A minha primeira bíblia sobre os Beatles foi a revista Beatles Documento (ou Documento Beatles), uma edição especial da revista Somtrês escrita pelo Marco Antonio Mallagoli, do fã clube Revolution. Era 1985, uma época em que informação era difícil de achar. Minha primeira cópia se desfez de tanto uso, e comprei outra. Depois eu veria que tem muita informação errada ali. Muita, mesmo, além de opiniões bastante descartáveis. Mas independente disso, foi a revista responsável por eu querer entender um pouco mais sobre a banda. A Beatles Documento foi inestimável.
Ela foi também minha introdução na pirataria. Uma seção da revista fazia uma boa lista de discos piratas. De repente, eu ficava sabendo que além das músicas que eu já sabia que existiam — eu ainda não tinha ouvido todas — havia também uma infinidade de outras que não estavam facilmente disponíveis. Foi lá que fiquei sabendo do The Decca Tapes, o primeiro álbum pirata que comprei na minha vida, ainda naquele ano, e de tantos outros. As imagens que acompanham este post são de discos mencionados naquela revista.
Pirataria dos Beatles é coisa de fã, mesmo. A maior parte é simplesmente ruim. Não é algo que interesse realmente a ninguém, porque são geralmente canções descartadas ou incompletas. Mas mesmo levando isso em consideração, pirataria já foi mais interessante. Até há 15 anos, uma boa porção de material inédito bastante interessante era encontrado apenas em discos piratas. A Apple contornou esse problema lançando o Live at the BBC em 1994, e nos anos seguintes a série Anthology, com um montão de sobras de estúdio e algumas gravações ao vivo. Com isso, eliminaram boa parte dos atrativos desses discos. Pirataria é para completistas que se dão ao trabalho de tentar escutar tudo que a banda fez. Ou seja: para bobos.
O conselho que dou para qualquer pessoa que queira escutar isso é: não perca seu tempo. O que fez dos Beatles uma grande banda não foi o material que descartaram por considerarem ruim; é o que está nos discos lançados entre 1962 e 1970. Mas o mundo também tem lugar para malucos como eu. Então aqui vai uma breve introdução para aqueles que querem conhecer um pouco mais sobre pirataria.
Durante muito tempo, esses discos foram lançados por “selos” tão verdadeiros quanto uma nota de 3 reais. Alguns, como a Yellow Dog, Audifön, Vigotone e Great Dane se notabilizaram pela alta qualidade dos seus lançamentos. Mas até há alguns anos era extremamente difícil achar discos piratas — e quando se achava, eles eram caríssimos. A coisa melhorou muito com o surgimento do CD. Mas a grande virada, mesmo, foi a consolidação da internet como canal de distribuição. Foi quando surgiu a Purple Chick.
A Purple Chick é, provavelmente, um grupo de fãs (ou um louco só) que está realizando compilações quase perfeitas e abrangentes de todo esse material disponível e distribuindo-as gratuitamente na internet. Hoje, Purple Chick é, se me permite o paradoxo, garantia de qualidade em gravações de má qualidade.
Basicamente, os discos piratas dos Beatles vêm de seis fontes distintas: gravações caseiras, gravações de programas de rádio na BBC, shows ao vivo, outtakes das sessões de estúdio, e as sessões de gravações do Get Back/Let it Be, como o show no telhado da Apple, que na última sexta completou 40 anos.
Decca Tapes
É o meu preferido, e o único que tenho em vinil. É a gravação da audição dos Beatles na Decca, aquela que fez o diretor da gravadora, Dick Rowe, dispensá-los e dizer que “bandas de guitarra estão fora de moda”, para seu eterno arrependimento. É um bom disco. As gravações são encontradas em vários outros, hoje em dia, mas esse é o original. É um clássico absoluto.
Demos
Demos é como são chamadas as gravações caseiras feitas para não esquecer uma música que acabaram de compor ou para mostrar aos outros membros da banda. Antigamente elas estavam espalhadas por vários discos diferentes, em coletâneas como a série Artifacts, mas hoje há uma série chamada The Complete Home Recordings, que abrange desde as primeiras gravações, ainda com Stuart Sutcliffe, até o final. A maior parte é chata de doer, mas aqui e ali uma ou outra canção se sobressai. Serve também para entender que, na época do “Álbum Branco”, as canções já eram apresentadas ao resto da banda praticamente em sua forma final.
