Cinema Paradiso

“Cinema Paradiso” é um dos excelentes filmes italianos do final dos anos 80. Não havia muitos no seu nível, naquele final de década. Delicado, forte, o filme parecia ser um epitáfio lírico à era dos cinemas, crônica nostálgica de um tempo passado em que eles ainda estavam no centro da vida nas cidades. Era também um olhar melancólico sobre um presente em que nem mesmo filmes pornográficos conseguiam sustentar as velhas salas, destruídas pela lascívia doméstica dos videocassetes.

(O cinema em que assisti a “Cinema Paradiso” já estava em seus últimos anos. Hoje é uma loja de roupas populares, depois de uns poucos anos como bingo. Seguiu um destino triste, talvez mais triste que o Paradiso, ao qual tiveram a decência de eutanizar.)

Sinopse rápida, para quem inexplicavelmente ainda não viu esse filme: Totó, cineasta famoso mas com uma vida que parece incomodamente vazia, recebe um telefonema de sua mãe avisando que Alfredo morreu. Vem um longo flashback: na Sicília paupérrima do pós-guerra, Totó é um menino apaixonado por cinema que acaba se aproximando do velho Alfredo, projecionista do cinema da cidade, o Paradiso, propriedade da Igreja cujo padre corta todas as cenas mais quentes, até mesmo as de beijo. Totó tanto insiste que consegue se tornar assistente de Alfredo. Já adolescente, se apaixona por Elena. No entanto ela vai embora, e logo depois um Totó de coração partido deixa a cidade, para nunca mais voltar. Corta para os dias atuais. Pela primeira vez em 30 anos ele volta a sua terra natal, a tempo de ver o enterro de Alfredo e a implosão do Paradiso. Ele leva para casa a herança que Alfredo lhe deixou. A descoberta do conteúdo dessa herança é uma das mais belas cenas de encerramento de um filme em toda a história da sétima arte, e uma das maiores declarações de amor que qualquer cineasta já fez ao cinema.

O filme, claro, é muito mais que isso. Além de um fantástico painel de tipos sicilianos — o louco de estimação da cidade, o mafioso local, o comunista, riquinhos e pobres, o ganhador da loteria, a prostituta, quase todos vistos en passant —, ele tem uma delicadeza e uma sensibilidade raras. É claro que “Cinema Paradiso” bebe da fonte inesgotável do melodrama italiano — ninguém poderia jamais compreender o cinema italiano, mesmo o neo-realismo, sem entender a tradição operística da sua cultura latina —, mas consegue evitar, sempre, a pieguice. Consegue aquela boa mistura de humor e emoção que já colocou o cinema italiano entre os melhores do mundo.

No entanto, em algum momento lançaram uma versão do diretor, mais longa, esta que assisto agora. Nela, além de algumas cenas a mais, pouco relevantes, o romance de Totó e Elena ganha mais espaço, mais explicações e, mais importante, altera significativamente a percepção dos personagens.

E isso faz pensar sobre essa onda recente de versões do diretor.

Não dá para fazer um julgamento único. Talvez a versão corrigida de “A Marca da Maldade”, de Orson Welles, seja muito melhor que a que foi originalmente aos cinemas. Eu, que não vi a versão original alterada pelo estúdio, não tenho certeza. Mas acredito que “Soberba” seria infinitamente melhor sem o final colocado a fórceps à revelia de Welles, porque ele é tão destoante do resto do filme que parece uma grande piada de mau gosto.

O problema é que esses casos, em que um estúdio violenta um diretor que está dormindo, são muito raros. A maior parte desses filmes são o resultado de conflitos e negociações, de opiniões normalmente ponderadas e discutidas à exaustão. Ninguém tenta fazer um filme ruim deliberadamente. E nenhum diretor aceita mudanças em seu filme sem discutir ou brigar.

No fim das contas, versões do diretor existem essencialmente para fazer as pessoas irem mais uma vez ao cinema, ou comprar novamente o DVD. São um fenômeno recente que só interessa de verdade aos produtores, talvez a um diretor mais vaidoso que acha que o filme como ele o concebeu é melhor do que aquela que milhões de pessoas aclamaram como obra-prima.

