma história contada com competência e foco pelo diretor Shaka King. Já vi gente falando deste filme como uma biografia de Fred Harman, o que significa que elas não viram o filme: é uma crônica da ascensão e queda dos Panteras Negras em Chicago, de um modo de fazer política e de como se destrói um movimento social. Como bônus, o filme é também uma aula de política, e deveria ser visto por toda essa renca de chatxs identitárixs de Facebook.

The Father é surpreendente. Em outras mãos o filme desapareceria sob a interpretação estupenda, incomparável, absolutamente fantástica de Anthony Hopkins, e seria a típica fita pequena que antigamente fazia a festa de quem apostava em zebras diante de superproduções. Mas o filme que Florian Zeller entrega é surpreendente, ao dar uma dimensão reveladora, instigante e cheia de suspense do que é a demência, ele consegue mostrar o que ela é ao mesmo tempo em que faz cinema com C maiúsculo.

Nomadland consegue extrair poesia de onde menos se espera. Chloé Zhao, com um olhar curiosamente distante mas não frio, mostra a vida de uma legião de deserdados do sonho americano com empatia, mas sem compaixão ou pieguice. É esse paradoxo que faz a beleza do filme. Estrelado por Frances McDormand (cada vez mais parecida com Steve McQueen) em uma atuação irrepreensível, o filme é, de longe, o melhor dentre os concorrentes deste ano, e o favorito desde que ganhou o PGA, talvez porque é o único que consegue apresentar uma visão bem própria do mundo que nos cerca hoje.

O último reclame

Veja, ilustre passageiro,
O belo anúncio faceiro
Que o senhor tem aqui ao lado.
No entanto, acredite:
É dos últimos de uma elite,
Em breve morto e enterrado.

Dia desses parei para pensar em algo que já devia ter percebido há muito tempo: os anúncios impressos estão morrendo.

É uma morte doída. Este blog começou porque eu queria um lugar para escrever de maneira diferente do texto publicitário.

Aquele texto em que todo ponto era ponto-parágrafo.

Que evitava vírgulas como o diabo teme a cruz.

E que teve alguns cultores geniais no Brasil.

Como Neil Ferreira.

(Que chegou a comentar neste blog, para orgulho eterno deste ex-redator.)

Mas agora o seu destino está decidido. Os anúncios estão morrendo. Novidade nenhuma nisso, sequer é notícia nova; um bocado de gente já deve ter escrito milhões de palavras sobre esse fenecer, explicando que anúncios perecem porque jornais e revistas estão morrendo, e não se pode fazer muito por eles além de carpir o seu quinhão devido.

Bem verdade que não é como a morte de um sujeito na flor da idade. É quase um velhinho que agora morre aos poucos, sentado na varanda de casa, olhando a vida passar na rua numa tarde de mormaço. O fato triste e óbvio é que já faz muito tempo que anúncios não são importantes, não realmente. Houve um tempo em que revistas como a Veja alardeavam um milhão de exemplares impressos a cada semana; hoje ela não chega a 20% disso. Ultimamente os números são tão escandalosos, sempre muito mais baixos que o anterior, que não dá para deixar de ver os moribundos em seus últimos suspiros; mas durante algum tempo, para quem sempre viveu próximo deles era difícil entender isso, porque antes de serem finalmente canibalizados pela internet, eles foram ameaçados por cada novo meio que surgia.

O rádio foi o primeiro, embora tenham convivido bem ao longo de décadas. Então veio a TV, e ela estava para o rádio como a mulher vulgar está para a moça pudica e recatada, oferecendo a publicitários mimos e possibilidades que a mídia impressa jamais poderia oferecer, e com uma intensidade e alcance a que os anúncios jamais poderiam sequer aspirar a ter. Os anúncios reagiram a essas novidades tornando-se mais criativos, se soltando, adaptando sua linguagem aos novos tempos, aprimorando sua lábia e comprando roupas novas. Para sobreviverem, mataram a linguagem de anúncios como o do Rhum Creosotado parodiado acima.

Mas a verdade é que nada disso mudava os fatos que se escondiam atrás de cada um deles. Saudosistas como eu podem até lamentar o fim de anúncios como os daquela campanha antológica da Avis criado pela Doyle, Dane, Bernbach. Mas uma coisa que a gente não pode nunca esquecer é que, mesmo com uma campanha tão lindinha do papai, a Avis continuou sendo apenas a número dois (e o Lee Clow fez um anúncio antológico lembrando isso). A televisão tinha tomado o seu lugar, e não havia jeito de retomá-lo. Anúncios, afinal, não eram uma Brastemp.

Ao longo de todo esse tempo, eles tiveram também que lutar contra a consolidação das técnicas de marketing e de pesquisa. Foi um Belzebu bêbado e surtado quem criou essas coisas, que desde sempre tiveram quase como função secundária colocar limites na criatividade descontrolada. Digam o que quiserem os especialistas: a verdade é que aquele tipo de alegria, de flair que fez a glória dos grandes anúncios tantas décadas atrás só era possível num mundo em que não se podia medir corretamente seus resultados, em que se podia ousar e errar porque não se tinha certeza do que era um erro. Nas últimas décadas do século passado essa técnicas se tornaram cada vez mais ubíquas e oniscientes. Mesmo assim, o anúncio continuou firme, com eventuais lampejos de criatividade e brilhantismo.

Nem mesmo o marketing conseguiria destruir os anúncios; em vez disso, destruíram jornais e revistas, como os soviéticos queimaram os campos da Rússia para não deixar que os soldados alemães tivessem paz ou comida. Os anúncios não conseguiriam resistir às métricas e ao big data da internet, e não poderia haver ironia maior do que chorar essa morte aqui, num blog já velho.

