A memória dos grandes

Das lendas vivas dos anos 60, apenas duas mantêm uma trajetória criativa significativa quase meio século depois: Bob Dylan e Paul McCartney. Os Rolling Stones, a outra lenda, estão no mesmo nível de um Chuck Berry e Little Richard, ou de Elvis em 1975, vivendo de shows em que reapresentam incessantemente um repertório brilhante composto décadas atrás; o que muda é apenas a magnitude. Apenas para comparação, nos últimos vinte e poucos anos os Stones lançaram apenas quatro discos com canções inéditas, todos medíocres, e são três compositores na banda. Nesse mesmo período de tempo McCartney lançou doze, incluindo dois discos de covers e três de música erudita, com alguns pontos altos.

O penúltimo último álbum de McCartney, Chaos and Creation in the Backyard, foi recebido com aplausos generalizados, inclusive por este blog. Menos de dois anos depois, e em meio a um dos divórcios mais públicos e escandalosos dos últimos anos, ele apareceu com um novo disco, Memory Almost Full.

Normalmente as pessoas resenham um álbum assim que ele é lançado. Mas algo de estranho acontece com McCartney: as pessoas elogiam seus discos durante o lançamento enquanto detonam o anterior, e esse processo segue infinitamente: a obvra elogiada hoje é detonada amanhã. Talvez a música de McCartney pareça biodegradável, não sei; por via das dúvidas, resolvi só publicar este texto pelo menos um ano depois do lançamento do disco.

Que a capa tenebrosa, provavelmente a pior de McCartney em quase meio século de carreira, não sirva de prelúdio ao conteúdo do disco: Memory Almost Full é um excelente álbum.

É curioso notar que, do ponto de vista do conjunto, Chaos and Creation é um disco melhor. É mais coeso, é claramente um álbum concebido como uma entidade única e orgânica. Mas Memory Almost Full tem uma vantagem nada desprezível: é um disco com melhores canções pop. Aqui se vê de volta o bom e velho Paul McCartney, com ecos dos Wings e uma capacidade de criar boas melodias que parecia perdida quando ele entrou em sua sétima década de vida.

O mais interessante é que, de repente, as letras de McCartney passaram a ser pessoais. É impossível ouvir o disco e deixar de pensar que algumas das faixas são respostas à crise por que ele passou nos últimos anos.

O disco foi gravado em dois momentos diferentes. O primeiro, em 2003, com a banda que o acompanha em shows e que estava presente em Driving Rain, disco de 2001. O segundo, a partir de 2006, com McCartney tocando todos os instrumentos. Depois do clique segue um comentário faixa a faixa.

Dance Tonight
É basicamente uma cançãozinha despretensiosa, bandolim, baixo e bateria, que serve para abrir o disco com o seu convite à dança. Lembra peças menores de McCartney como Rainclouds. A canção também define a atmosfera do disco: aqui e ali, se percebe os ecos da trajetória de McCartney com os Wings.

Ever Present Past
Embora pareça diretamente derivada de Don’t Get Around Much Anymore, de Duke Ellington, é puro McCartney. É aqui que se percebe algo que vinha faltando nos seus dois últimos discos: boas melodias pop. A letra é interessantíssima: “I’ve got too much on my plate / Don’t have no time to be a decent lover“. E começa também o tom nostálgico que vai permear todo o disco.

See Your Sunshine
É um pop mais ou menos. E a partir daqui não se pode deixar de pensar na inspiração das músicas. Essa, pelo menos, parece ser destinada especificamente para Heather Mills, nos tempos em que tudo era amor e beleza. Dificilmente McCartney faria uma canção dessas hoje em dia. A melhor coisa na canção, entretanto, é o baixo fantástico de McCartney. De vez em quando é bom lembrar que o sujeito é o mais influente baixista da história.

Only Mama Knows
De longe a minha canção preferida no disco. Começa um arranjo hipnótico de cordas, mas logo muda para um bom rock estilo Wings; parece ser irmã de Junior’s Farm. E essa, definitivamente, é uma canção feita para Linda McCartney, a quem Paul costumava se referir como “mama”: “Only Mama Knows / Why she laid me down / in this godforsaken town” Recentemente, Dylan falou à Rolling Stone da sua admiração por McCartney, principalmente pelo jeito como ele canta. E aqui temos um bom exemplo do Dylan admira: quando McCartney canta “in this godforsaken town“. É especial.

You Tell Me
Uma balada densa, triste. Mais que isso, soa verdadeira. Parece ser uma espécie de Dear Friend atualizada, e em vez de Lennon como alvo, tem-se Heather Mills. Um pequeno riff de violão na abertura remete, com má vontade, a Stairway to Heaven, mas é tudo: é uma balada de McCartney que não deixa nada a dever aos lamentos de Lennon.

Mr Bellamy
Tem coisas que só alguém como Paul McCartney pode fazer. Uma delas é uma canção sobre um diabo de um gato preso em cima de uma árvore. É uma canção admiravelmente bem construída, que muda todo o tempo. Uma canção inteligente e surpreendente.