Assim como Apocalypse Now Redux não acrescenta nada a um filme que nasceu clássico, a versão do diretor empobreceu “Cinema Paradiso” de forma clamorosa. O que Tornatore não conseguiu entender, ou aceitar, é que foram justamente os cortes feitos que limparam do filme o dramalhão, o romantismo barato; que deram a dimensão de verdade universal à vida de um pobre menino siciliano. Não é a inserção de um reencontro digno de fotonovela italiana que vai fazer melhor um filme originalmente delicado e sutil. O filme que foi originalmente aos cinemas era limpo, verdadeiro. Não tinha gorduras, e em vez de chafurdar no clichê das explicações desnecessárias, tinha uma verdade melancólica e lacônica que o erguia acima da grande maioria dos outros filmes.

“Cinema Paradiso” é tão mais belo sem essas explicações, sem que a gente saiba por que Elena sumiu no mundo sem avisar ao Totó. É tão mais belo sem entender a profundidade do papel de Alfredo como demiurgo; sem reencontrar Elena; sem explicar tudo aquilo que não vimos. A permanência de Elena é tão mais bela, tão mais significativa sem encontros furtivos de duas pessoas de meia-idade dentro de um carro numa praia erma; a lembrança de Alfredo é tão mais verdadeira e imponente sem que precisemos vê-lo como um Mangiafuoco cego.

Eu e tantas pessoas olhamos às vezes para trás e vemos pessoas que desapareceram no mundo, que um dia estiveram próximas e então se afastaram, desapareceram na névoa do tempo. Nós não as reencontramos, nunca, e por isso suas lembranças adquirem uma pátina que as torna mais belas à medida que elas também vão desaparecendo. Foi isso que Tornatore não entendeu. Ele não percebeu que, nesses casos, o reencontro apenas traz tristeza e destruição, aniquilando um passado que, então, jamais será tão belo novamente.

Nostalgia dos anos 80

Vendo um comentário antigo do Leonardo Bernardes aqui, fico surpreso ao ver que pareço não gostar do passado.

Porque sou a pessoa mais nostálgica que eu conheço. Eu gosto de lembrar de tempos idos e tenho boa memória para essas coisas. E a internet tornou tudo isso muito mais fácil. Antes dela, eu era a única pessoa que gostava de “Daniel Boone”, a única que lembrava de um seriado chamado “Joe, o Fugitivo”. A internet aproximou as memórias, universalizou lembranças individuais, tornou o passado um pouco mais próximo.

Aqui você encontra até a programação diária de TVs nos anos 70; fotos antigas da sua cidade cobrindo todo o século passado, tempos que você viu ou não; no YouTube, encontra registros em vídeo ou áudio de virtualmente tudo o que foi exibido ao longo da história da TV. Intervalo comercial do horário nobre da Globo no início dos anos 80? Está lá.

A internet corrigiu muitas de minhas memórias, e tornou outras mais específicas. Agora esse tipo de coisa chegou também à TV porque os canais precisam de programação, e é tão estranho, mas me peguei assistindo ao Globo de Ouro e ao Cassino do Chacrinha nesses dias.

São coisas de 25 anos atrás, um quarto de século. Em outros tempos essas coisas tão velhas seriam esquecidas, pelo bem da humanidade; mas a TV e a internet não permitem que velhos pecados sejam perdoados e não permitem que você enterre os malfeitos do passado.

No Globo de Ouro a gente vê Fábio Júnior e Fagner novinhos, Lulu Santos em sua melhor época, Elba Ramalho dançando fricote, José Augusto — alguém lembra de José Augusto? Os anos 80 foram dele —, Kátia voltando dos mortos que ela não viu, Rosana como uma deusa absoluta das rádios, e o rock brasileiro em seu melhor momento, garimpando um espacinho aqui, outro ali nas paradas de sucesso.

Vê também que rock era coisa de menino rico, então como agora. É engraçado ver o Humberto Gessinger, em plenos anos 80 em que a guitarra Giannini ainda era rainha (a menos, claro, que você não tivesse nenhum resquício de amor próprio e fosse o dono envergonhado de uma Tonante), com um baixo Rickenbacker 4003 — caríssimo até hoje. É olhar as caras de quem fazia rock, numa época em que ele tinha se transformado na música unificadora da juventude brasileira, e notar as fisionomias de meninos que nasceram em meio à fartura — tão diferentes dos dançarinos e backing vocals da Banda Reflexu’s e dos integrantes do Placa Luminosa, uma típica banda de baile.