Mas esta eulogia não estaria completa se eu não lembrasse, en passant, que para mim a decadência dos anúncios começou muito antes de a internet anunciar o seu fim definitivo. Começou quando aqueles textos que me faziam derramar litros de baba de inveja deram lugar, mandatória e definitivamente, a uma fórmula quase ditatorial: uma grande ideia visual, um título inteligente e objetivo, duas ou três linhas de texto. Anúncios concebidos assim porque já naqueles anos 90 se dizia que ninguém mais lia anúncios.

Isso não é uma crítica a esse tipo de anúncio. Eles tantas vezes eram bons, brilhantes até, e no mínimo garantiram um primeiro emprego a muitos estudantes talentosos. O importante é que aparentemente funcionavam, e bem; eram criativos, e muito; e bem ou mal, eram uma resposta ao que se considerava os novos tempos. Olha por exemplo a campanha da vodca Absolut, há tantas décadas no ar.

Mas com esse novo modelo, que eu cismei de chamar injustamente de modelo Almap, a modernidade nos tirava algo: a conversa mole, a sedução não pela Ferrari que o anúncio dirigia, mas pelo papo que jogava no leitor. Circular por anúncios antigos, especialmente das décadas de 50, 60, 70, é quase sempre a descoberta de um belo texto, de uma bela argumentação, de uma tentativa sólida de convencimento.

Hoje até mesmo esses anúncios de festival de propaganda estão condenados ao desaparecimento e ao esquecimento. Em seu lugar teremos apenas temos esses seus filhos bastardos, webcards no Facebook com títulos telegráficos e textos que não buscam mais seduzir — ao contrário, quando bons tentam apenas adular, são paqueradores na quermesse usando fórmulas prontas, e eu nunca conheci mulher que valesse a pena caindo numa dessas.

Retalhos da Bahia

Antes de mais nada, um aviso: o que se segue é um punhado de notas desconjuntadas e meio desconexas, escritas a partir de um comentário do Leonardo Bernardes.

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Eu sempre disse que baiano é quem nasce em Salvador ou, no máximo, no Recôncavo. Pode ser na Graça ou na Calçada; só não pode ser em Vilas, que esses são tão baianos quanto o pessoal da Barra ou do Recreio é carioca — ou seja, herdam apenas os piores traços do caráter da terra.

Nessa tal baianidade eu também incluía Ilhéus e Itabuna, porque parte dessa sensação de pertencimento nasceu dos livros de Jorge Amado, até que percebi que a imensa imigração gerada pelo cacau — quantos sergipanos foram tentar a fortuna ali? — tirava um pouco dessa identidade. Desculpe, Ferradas e Tabocas.

Sempre achei, por exemplo, que era descaramento demais o sujeito nascer em Jeremoabo e dizer que é baiano. Nasceu em Jeremoabo, Ribeira do Pombal, Paripiranga? Você é sergipano, contente-se. Veio à luz em Barreiras? Hoje você é goiano, meu filho, e que Deus tenha piedade de ti afogado num mar de soja.

Mas nessa cidade onde todo mundo é d’Oxum, dizia um de seus poetas, há um regaço macio onde as massas cansadas, pobres, amontoadas, desejando respirar livremente, podem curar esse defeito de origem, e para eles o único jeito é ir para Salvador e se tornar baiano.

É a maravilha da Bahia. Nenhum outro lugar consegue receber e abraçar aqueles que recorrem a ela e transformá-los tão completamente em baianos legítimos. Começa pelo sotaque, vai-se tornando mais mole, o mundo vai sendo visto de maneira mais condescendente, vão tolerando cada vez mais o que antes era inadmissível. E aí não tem mais jeito.

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Fui criança na Salvador dos anos 70. Era uma cidade bastante diferente da de hoje, em tantos aspectos. Era um tempo em que o jornal mais tradicional da cidade dizia quais terreiros de candomblé bateriam naquele mês. Tinha-se a sensação de que quase todo baiano transitava entre a igreja e o terreiro de candomblé. Era uma realidade mais complexa do que o discurso identitário de hoje faz parecer.

É preciso entender o que qualquer baiano sabe: Salvador está longe de ser a Roma negra pretendida em prosa e verso. Kátia Mattoso escreveu que depois da Lei Áurea a elite branca, sem a salvaguarda jurídica que a instituição da escravidão lhe proporcionava, descobriu novas maneiras, mais sutis, de manter a distância entre ela e a patuleia negra — e ao mesmo tempo a tal patuleia descobriu novos mecanismos de se aproximar e beneficiar de uma maior proximidade (por razões análogas, leis segregacionistas nos EUA surgiram antes nos estados do Norte). Essa complexidade nas relações, além de ser a razão pela qual vejo boa parte dos tópicos abordados nas lutas identitárias atuais como burras, fez de Salvador provavelmente uma cidade que oscila entre o racismo descarado e a valorização da herança negra, mas ao mesmo tempo também uma cidade onde as relações de raça e de cor são mais complexas do que boa parte da atual militância parece poder compreender. Stuart Schwartz resumiu isso no título de um livro: negociação e conflito.

Nas últimas décadas, no entanto, esse processo se tornou quase caótico, com novos elementos sendo adicionados. Durval Lélis, surpresa, foi o primeiro a marcar a ascensão da Bahia evangélica, cantando que “era um bêbado e vivia drogado, hoje estou curado, encontrei Jesus: na casa do Senhor não existe Satanás, xô, Satanás”. E isso implica uma mudança no próprio conceito de cultura negra, que boa parte dos movimentos identitários ainda estão lutando para entender — ou ignorar. Uma coisa é o negro de classe média e boa educação que busca recuperar e recriar sua identidade a partir de uma reinterpretação e recriação de elementos históricos e símbolos afro-brasileiros. Outra é a crescente massa de negros pobres evangélicos, cada vez mais reacionários, cada vez mais proselitistas, mas que não podem evitar carregar consigo uma tradição baiana inconfundível e inamovível. Os identitários parecem apostar que a cor supera tudo isso. Estão errados, porque partem do princípio errado. A visão idílica que essa classe média tem do candomblé não é a mesma que o evangélico recém-convertido tem, porque ela não sabe o que é ter um ebó em sua porta, nem precisa se perguntar que religião é essa que permite que seus sacerdotes façam essas maldades, sem sentir que precisa se defender dela. Vai ser cada vez mais difícil renegar a baiana que vende bolinhos de Jesus em vez de acarajé e que aplaude a vandalização de terreiros de candomblé. Que síntese vai sair desse angu, só Oxalá sabe.