Gratitude
Deveria ser um grande gospel, daqueles com que Otis Redding faz ter arrepios. No entanto, seu arranjo é um equívoco. Tudo errado. Gratitude deveria ter sido produzida de maneira clássica, com um bom coral, com um bom naipe de metais em crescendo. No entanto ela é fragmentada, o baixo tem importância em excesso, e o que poderia ser um clássico acaba sendo um exemplo de falta de ritmo na produção. É uma boa canção, mas o arranjo ruim acaba com ela. A propósito, parece ter sido feita para Heather Mills. Duvido que McCartney ainda seja grato por qualquer coisa a ela.

Vintage Clothes
É uma boa canção que, em vários momentos, remete aos Wings.

That Was Me
Quando Nigel Godrich estava selecionando o repertório de Chaos and Creation, avisou que não queria pastiches dos anos 50. É uma pena: aí a gente perde canções deliciosas como esta. É um rockzinho simples, em que McCartney olha para trás e faz um apanhado de sua carreira, dos tempos dos Beatles no Cavern Club até o seu último show no novo Cavern, em 1999. Alguém falou que, a partir de suas entrevistas, seria de se esperar que a letra dissesse: “Olha, eu era o avant garde, eu era o intelectual daquela história toda”. No entanto, o que se tem aqui é um sujeito que aceita a sua história e, o mais importante, gosta dela. É uma bela canção.

Feet in The Clouds
Se Brian Wilson um dia deixasse de tomar seus tarjas pretas, e deixasse de ser tão obcecado por McCartney, poderia processar o sujeito por essa canção. Depois de um começo sem nada notável, a canção muda para uma balada menor de McCartney, mas pára aí: finalmente evolui para um arranjo típico dos Beach Boys, com os vocais intricados típicos de Wilson. Em um ou dois momentos, chega a lembrar Heroes and Villains. É uma bela canção.

House of Wax
Elogiada por muita gente, para mim é um saco. É uma daquelas baladas superproduzidas que McCartney gosta de cometer uma vez em cada disco.

The End of the End
McCartney sente a aproximação da morte: “On the day that I die, I’d like jokes to be told, and stories of old to be rolled on like carpets that lovers had played on“. E uma boa letra como essa em uma balada elegante.

Nod Your Head
Nos primeiros momentos até lembra um Led Zeppelin aguado, aí pela época do Physical Grafitti; depois, nem isso. É só uma canção fraca. Longe de ser o final adequado a um belo disco, Nod your Head serve apenas para confirmar a variedade estilística que McCartney sempre demonstrou.

11 thoughts on “A memória dos grandes

  1. Rafael:

    Eu vi die and let die; filme do 007, em que o tema, die and let die, foi cantado pelo Paul, já nos Wings. Para mim essa música msotra que o Palul era um poço de criatividade, recriando em cima de um tema, já ná época, muito batido, que é o tema do 007 e fazendo um rock de primeira linha e ainda por cima um música muito linda. Você sabe se a letra é dele?

  2. Santiago, o título correto é “Live and let die”. A letra é dele, sim. A produção é de George Martin. Primeira vez que um ex-beatle voltou atrabalhar com Martin. 1973, se não me engano.

  3. Concordo com tudo que você disse, menos a parte de esse ser um excelente álbum de Macca. Achei chatíssimo, nem se compara o anterior (onde, pra mim, o grande “feito”, por assim dizer, foi Macca voltar a fazer um som que lembra o que ele fazia de melhor nos Beatles).

  4. O forte de paul , sempre foi fazer músicas bonitinhas, qualquer vovô gosta daquelas coisas fofinhas que ele sempre fez e continua fazendo
    até hoje, inclusive, john lennon disse algo parecido quando o chamou de compositor de baladinhas ou algo parecido, sinto muito mas essa é minha humilde opinião,
    quanto aos os stones só terem lançado coisas medíocres de alguns anos pra cá eu discordo, voodoo lounge, stripped, bigger bang são bons albuns, claro! não estão no mesmo nível dos antigos, mas são bons discos,
    quanto ao paul , sem dúvida ele fez boas canções, mas sempre aquela
    coisa inapropriada pra quem sofre de diabetes, e o dylan!? bom o dylan passou os anos 80 só fazendo lixo! a coisa só veio melhorar a pouco tempo com” Modern times”, falando de anos 80! só o tatto you e o undercover of the night deixa no chinelo qualquer disco de paul ou dylan.

  5. Rafael:

    Tem razão o nome do filme é, realmente, “Live and let die”. ou seja, “Viva e deixe morrer”! Você sabia que o titulo o livro do Ian Flemming no Brasil é Ös outros que se danem”? É coerente, mas é de doer!

    Obrigado pela correçào e resposta!

  6. Rafael, muito bons são os seus posts sobre música.
    Sabe, uma coisa que eu, que também sou fã de Beatles, adoraria ver no seu blog seria os seus comentários e a suas experiências pessoais sobre cada um dos discos oficiais (ingleses) que eles lançaram de 1962 a 1970.

    Abraço.

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