É chance de rever também a moda, tadinha. Eu não gostava na época — aquelas calças folgadonas (o nome era bag?), apertadas na cintura e nos calcanhares; camisas de manga comprida abotoadas até o pescoço; as moças com saias balonê e penteados de poodle malcriado; ombreiras quase universais fazendo lembrar os zoot suits dos anos 40; eram tempos estranhos. A moda dos anos 80 era brega, era feia, era um atentado aos olhos e ao bom gosto; mas comparando com o que se vê nas ruas neste século, é fácil perceber que ao mesmo tempo foi o último momento em que tentou ser ousada, mesmo que isso não tenha dado certo.

Pior que o Globo de Ouro, no entanto, era o Cassino do Chacrinha.

Rever o Cassino do Chacrinha me faz ter a certeza de que eu estava certo e os críticos de comunicação que falam maravilhas de Abelardo Barbosa estavam errados: pelo menos nos anos 80, o Chacrinha era lixo comercial, sem nenhum aspecto redentor. Nenhum. Chacrinha era lixo, ponto, uma caricatura de algo que talvez um dia tenha sido engraçado ou criativo. E eu nem mesmo me refiro ao jabá óbvio, aos acordos escusos (placas fazendo propaganda de Sarney e do governo do Maranhão, por exemplo). Me refiro ao tipo de programa que ele fazia, medíocre, rasteiro, pobre. Talvez o Chacrinha tenha sido revolucionário no rádio, ou no início da TV; mas em seu final, aquele que acompanhei, ele era apenas ruim. Aquilo não era um bom programa. Não era sequer uma boa estética. Além disso, o Globo de Ouro parecia ser mais controlado no jabá do que o Chacrinha. Talvez seja uma questão de ovo ou galinha, mas as músicas que apareciam ali, com raríssimas exceções, eram realmente as que tocavam no rádio. As do Chacrinha eram as que iam tocar.

Eu não via nenhum desses programas naquela época. Normalmente estava na rua, militando no grêmio estudantil ou na União da Juventude Socialista ou correndo atrás de alguma moça dadivosa o bastante para acabar com o meu sofrimento, e que nunca encontrava. Mas se estava em casa, eu não ia ver aquilo. Tinha mais o que fazer. O Globo de Ouro era apenas um repositório de música ruim a que eu assistia raramente; o Chacrinha, nem isso. Hoje vejo essas coisas com um sorriso nos lábios; lembro delas, e uma sensação de nostalgia é inevitável. Mas não por elas: por mim.

As coisas, no entanto, não são tão simples. Por mais que me doa admitir o que vou dizer agora, por mais que eu diga isso com o coração confrangido, a impressão é de que a música popular brasileira — a verdadeiramente popular, não a música de elite que sempre existiu — daquela época era melhor que a de hoje. Era mais variada, ao menos, e bebia em mais fontes. Se hoje a música brasileira está cada vez mais uniformizada, se o que chamam de sertanejo é basicamente música pop cantada em falsete e é cada vez menos diferente do resto da programação, se a música baiana degringolou no lixo que se ouve em trios elétricos e em micaretas, na época existia variedade. Do rock ao forró, do brega ao infantil, do axé à música romântica. A riqueza que sempre se apregoou acerca da música brasileira estava lá. Não está mais.

Imagino como era tão melhor para os artistas aqueles tempos. Devia ser mais fácil ganhar dinheiro. Hoje, sem o Chacrinha para ditar a programação das rádios, a coisa é mais complicada.

Mas não é só para eles. É também para nós, os queridos ouvintes, os caros telespectadores. Hoje, assistindo ao Globo de Ouro, eu consigo lembrar de praticamente todas as músicas. Tenho dúvidas de que lembraria de algo semelhante — músicas de que não gostava e que não ouvia intencionalmente — daqui a outro quarto de século (ainda que estivesse vivo, claro). Porque mesmo que eu não assistisse àquelas desgraças, essas músicas estavam no ar, em todo lugar. Era um mundo mais simples e menos fragmentado. Não era melhor; mas às vezes até chega a parecer que era.