Mas naqueles tempos o movimento negro ainda não tinha conquistado tanto. Isso quer dizer que a Cidade do Salvador não se via totalmente negra como parece se ver, ou se apresentar, hoje.

Comecei a me entender por gente numa época em que a miséria mais degradante e desumana se espalhava pelas ladeiras do Maciel, mas também uma época em que ainda havia uma série de remanescentes da presença inglesa na Bahia. Não apenas as que restam, como o Clube dos Ingleses onde meu pai quase saiu no tapa com Glauber Rocha porque Glauber começou a elogiar Geisel e meu pai, ainda lembrando da prisão em 64, disse que ele era um filho da puta, ou o Cemitério dos Ingleses que ainda hoje é um desaforo à Ladeira da Barra; mas por exemplo a Nubar no Campo Grande, onde senhoras elegantes que queriam ser inglesas ainda iam tomar o chá das cinco e eu ia encher o rabo de doces. Não lembro se foi em “Casa Grande e Senzala” ou em “Sobrados e Mucambos”, mas Gilberto Freyre fala uma coisa interessante: que o pessoal do sul tem orgulho da colonização europeia, mas enquanto recebiam basicamente lavradores e gente iletrada, o Nordeste era onde estava o dinheiro do açúcar e o destino da elite d’além mar, principalmente ingleses.

Era nesse convívio que a cidade se moldava, e se tornava uma cidade cuja elite se queria branca, que com alguma relutância aceitava e valorizava os elementos que chegavam da cultura negra mas que ao mesmo tempo ignorava e discriminava a população negra. De muitas maneiras ainda é.

***

A Bahia moderna começou a ser reinventada nos anos 30. O mesmo Estado Novo que consolidou o samba como a música nacional criou no país uma percepção da Bahia que se tornaria permanente. Pessoas como Ary Barroso, Dorival Caymmi e Carmen Miranda construíram uma Bahia que não me sai do pensamento, que tem acarajé e abará no tabuleiro da baiana e a morena mais frajola na Baixa dos Sapateiros. A Bahia que eles criaram tinha origem no povo pobre e negro, até então ignorado, mas que apontava para uma ordem nova das coisas, liderada por uma elite intelectual mais multirracial que em outros lugares e com raízes profundas na cultura popular. Para desgosto dos atuais militantes, era a Bahia da mistura, da miscigenação, da troca cultural indiscriminada e profundamente rica.

Negar tudo isso é uma estupidez. Mais que isso, é deletério.

Ilustrando essa mudança de pensamento, hoje, essa militância tenta de todas as formas resgatar a negritude de Machado de Assis, um dos escritores mais brancos da história deste país, sujeito cuja literatura é absolutamente, completamente, visceralmente branca. Ser negro era um detalhe que Machado preferia esquecer, e é preciso um esforço prometeico para vincular sua cor à sua literatura. É deprimente, mas esses movimentos vivem de símbolos e ressignificações (ressignificação está para os anos 20 como paradigma estava para os anos 1990). Enquanto isso, essa literatura baiana que floresceu com os modernistas fazia o contrário. Jorge Amado colocou, pela primeira vez de maneira consistente, o negro e sua cultura como protagonistas não apenas da literatura, mas da sociedade. A miscigenação era um fato desejável, e mais que isso, era um ideal.

Os baianos gostaram da imagem e tentaram se adaptar a ela, cada vez mais à medida em que isso lhes proporcionava um ganha-pão, e enquanto isso não significava o fim das distâncias que separavam pretos pobres de brancos ricos.

Mas como qualquer outra, ou talvez um pouco mais, a história atual da Bahia é a história de uma crescente reescritura do seu passado.

O recente louvor aos malês, lembrado pelo Leo, é um exemplo acabado disso. Tenho a impressão de que tudo isso deriva do livro do João José Reis, “Rebelião Escrava no Brasil”, de 1985, que devolveu à ribalta um pedaço importante, mas esquecido, da história da Bahia. A redescoberta da Revolta dos Malês oferecia um referencial de grandeza e dignidade à luta negra na Bahia. Assim como negros americanos, sem o referencial cultural que no Brasil os portugueses não conseguiram apagar, a partir de certo momento buscaram no islamismo um novo referencial de identidade, a Revolta dos Malês levava a resistência negra um degrau acima dos degolamentos de senhores e incêndio de engenhos. O Leo Bernardes tem parte de razão no que comentou aqui uns posts atrás: ela foi menos importante do que hoje tentam fazer parecer, no aspecto de definição da identidade ao longo do século XX. Ao mesmo tempo, não é possível esquecer que a repressão à revolta redefiniu a estrutura demográfica dos escravos na Bahia, e com isso padrões de comportamento e de relação com o mundo, e acabou desempenhando um papel significativo na definição das relações entre brancos e pretos ao longo do século XIX. Mas a sua retomada como símbolo é um processo posterior, e de certa forma descolado da realidade.