BBC
Foi uma das grandes fontes de pirataria dos Beatles durante muito tempo. Nos seus shows na BBC, eles tocavam músicas inéditas — são dezenas delas –, brincavam, etc. Durante muito tempo a melhor compilação desses shows foi o The Complete BBC Sessions; hoje, se alguém quer a mais completa, deve procurar pela edição com mesmo nome da Purple Chick. Está tudo ali. É a melhor de todas. Mas o fato é que mesmo para fãs o disco oficial Live at the BBC é mais que suficiente. Com algumas poucas exceções, praticamente tudo o que os Beatles gravaram de interessante na BBC está lá. O resto é redundante.
Shows
Os dois únicos discos ao vivo oficiais dos Beatles foram lançados 7 anos depois do fim da banda. O Live at Hollywood Bowl, uma mixagem de pedaços dos shows de 1964 e 1965, ainda não foi lançado em CD, e o The Beatles Live! At Star Club, Hamburg 1962 sempre enfrentou problemas legais, já que nunca foi autorizado pela banda. (Em 1998 eles finalmente venceram um processo judicial para tirá-lo de catálogo, e hoje é um disco pirata. Mas é brilhante. Serve, quando menos, para mostrar que os Beatles eram uma grande banda de rock and roll e que eram extremamente empolgantes ao vivo, antes da rotina dos shows da beatlemania.) A maioria dos discos de shows têm qualidade de som muito ruim, servindo principalmente como registro histórico. Mas há exceções. O Shea Stadium é o maior show da história dos Beatles (embora tenha sido “aperfeiçoado” em estúdio algumas semanas depois), e o primeiro mega-show da história. No Live in Atlanta, 1965, você pode ouvir Lennon esnobando a sua audiência, que obviamente não podia ouvir nada por causa dos seus próprios gritos. O Five Nights at a Judo Arena, dos shows japoneses da última turnê dos Beatles, tem som excelente mas mostra uma banda que já não faz o mínimo esforço em tocar sequer afinada. E finalmente há o Candlestick Park, o último show ao vivo dos Beatles, em São Francisco (e melhor que os outros shows dessa turnê).
Out-takes
Ah, qualquer um. Tem um monte por aí. A maior parte é deprimente — mixagens da sala de controle, essas coisas. Com raras exceções, são todas inferiores ao que foi liberado. Não valem a pena. Há uma série chamada “The Alternate…” (The Alternate Help, The Alternate Rubber Soul, etc.) que faz um bom resumo do que foram as sessões de gravação de cada um desses discos, e se você quer se aventurar por esse pântano, são os mais recomendáveis. Costumam ser os discos com melhor qualidade de som — afinal, foram tirados diretamente do estúdio. E sempre se pode achar uma ou outra coisa realmente interessante nelas, uma versão esquisita de alguma canção, coisas desse tipo.
Let it Be
Essa é a outra grande fonte da pirataria. Afinal, foram mais de 90 horas de gravações. Há coisas inacreditáveis ali. Acho que chegam a centenas de canções diferentes. A série Thirty Days é clássica, e foi durante muito tempo a mais completa. Mas recentemente a Purple Chick lançou a série A-B Road, baseada nas fitas do filme — um “álbum” para para cada dia, com mais de 90 faixas em cada. Nos dois casos, a verdade é que qualquer ouvinte ficaria perdido entre tantas gravações dispensáveis, redundantes ou ruins. Diálogos, afinação, falsos começos, gravações sem absolutamente nenhum interesse — é uma infinidade de bobagens que não interessa a ninguém, além de colecionadores hardcore. É por isso que eu recomendaria os 3 discos de The River Rhine Tapes. Uma excelente seleção do que saiu de melhor daquelas sessões — John cantando Get Back, Maxwell’s Silver Hammer, Something e I’ve Got a Feeling, por exemplo, as melhores versões de Two of Us, e muito mais — com qualidade de som muito boa. É definitivamente melhor que o Anthology III.