Alvíssaras balzaqueanas

Vi na livraria que a Editora Globo está relançando “A Comédia Humana” de Balzac. Terceira edição, agora.

Portanto, antes de mais nada, se você não a tem vá correndo comprar. São 17 volumes. Compre. O preço é meio salgado, mas vale cada tostão que você der nesses livros. Se não puder comprar todos, compre ao menos o volume IV (que tem “O Pai Goriot” e uma belíssima seleção de contos) e o VII (que traz “Ilusões Perdidas”).

“A Comédia Humana” é uma daquelas obras que todo mundo deveria ler, assim como “Dom Quixote”, “Crime e Castigo”, “Os Irmãos Karamázov”, “Ana Karênina”, “Em Busca do Tempo Perdido”, umas quatro peças de Shakespeare e o “Dom Casmurro”. Compre. Leia. Você não vai se arrepender.

Acho que quase tudo o que eu podia dizer de Balzac já disse aqui, anos atrás. E desde aquela época eu já implorava a quem quisesse ouvir pela reedição dessa obra magnífica.

No entanto, essa é de todas a pior. O design da capa é modernoso mas não diz nada; o papel mais vagabundo faz com que o volume seja mais grosso — o texto em tipos e espaçamentos maiores, no entanto, facilitam a leitura e são uma qualidade; além disso, a decisão óbvia de colocar o “Prefácio” de Balzac no primeiro volume é uma correção a uma grande bobagem na edição anterior. Comparada à segunda edição, com sua capa em courino e sobrecapa razoavelmente elegante, contida, a nova edição não é verdadeiramente moderna nem é bonita. É mais pobre, na verdade, como uma velha maquiada para parecer mais jovem mas que acaba sendo apenas patética.

Mas é “A Comédia Humana” de volta às livrarias, afinal. A capa, o papel, tudo isso deixa de importar assim eu você passa pelas primeiras quatro, cinco páginas de cada romance de Balzac.

O mais curioso é que, por uma razão que tentam justificar numa nova introdução à obra mas que continuo achando inexplicável, não corrigiram aquele que é, na minha opinião, o único equívoco nas traduções supervisionadas pelo Paulo Rónai: o aportuguesamento de nomes próprios, que nos obriga a conviver com Luciano de Rubempré e Eugênio de Rastignac, por exemplo. A esta altura da história humana, em que a globalização faz com que idiomas sejam irremediavelmente permeados por elementos estrangeiros e a internet contribui para a formação de uma babel eletrônica, é inacreditável nós ainda tenhamos que conviver com essa mania portuguesa. Esta edição perdeu a chance de corrigir esse erro. Mas isso não é grave.

Grave é perder a chance de mergulhar em Balzac.

Um cinema em cada cidade

O texto abaixo é um e-mail enviado por mim para uma amiga há algum tempo, que tinha me mandado um e-mail descendo a lenha em mim por causa desse post. Lembrei dele e, embora já não saiba a quantas anda esse projeto de cinemas em cidades com 100 mil habitantes, continua sendo o meu ponto de vista.

Acho que você saiu do ponto principal — a garantia de acesso do povo a cultura, e mesmo à produção cinematográfica — para apenas repetir um discurso velho, que confunde o meio e a mensagem.

Pior, desconsiderou a discussão sobre o que realmente importa. Partiu apenas para a defesa e repetição do projeto e seu discurso, esquecendo, inclusive, que o ponto aqui não é negar o acesso do povo à informação cultural; é ver se há formas mais eficientes de realizar esse direito.

Em primeiro lugar, os dados que você cita são pouquíssimos e limitados, e não justificam sua urgência para que eu pesquise por aí. Você podia citar um mais interessante: sabe quantos cinemas existem na Índia? 12 mil, o que dá uma relação per capita ainda menor que a do Brasil. No entanto, no mesmo 2009 em que o Brasil produziu 75 filmes, a Índia produziu 1288 longas, de um total de algo menos de 3 mil peças em celuloide. Os dados que você cita tampouco mencionam que os pouco menos de 6 mil cinemas (e cerca de 40 mil telas) existentes nos EUA em 2001 (número que começou a decair depois do boom dos multiplexes nos anos 90) são um número proporcionalmente muito menor do que o que havia em 1930, quando 65% dos americanos iam ao cinema semanalmente. Hoje são apenas 9,7%.