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Uma coisa me vem chamando a atenção nos últimos anos. Sempre que se conversa com um baiano de classe média ele começa, mais cedo ou mais tarde, a reclamar de Salvador. É inviável morar lá, sei lá o quê. Como ex-baiano e turista frequente, eu não vejo isso — ao contrário, vejo uma cidade que nos últimos dez anos melhorou sensivelmente. Depois de me raciocinar todo, como diz o seu melhor cronista atual, o Franciel, cheguei à conclusão de que isso é pouco mais que o mesmo desconforto dos ricos nos aviões cheios de pobres. Com todos os problemas e defeitos, a cidade que se está formando no século XXI é mais democrática, mais plural, não é aquela em que eles cresceram. A miséria que se espalhava no Maciel não é mais admissível. E é aí que essa baianidade nagô encontra o seu limite entre a população branca.

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Houve um momento em que a axé music esteve prestes a se tornar uma música universal, muito maior do que fora e do que viria a ser. Em algum momento do início dos anos 90, o Araketu e o Olodum de Pierre Onassis e Germano Meneghel pareciam ter acumulado as condições necessárias para elevar a axé music a algo superior, como os Beatles elevaram o rock. Partiam dos batuques nos terreiros, das rodas de samba no recôncavo, da música de Dorival Caymmi, Riachão, Novos Baianos, Caetano e A Cor do Som e levando-a adiante.

Mas justamente a sua força fez a sua desgraça. Ela nunca conseguiu se erguer acima de suas raízes populares. A partir dali, se resumiu ao que nunca deixou de ser: música para fazer as pessoas pularem e beberem cerveja.

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A Salvador branca, rica, essa já há muito tempo vem tentando se tornar uma cópia bastarda de São Paulo. Os bairros ricos de Salvador, especialmente os novos que se espalham em direção ao norte, na tentativa de alcançar Aracaju e realizar o sonho manifesto da Bahia de ser Sergipe, parecem Moema, com a mesma falta de identidade, e provavelmente os mesmos valores.

A Salvador negra, cada vez mais longe das raízes que se perderam na Saúde, que despencaram Taboão abaixo, se desenvolve sob um signo novo, de uma baianidade reinventada a cada dia. Mas essa Bahia ainda está lá. Se mudou da Saúde há muito tempo e hoje mora no Cabula, no Doron, no Bairro da Paz.

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Uns anos atrás, em Montmartre, um daqueles negões com cara de Senegal tentou me vender uma fita dessas iguais às do Senhor do Bonfim e que eles importaram. Eu disse que não, ele tentou jogar um “Tradition, Tradition!” (em inglês, não francês). Tive pena, pena genuína. Ele ainda precisava aprender muito com os malandros baianos, com o olhar único que eles fazem quando você se recusa a comprar, ou com a malandragem de já ir amarrando uma no braço da moça enquanto dizem que é presente pra depois tentar intimidar a coitada.

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Talvez algum dia eu consiga fazer alguma coisa dessa mixórdia.

Síntese

Pipocando, nas redes, artigos questionando o modelo de trabalho do capitalismo.

Resumindo da maneira mais grosseira possível a dialética marxista, um problema só aparece quando a solução já existe.

Resta saber se o pessoal está realmente a fim de encarar o modelo social e de trabalho chinês.

Elegia ao rock brasileiro

Nunca fiz segredo de que sempre considerei os anos 80 uma pausa civilizatória e não entendia o saudosismo que cercava aqueles tempos, visto aqui e ali internet afora.

Talvez eu não fosse velho o suficiente para sentir esse tipo de saudosismo, e nesse caso ainda não sou agora.

Havia um porém, no entanto, que sempre omiti: eu também considerava aquela a melhor década do rock brasileiro.

Ele tinha percorrido um longo caminho. É impressionante a mediocridade do rock brasileiro dos anos 60, com as exceções de praxe. Os valores de produção ajudavam muito a estragar as coisas, é verdade; produtores desacostumados aos padrões que vinham sendo burilados havia décadas pelo blues de Chicago e pelo rhythm and blues não sabiam direito como gravar aqueles instrumentos elétricos e barulhentos. Mas não era só isso. Musicalmente estavam sempre uns bons anos atrás do que se fazia no mundo anglo-saxão, e apenas em alguns momentos podia-se adivinhar ali a tradição melódica ibero-brasileira. Liricamente estavam abaixo de Love Me Do, dos Beatles, mesmo se descontarmos a mania de a ordem dos verbos trocar para as letras poderem assim rimar — o que é ainda mais impressionante quando vemos a sua pobreza.

Mas o rock já tinha se tornado o mainstream da música internacional e aqui não seria diferente. Passando por alguns bons momentos nos anos 70, o rock brasileiro chegou aos anos 80 suficientemente maduro para se tornar o gênero dominante na indústria fonográfica.

E então aquela geração conseguiu algo fantástico.

Os anos 80 foram a última década em que a juventude brasileira se expressou em uma única linguagem, e essa linguagem era o rock. Olhando em retrospecto, isso talvez tenha sido possível porque a periferia olhava de longe o show, a pobreza não tinha voz (se isso era bom ou não são outros quinhentos). Os meios de produção eram caros, e os de distribuição eram limitados; isso permitia que gravadoras, rádios e emissoras de TV definissem o que o país iria ouvir. Claro que mesmo então havia outras linguagens tentando se afirmar, e Thaíde e Racionais são exemplos óbvios. Fora do eixo Rio-São Paulo, havia movimentos novos como o axé music na Bahia, talvez mais válido em termos socioculturais do que propriamente musicais. Mas eram apenas nichos. A música daquela geração foi o que hoje chamam de Rock BR.

O rock conseguiu o que a Tropicália não conseguiu, por exemplo. Rico ou pobre, branco ou preto, era na música cantada por bandas como RPM, Paralamas do Sucesso, Titãs que aquela juventude se reconhecia e tentava passar sua mensagem para o mundo. Não que fosse grande coisa, que adolescência é uma das piores invenções do século XX; mas era um fenômeno importante que não se repetiria.

E justiça seja feita: mesmo inferior à tradição brasileira, era uma música com uma preocupação lírica maior do que hoje. Se comparadas a um tempo em que rebolar um rabo cheio de celulite virou arte e feminismo, e em que mediocridades desafinadas como Johnny Hooker se sentem no direito de criticar um Ney Matogrosso apenas porque compensam a ausência de talento com a adequação a um discurso político adequado, as letras do rock brasileiro dos anos 80 eram dignas de Bob Dylan.

Mas o tempo foi muito malvado com os roqueiros brasileiros dos anos 80 — pensando bem, não é com todos nós?

A mera passagem do tempo e a derrocada da indústria fonográfica fizeram com que uma geração inteira tivesse uma velhice menos admirável do que sua juventude e sucesso prenunciavam. Um integrante do Zero andou ganhando a vida por uns tempos em Aracaju — agora ele sabe. O Ultraje a Rigor virou uma oficina de estultícies e termina sua carreira como o Caçulinha de um dos comediantes mais medíocres e patéticos que este país já produziu, Danilo Gentili. Luiz Schiavon, do RPM, pelo menos durante algum tempo se tornou o Caçulinha ipso facto, tocando na banda que animava o programa do Faustão.

A perversidade do tempo, no entanto, não é o bastante para explicar a deterioração ética desse pessoal.

Um dos fenômenos mais curiosos é a facilidade com que a maior parte deles, em idade provecta, passou a se espojar politicamente na direita. O número de relíquias dos anos 80 que hoje adota posições que pareciam inimagináveis 35 anos atrás é impressionante, e não para de crescer.

Certo, há as exceções, e gente como Clemente, João Gordo e Leoni mostra que nem tudo foram espinhos. Mas de modo geral, aquele pessoal do rock envelheceu de maneira vergonhosa e reacionária.

A verdade é que, se alguém não entende como isso aconteceu, é porque não quer.

Nos EUA e na Inglaterra, as bases do rock eram populares. Nos EUA, o rock acabou sendo apropriado pela classe média branca e a indústria cultural da música leve negra, mas nunca deixou de lado a sua origem popular. Na Inglaterra, com um sistema de classes diferente, o rock tinha a mesma base social do hip hop brasileiro hoje: era uma juventude proletária que encontrou no skiffle, e depois no rock, um meio de expressão adequado e que o enriqueceu com a sua própria tradição musical.

Mas se nos EUA ou na Inglaterra o rock and roll era música de garotos pobres, a sólida tradição musical brasileira o relegou inicialmente a uma parcela de uma das elites mais vira-latas do mundo, sempre com os olhos fixos no que vem de fora, o mais longe possível do que lhe pareça popular. Do ponto de vista social, o equivalente musical do rock no Brasil é a música brega: Odair José, Fernando Mendes, Carlos Alexandre. Gente que cumpre a profecia antropofágica oswaldiana e digere e regurgita aquilo que engole. Não foi à toa que o rock no Brasil se afirmou primeiro em São Paulo, terra de parcas referências musicais e um alentado provincianismo cultural que confunde com cosmopolitismo. No Brasil, o rock se transformou em música de menino rico empurrada goelas dos meninos pobres abaixo.

Essa equação, infelizmente, tem mais variáveis. No mundo inteiro, roqueiro tende a ser muito ignorante, e aqui não seria diferente. Parece achar que a única música que presta é o rock e raramente se aventura muito além dele. Nos anos 70, declaravam guerra à discothèque; nos anos 80, as revistas que eu lia estampavam orgulhosamente em suas capas que ali não entrava Menudo. É o mesmo pessoal que chama o dia em que Buddy Holly, Ritchie Valens e Big Bopper morreram num acidente de avião de “o dia que a música morreu”: 2 de fevereiro de 1959. Se morreu, não avisaram e ela seguiu em frente: 1959 é o ano de três dos meus discos preferidos, Kind of Blue, Time Out e Mingus Ah Um, e alguém deveria escrever que esse foi, talvez, o mais fantástico ano da música popular em todos os tempos. Apesar dos garotos com a cara enterrada na neve, a música ia bem, obrigado.

(Essa ignorância e insularidade sempre se refletiram na baixa qualidade da crítica de rock. Mesmo luminares como Lester Bangs, Robert Christgau ou Jon Landau sempre fizeram uma crítica subjetiva, limitada, às vezes mesquinha. No Brasil era ainda pior: de Maurício Kubrusly e Roberto Mugiatti [de quem eu gostava muito por ser fã dos Beatles] na Somtrês à súcia que se amontoava na Bizz, o que faziam era mau jornalismo e má apreciação musical.)

Desde o início, o mundo do rock brasileiro sempre foi o do adolescente rico ou de classe média. Esses sempre foram os seus valores. Era essa a sua revolta. Eu não sei onde a Paula Toller morava, mas certamente não era em Parada de Lucas. Romance e sexo, o gap geracional e as elucubrações existenciais limitadas a que se entregavam enquanto coçavam o saco em seus quartos eram a base de suas letras.

Basta olhar para a produção da maior banda dessa geração, a Legião Urbana. Se cantavam “Que País é Este?”, não iam além do que mesmo hoje qualquer bolsominion entende como verdade absoluta — todos são corruptos, nada presta, ajudai-nos, São Moro. Mas o que cantavam mesmo eram as dores da adolescência, a dor de cotovelo com uma cara nova. Eu, pelo menos, sempre achei estranho um sujeito de trinta e poucos anos cantar que ia fugir de casa e que seus amigos estavam procurando emprego. Já era hora.

É sintomático também que entre os roqueiros dos anos 80 abundassem os instrumentos importados de primeira linha, Fenders e Gibsons e Rickenbackers, numa época em que importações eram proibidas e o comum dos mortais se aventurava em Gianninis e Goldens — enquanto o pessoal que tocava em puteiros se virava com as Tonantes da vida, muitas vezes com proficiência admirável.