Esses números, que são a realidade que elitistas como eu deveriam conhecer, deveriam servir para ao menos fazer vocês questionarem essa obsessão pervertida por salas de cinema. Quanto ao resto da sua argumentação, é apenas justificativa de uma ideia. É algo válido, mas apenas a partir do momento em que se concorda com sua premissa. E eu não concordo.

Dados jogados assim, sem levar em conta o seu contexto, funcionam como palavra de ordem. Mas não se sustentam com tanta graça sozinhas porque desconsideram a realidade em redor e a evolução histórica. O mesmo texto da Ancine de onde você tirou a palavra de ordem de que “O Brasil é o 60º país na relação salas de cinema/habitantes” lembra que o número de salas no país duplicou com os multiplexes (processo que, aliás, se repetiu no mundo inteiro); aí lembra que 80% das salas de exibição ficavam no interior (dado insuficiente porque não distingue o interior desenvolvido de São Paulo, como Santo André ou Osasco, de cusdemundo como Cabrobó, Cumbe ou Uauá).

Ainda o texto da Ancine:

O Brasil já teve um parque exibidor vigoroso e descentralizado: quase 3.300 salas em 1975, uma para cada 30.000 habitantes, 80% em cidades do interior. Desde então, o país mudou. Quase cento e vinte milhões de pessoas a mais passaram a viver nas cidades. A urbanização acelerada, a falta de investimentos em infraestrutura urbana, a baixa capitalização das empresas exibidoras, as mudanças tecnológicas, entre outros fatores, alteraram a geografia do cinema. Em 1997, chegamos a pouco mais de 1.000 salas.

A impressão que tenho ao ver esse parágrafo é a de que, mesmo quando os dados estão na sua frente, você pode escolher não vê-los. É óbvio que se as salas de cinema foram desaparecendo havia uma razão muito objetiva. Isso está claro nesse texto. Mas essa simples recapitulação cronológica não diz o mais importante: que o elemento mais importante nessa transformação foi a TV.

A TV acabou com muitas das funções dos cinemas. Extinguiu os cinejornais. Garantiu dramaturgia gratuita com mais conforto para milhões de pessoas. Foi por isso que primeiro os cinemas de bairro e depois os dos centros das cidades fecharam: não podiam mais atrair público suficiente, porque já não eram a única forma de ver um filme. Durante muito tempo eles ainda se sustentaram com filmes B e pornôs; depois nem isso, porque o videocassete destruiu a pornografia cinematográfica. (Na verdade, a consolidação da TV mudou o próprio cinema em ciclos constantes, a partir dos anos 50, mas essa é outra discussão.)

Aí está o problema. O culto à sala da exibição é anacrônico e elitista, mais elitista do que você me julga — é um conceito antigo, que parte da visão edulcorada de que ir ao cinema é algo que todo mundo quer.

E não é. O que as pessoas querem é ver filmes.

É aí que deve entrar o Estado: garantindo que as pessoas tenham acesso ao cinema nacional, seja onde for, seja como for. Por isso o anacronismo dessa discussão: nego confunde o meio com a mensagem, em detrimento desta última. Ao propor levar um cinema para cada cidade de algum porte, o Estado tenta recriar artificialmente uma situação que a evolução cultural e econômica tornou insustentável e que, pior, desconsidera todo o avanço tecnológico dos últimos 60 anos. Quer algo mais anacrônico que isso?

Entendo até que se tente preservar cinemas antigos, como o Odeon (e como deveriam fazer com o São Luiz de Fortaleza, que da última vez que vi estava fechado e já foi um dos cinemas mais luxuosos do Brasil, joia da coroa de Severiano Ribeiro, e o Jandaia em Salvador, o mais belo de todos, monumento perfeito aos barões do cacau). Trata-se, neste caso, de preservar ao menos um desses lieux de mémoires que as cidades vêm perdendo. Mas criar cinema no século XXI onde não existe nenhum é uma grande bobagem.

O que vocês estão fazendo tem pontos de contato com a tentativa desesperada das gravadoras de garantir o seu mercado, embora seus objetivos e motivações sejam diferentes. Sala de cinema, como CD, é simplesmente meio de distribuição. Fez sentido quando era a única forma de assistir a um filme qualquer; hoje, não deveria ser o que importa para quem produz nem é o que o público acha fundamental. E por isso é preciso levar em consideração os novos meios de distribuição.