Muitos anos atrás, numa mesa de bar com o vocalista de uma dessas grandes bandas paulistas dos anos 80, fiquei impressionado com o fato de que, bem avançado nos seus 40 anos, o rapaz se comportava e tinha valores de adolescente. Tinha orgulho de sair no tapa com as pessoas, tratava mulheres como um garoto imaturo trataria. Parece fazer parte da cultura rock um apego trágico, até um tanto ridículo, a uma adolescência que deveria passar suavemente mas à qual se agarram como a uma tábua em alto mar.

Música feita por meninos “ricos” e bobos. O que podia dar errado?

O resultado foi uma música cujo universo lírico, mesmo em seus momentos, nunca esteve muito além das preocupações de classe média. Era um universo limitado, pequeno, mesquinho. Quem se der ao trabalho de comparar as letras do samba ao longo de sua existência com aquelas ficará abismado com a diferença de qualidade e de percepção do mundo.

Quando um Ultraje a Rigor cantava a rebeldia adolescente, era com o viés deletério de “Inútil”, o mesmo viés que vimos novamente há pouco tempo, nas carreatas de ricos com máscaras pedindo o fim do isolamento social contra o coronavírus porque seriam os pobres a morrer, ou as preocupações menores e individualistas da classe média como “Rebelde Sem Causa” ou “Ciúme”. Se se posicionava em relação aos costumes com “Sexo”, por exemplo, era sempre um posicionamento que refletia, antes de tudo, os valores individualistas da classe média. E na maior parte das canções que chegavam a tocar no aspecto político, raramente saiam das platitudes expressas pela sua classe. Os Engenheiros do Hawaii prestavam “atenção no que eles dizem mas eles não dizem nada”, bradavam que “toda forma de poder é uma forma de morrer por nada” e ordenavam “ouça o que eu digo, não ouça ninguém”. O niilismo dessas canções refletia um estado de espírito típico da juventude. Mas representavam principalmente um viés de classe que, à época, podia ser facilmente incorporado pelos mais pobres e adquirir uma ilusão de universalidade.

Não é à toa que a segunda onda do rock brasileiro nos anos 80, vinda de Brasília e integrada por filhos da elite dos funças, ostentava letras que deviam muito à concepção de mundo que o serviço público traz, mas também com olhos e ouvidos firmemente voltados para uma viela qualquer em Manchester, sempre mais chique que um beco no Vale das Pedrinhas (garotos que, imagino, conseguiam contrabandear instrumentos com mais facilidade).

O fato é que a rebeldia do rock brasileiro sempre fugiu do cunho social. Era a rebeldia ante o horizonte limitado da classe média, alheia a questões econômicas estruturais que não fizessem parte das preocupações de sua classe.

Olhando bem, a essência sociológica do rock brasileiro é exatamente a mesma da bossa nova: a classe média branca com uma visão muito própria do valor do trabalho e profundamente influenciada pela música internacional de elite. No caso da bossa nova era o jazz, que se misturou com o samba em proporções variáveis, dependendo do artista. O rock já cortou caminhos e incorporou a tradição musical tupiniquim em muito menor medida. Era apenas o filho problemático da bossa nova.

E então chegamos ao momento em que essa geração, prestes a pegar seus cartões de estacionamento para idosos, resolve mostrar ao mundo que razão, mesmo, quem tinha era Belchior.

Nesse meio tempo aconteceu uma hecatombe política: a queda do muro de Berlim, a implosão do bloco socialista e a extinção imediata de alguma alternativa ao capitalismo reforçou a necessidade de voltarem-se para seus próprios umbigos. No Brasil, o crescimento do antipetismo, o incômodo desse pessoal com os pobres que passaram a dividir o mesmo avião que eles, deu validade ao liberalismo que, no fundo, sempre esteve na sua base ideológica, geralmente disfarçado de liberalismo de costumes.

Por isso, quando um Lobão coroa sua trajetória errática, falastrona e oportunista — alguém lembra dos tempos em que ele, já decadente mas achando ter descoberto sua mina de ouro particular, cantava loas às rádios comunitárias, desde sempre covis de corrupção e mercadejamento político? — com uma tentativa de se transformar em um guru de extrema-direita, estava dando o prosseguimento previsível a toda uma postura ideológica que, disfarçada ou não, sempre permeou essa geração. Quando investia em suas diatribes contra Lula, quando ameaçava sair do país se Dilma fosse reeleita, ele apenas refletia a evolução lógica do pensamento da sua tribo. Tudo bem que, vagabundo e frouxo como suas ideias, ele não fosse capaz de cumprir suas promessas. Mas isso importa pouco. Lobão é apenas o representante mais visível de toda uma geração que, na velhice, finalmente fez as pazes consigo própria.

Dizem lá na terra que originou tudo isso que a maçã não cai longe da árvore. Ao rock brasileiro jamais houve outra opção. Para defini-lo, o melhor é recorrer não a ele, mas à disco music: como cantava Gloria Gaynor, I am what I am.

Quatro momentos

Pensando aqui nos momentos mais comoventes da história do cinema, me vieram à lembrança quatro cenas, imediatamente.

1 – O menino Ricci vendo o pai sendo quase preso após tentar roubar uma bicicleta, em “Ladrões de Bicicleta”.

2 – Zampano abandonando Gelsomina em “A Estrada da Vida”.

3 – Von Aschenbach morrendo só e triste na areia da praia.

4 – Totó descobrindo a herança que Alfredo lhe deixou, em “Cinema Paradiso”.

Não pode ser à toa que os quatro filmes são italianos.

(E, curiosamente, a cena em que Rosaria se joga aos pés do filho morto em “Rocco e Seus Irmãos” não consegue me dizer nada.)

Mamães Evangélicas

Preocupações as há de todo o tipo, foi o que descobri quando me deparei com um site chamado Baby Center.

Dentro do site há um fórum destinado às “Mamães Evangélicas”. Não o li inteiro, não sei exatamente quais as diferenças entre uma mãe evangélica e uma macumbeira, porque minha ignorância a respeito dos códigos maternos de cada religião é avassaladora e irremediável. Sempre achei que mãe é mãe em qualquer tempo e lugar, mas em tempos de lugar de fala e de apropriação cultural deve haver mães e mães. Elas, pelo menos, acham que há diferenças suficientes para justificar essa seção.

Foi às Mamães Evangélicas que a PamAlex, cinco anos atrás, recorreu para resolver uma grande dúvida.

SEXO ANAL
Meninas, estou de 34 semanas e não consigo fazer vaginal, pois incomoda, meu marido pede pra fazer anal, ele é super atencioso e carinhoso, eu tenho muita vontade de fazer (rsrsrs) mas tenho receios, gostaria de saber como foi a experiência de vocês na primeira vez. obrigada!

Esses evangélicos, sei não. Você vê lá o sujeito saindo do culto com seu terninho, bibliazinha com zíper debaixo do braço, glória a Deus e aleluia irmão a três por quatro, e o imagina moço pio e recatado com sua mulher de cabelos longos presos e suas saias beirando o tornozelo.

Você vê, mas você não sabe que o diabo queima sua carne como queima a dos ímpios, e antes mesmo de transpor o umbral da porta da igreja ele já está pensando “hoje o bundão da PamAlex não me escapa”.

E assim, em meio a essa discussão titânica, a PamAlex recorreu ao melhor que pôde: à experiência de outras mamães evangélicas.

A primeira resposta foi dúbia, da Michele291:

Creio que sexo anal não foi criado por Deus e então não o agrada. Não estou aqui para julgar ninguém e tb quero aprender com todas, caso alguém tem olguma coisa pra falar estou pronta para ouvir.

Imagine a profundidade da discussão teológica que se pode ter a partir daí. Sexo anal foi ou não foi criado por Deus? E a espanhola, foi? Deus criou o ânus apenas para excretar? E por que aquela confusão de orifícios aos seu lado? Se Deus não criou, isso quer dizer que está liberado ou não? — porque alguém pode dizer que outras coisas não foram criadas por Deus, como o computador em que ela escreveu isso, e utilizá-los não é pecado.

Não conheço nenhum filósofo evangélico. Tenho certeza de que Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, confrontados com esse dilema, também teriam problemas para responder. Mas a sabedoria não é privilégio de cristãos do tempo do onça. Michele291, por exemplo, sabe que as coisas não são, nunca, em preto e branco. “Também quero aprender”, ela disse, porque Jesus falou que nunca deves dizer “dessa água não beberei”, e se não falou deveria ter falado.

O que eu sei é que a Michele291 está morrendo de vontade. Um ímpio qualquer daria os parabéns a ela pela sua abertura — de pensamento, claro. Enquanto isso, Juanbi responde de um jeito que a faz parecer colunista de revista feminina:

Tudo depende muito do cuidado, carinho, respeito e amor.  …pode sim, ser muito prazeiroso.

Juanbi, tenho quase certeza, é (ou era, não sei se essas revistas ainda existem) leitora de Carinho, Capricho e de João Bidu. Juanbi, óbvio, é também adepta da prática. “Cuidado, carinho, respeito e amor” é como ela chama aquele momento em que, alucinada, olhinhos revirados e tudo, dedos crispados no lençol e dentes segurando firmemente a fronha do travesseiro, ela diz para o marido chamar o dito de pastel e enchê-lo de carne.

Juuh2001, por sua vez, se empolgou e levou a coisa mais adiante. Há um je ne sais quoi na velha e boa putaria que faz as pessoas se empolgarem quando o assunto vem à baila e, dependendo do que beberam, as faz subir na mesa e cair na dancinha da garrafa, quebrando até o chão. Óbvio, uma mamãe evangélica jamais faria algo semelhante, mas isso não a impede de se soltar, um pouquinho só que seja. A conversa era sobre sexo anal, mas Juuh2001 estava tão empolgada com suas aventuras de alcova que se antecipou e lá foi para o sexo oral, que não estava em pauta mas, ora bolas, ela queria falar para alguém:

Sexo Anal é sodomismo: Gays fazem sexo assim, sexo oral e uma preliminar,pelo menos pra mim, mas acho que se o casal não se sente bem, e acha que é pecado, nao deve fazer.

A Juuh2001 bota a culpa dessa sem-vergonhice nos gays, claro, que inventaram essas safadezas. Essas coisas de dar o rabo só pode ser viadagem. Coisa desses “sodomistas”, como ela diz. Mas acontece que a Juuh2001 parece gostar de falar com a boca cheia, e algum pudor ela ainda tem, e portanto levanta a ressalva: se você acha que não ofende a Deus, vai fundo — ou deixa o seu marido ir, dá no mesmo.

(Aqui, no entanto, devo abdicar da minha postura de mero registrador de efemeridades e ralhar com a senhora Juuh2001, e reclamar da sua hipocrisia. Eu sei que pornografia é o erótico dos outros, mas onde foi que Jeová Deus especificou em quais outros buracos senhoras podem enfiar aquele troço?)

No fim das contas, depois de ouvir e ponderar as opiniões, os conceitos e preconceitos, a delícias e dores experimentadas pelas irmãs em Cristo, PamAlex se decidiu. Pelas datas de seus posts, não demorou muito tempo — e o velho cínico em mim desconfia que ela sequer esperou as respostas.

Obrigado meninas!
eu acabei cedendo e no começo doeu mas depois fui gostando. agradeço a cada uma que expressou a sua opinião, abraços.

Ah, mas um tema desses gera polêmica, e a conversa continua; porque mais pessoas têm a mesma dúvida, porque mais pessoas querem cagar regras, e porque mais pessoas querem dizer “eu dou e eu gosto!”