A questão é: vocês querem que o povo veja filmes brasileiros ou vá ao cinema ver filmes brasileiros? Porque apesar do que vocês parecem achar, isso não é a mesma coisa. Vocês parecem partir do princípio de que salas de cinema cumprem uma função cultural e socialmente efetiva e insubstituível. E isso já não é verdade no Brasil desde 18 de setembro de 1950.

Acho também que não custa olhar em volta, entender a realidade como ela se apresenta. Os cinemas desapareceram, ponto, leve uma guirlanda de flores para eles. E no caminho veja que um mercado imenso de DVDs piratas floresce assustadoramente; é cada vez mais difícil passar por uma calçada onde eles não estejam expostos, ir a algum bar onde um vendedor não os tente vender a você. Os seja: em vez de se manter no passado cor-de-rosa (bem, como é cinema deve ser sépia, né? Aquele amarelado de “O Pecado de Todos Nós” cairia bem) do MiNC, as pessoas evoluíram, mudaram a sua forma de consumir cinema.

Na boa? Se com esse dinheiro que se pretende gastar para construir, manter e garantir programação nesses cinemas o Estado simplesmente gravasse DVDs e os distribuísse de graça, vocês conseguiriam muito mais, e ampliariam ainda mais o mercado para esse pessoal que vive de audiovisual. Eu pessoalmente duvido que esse povo que você invoca para me chamar de elitista aturasse metade dos filmes que você reclama que não chegaram às salas de exibição; mas novamente, não é essa a discussão (me desculpe, mas quando vejo alguém falando nesse “resto da cinematografia do mundo que nunca chegará a essa mesma parcela que tem seu dvd e compra o pirata” eu invoco São Stanislau, porque pressupõe um interesse que, sinceramente, não existe).

De qualquer forma, esse é só um aspecto menor dessa discussão. Acho também que o MinC faria mais pelo segmento do audiovisual, que é o que está em discussão aqui, se apoiasse mais eficientemente as TVs públicas. Você melhor do que ninguém sabe disso. Ofereça motivos para que o povo em geral assista à TV pública, tirando-a do traço em audiência, que vai prestar um serviço muito melhor à sociedade.

E tem também as diretrizes da Ancine que você mandou para mim:

DIRETRIZ (1): Ampliar a oferta de serviços de exibição e facilitar o acesso da população ao cinema
DIRETRIZ (2): Desenvolver e qualificar os serviços de TV por assinatura e ampliar a participação das programadoras nacionais e do conteúdo brasileiro nesse segmento de mercado
DIRETRIZ (3): Fortalecer as empresas distribuidoras brasileiras e a distribuição de filmes brasileiros
DIRETRIZ (4): Dinamizar e diversificar a produção independente em todo o país, integrar os segmentos do mercado audiovisual e ampliar a circulação das obras brasileiras em todas as plataformas
DIRETRIZ (5): Capacitar os agentes do setor audiovisual para a qualificação de métodos, serviços, produtos e tecnologias
DIRETRIZ (6): Construir um ambiente regulatório caracterizado pela garantia da liberdade de expressão, a defesa da competição, a proteção às minorias e aos direitos individuais, o fortalecimento das empresas brasileiras, a promoção das obras brasileiras, em especial as independentes, a garantia de livre circulação das obras e a promoção da diversidade cultural
DIRETRIZ (7): Aprimorar os mecanismos de financiamento da atividade audiovisual e incentivar o investimento privado
DIRETRIZ(8):Aumentar a competitividade e a inserção brasileira no mercado internacional de obras e serviços audiovisuais
DIRETRIZ (9): Promover a preservação, difusão, reconhecimento e cultura crítica do audiovisual brasileiro
DIRETRIZ (10): Estimular a inovação da linguagem, dos formatos, da organização e dos modelos comerciais do audiovisual

O mais fantástico é que essas diretrizes falam em TV por assinatura quando deveriam estar falando em TVs públicas. Depois eu que sou elitista. Fora isso, nada disso contradiz o que eu venho dizendo aqui.