O caso triste da meumilagrerosa é um desses:

Boa noite meninas já percebi que este e um tema polêmico. Aqui em casa também gera desconforto ainda mais que eu sirvo a Deus e  eu marido não. Oro sempre pedindo para Deus entrar na mente e no coração do meu esposo. Mas e difícil, e em muitos casos como o meu o que o marido não tem em casa ele procura na rua. Gostaria de ouvir opiniões.

Enquanto ela pede a Deus para entrar na mente e no coração do esposo, o esposo não espera e entra com tudo nela. Entra também na Maria, na Tereza, na Conceição — o marido, nesse caso, é um ímpio safado mulherengo, e meumilagrerosa tem razão em estar desgostosa com a vida. Mas sabe como é: além de estar preocupado com a bunda dos outros, Deus também manda a mulher obedecer. Sem querer ser um estraga-prazeres, algo me diz que não tem bunda que faça o marido da meumilagrerosa se aquietar, mas a fé dessa moça é invejável: um dia Deus ainda vai ouvir as suas preces e seu marido vai se conformar com o que tem em casa.

evangelicacasada, por sua vez, chegou tarde à discussão mas está desesperada para compartilhar experiências. MãmaDaLê2013, no que parece ser um ataque de voyeurismo, pede para ela contar a sua, talvez uma versão Mamãe Evangélica de “mostre o seu que eu mostro o meu”. Mas evangelicacasada some, talvez envergonhada, talvez desconfiada de que se falasse mais alguma coisa Deus jogaria sobre sua casa uma chuva de fogo e enxofre e ela viraria uma estátua de sal, como a mulher de Ló.

A conversa não para aí. A maior parte das mulheres, mais inclinadas a dar o dízimo do que a dar a bunda, recrimina a prática, diz que é pecado. Graziam1, indignada, reclama que está “faltando é intimidade com Deus, isso sim” — talvez fosse o caso de dizer a ela que, provavelmente, se Deus tivesse uma bundinha tão bonitinha quanto a da PamAlex ou da Juanbi e um remelexo gostosinho o que não faltaria era intimidade.

No fim das contas, é a postura equilibrada e sensata da Pri_NA1 que fica, e encerra a conversa:

Irmãzinha, faz o seguinte: orem sobre isso. Se vocês dois – ou, pelo menos, o seu marido (I Cor. 7:4) – não se sentirem acusados sobre isso, é confirmação de que, para Deus, isso não é pecado para vocês.

E se depois de decidirem que não é pecado você forem parar no inferno, tudo bem. O importante é que, por alguns breves momentos, o céu se abriu e vocês foram felizes. Amém.

Tempos difíceis

Você quer saber como a vida está difícil para vendedores?

Há um ano minha TV começou a agonizar. Apareceu uma listra vertical grossa na tela. Descobri que não tem conserto — ou melhor, tem, mas é preciso “trocar a placa” e o conserto sai quase pelo preço de uma TV nova. Coisas desse tipo dão saudade dos tempos em que, quando a TV dava problema, você apenas trocava a válvula. Mas a vida é assim mesmo, e eu não quero perder tempo reclamando.

Deixei como estava. Não vejo tanta TV assim, e mais importante, para quem foi criado assistindo ao “Sítio do Picapau Amarelo” com chuviscos e fantasmas (e interferência quando ligavam um liquidificador), se incomodar com uma listra boba é coisa de millenial.

Mas numa sexta-feira dessas ela começou a gritar “Eu vou morrer, eu vou morreeeeer!”, escandalosa como lavadeira batendo boca por causa de homem, e isso me preocupou.

Aproveitei a noite do sábado seguinte para passar no shopping e procurar uma TV nova. Achei numa dessas grandes redes. A vendedora disse que estava em oferta, disse isso, disse aquilo, disse também que tinha para pronta-entrega.

OK. Fui fazer um lanche e pensar, que eu tenho problemas sérios em jogar dinheiro em eletrodomésticos e em celulares, é sempre uma decisão difícil para mim. Pensar e ver o preço na internet, claro. Aquele, naquela rede, era o melhor preço da tal TV — que tinha isso e aquilo e até blutufo, coisa de que gosto muito.

Quinze minutos depois voltei e disse que ia levar a TV. A moça então disse que infelizmente ela tinha três televisores, mas nesse período de tempo em que fui pagar caro por um lanche vagabundo um vendedor as tinha vendido. Agora ela tinha para entrega em cinco dias.

OK, eu volto daqui a cinco dias. “Mas aí a oferta pode ter acabado”, ela disse. Paciência. Tchau.

Eu não ia voltar, claro. Porque estava irritado, e o que me irritou foi a mentira. Ela mentiu, ponto. Ninguém vende três TVs caras em quinze minutos no dia 25 de qualquer mês. A verdade é que ela nunca teve a TV para pronta-entrega, mas se acha malandra, boa vendedora, tem as manhas de segurar o cliente e depois enfiar-lhe a faca. Manhas que funcionaram durante décadas, mas que em tempos de preços mais baratos na internet talvez não façam mais sentido.

Em outros tempos você ficaria à sua mercê e, se quisesse muito a tal TV, acabaria comprando nela. Mas não é mais necessário.

A tal rede tem um programa de vendedores “online”. Você cria uma loja, uma espécie de subdomínio do site deles, e se alguém comprar por ela você ganha uma comissão. Deve ser útil para quem está desesperado e disposto a trabalhar para a rede sem nenhuma vantagem empregatícia. Mas na prática, mesmo, funciona como os rebates americanos: você compra e depois recebe um troco de volta.

Voltei para casa e comprei na “minha” loja. Pelo mesmo preço. E mais 150 reais que vão voltar para a minha conta. E ainda vão entregar em casa.

Se eu fosse vendedor de loja ia dirigir para o Uber.