Eu não deixo de ter em mente que esse tipo de discussão diz muito mais respeito aos interesses de um segmento específico, como bancários brigando com caixas eletrônicos. Mas o pior, mesmo, é que para mim essa é uma posição burra. Essas diretrizes que você brandiu em nenhum momento falam em construir salas de cinema. Prestem atenção às diretrizes 3 e 4 e pensem fora da caixa. Ou fora da sala.

A propósito: é bom lembrar que das 600 salas projetadas, só foram construídas 6 até agora.

Beijo e beliscão na barriga,
Rafael

Misericórdia

Era uma senhora velha, daquele tipo de velha cuja idade é difícil de ser adivinhada pela configuração singular das marcas no rosto. Tanto podia ter 50 anos quanto 80. Ela tinha um cortiço na Misericórdia no comecinho dos anos 70. E tinha um pretinho que criava e no qual batia todo dia. Todo dia.

Ainda estavam longe os tempos da recuperação do Pelourinho. Aquilo tudo era feio, mas era de verdade: a Praça da Sé era fim de linha de ônibus, as lojas de discos, as livrarias e a Primavera ainda não tinham cedido lugar às armadilhas de turista atuais. Turistas, sim, mas muito menos que hoje; nas calçadas o que havia era a gente da Bahia indo e vindo do trabalho, vivendo os últimos dias de uma província malemolente, os dias antes de Aratu e de Camaçari que eu não vi — só entrevi de longe, olhando para o que tinha restado deles.

Pela Misericórdia e pelo Terreiro de Jesus se espalhavam cortiços que estavam ali havia décadas. E das janelas daquela casa de cômodos da Misericórdia, aquela que ficava bem em frente à Igreja, moças jovens viam com olhos deslumbrados os casamentos requintados na Igreja da Misericórdia. Ali casavam-se os ricos, a nobreza baiana de sotaque mole e arrastado. É uma coisa da Bahia, esses casamentos em igrejas antigas de bairros decrépitos, que realçam o contraste entre a riqueza e a miséria que em Salvador é mais forte que em outros lugares.

E as moças que das janelas olhavam os casamentos da filha do desembargador, da filha do empresário — ah, essas normalmente não tinham se casado, tinham se amigado com o rapaz de conversa macia e brilho nos olhos que lhes fez ferver as carnes; e dividiam o cortiço de quartos apertados, quartos separados por paredes que eram apenas pentimento, décadas e décadas de tinta barata rosa, azul, verde se sobrepondo umas às outras. Dividiam-no com as meninas de coquinhos infinitos na cabeça amarrados com cordão; com as lavadeiras que estendiam no telhado as roupas das freguesas; com as prostitutas que dormiam pela manhã e saiam à noite para trabalhar no Maciel logo ali perto; com os comerciários que chegavam arrastando os pés no meio da noite, espalhando o bafo de cachaça por todo o corredor que rangia à sua passagem.

Mas isso é o que elas veriam se olhassem para dentro, e por isso olhavam para fora, para as noivas radiantes e a gente chique embonecada, as câmeras fotográficas espoucando à sua passagem. Não interessa que para quase todas elas o futuro não fosse tão brilhante, e que os momentos felizes talvez fossem ainda mais efêmeros que o brilho dos flashes dos fotógrafos d’A Tarde. Acho que talvez soubessem, no fundo, que aquele destino não podia ser para elas. Mas também acho que tinham uma certeza: a de que o seu futuro, seguramente, não seria como o destino da velha dona do cortiço.

Era uma velha muito branca, de uma brancura difícil de achar na Bahia, pelo menos difícil de achar num cortiço na Misericórdia. Usava o cabelo também totalmente branco bem esticado em um coque no alto da cabeça. Morava ali mesmo, no seu cortiço, e era velha de maus bofes e alma ruim.

Não devem ter sido um ou dois os que tentaram adivinhar a sua história. Eu tentei também, mesmo muitas décadas depois. Talvez tenha sido a sua ruindade que a fez ir ficando para trás, ir perdendo as chances de ser feliz de verdade, e a ela só restasse o cortiço que herdou do pai enquanto seus irmãos, se irmãos ela teve, foram em busca de uma vida melhor. Talvez, como a Mulher de Roxo que já vagava um pouco mais abaixo, nas lojas da rua Chile, ela tivesse sofrido uma desilusão amorosa e o seu coração tivesse se encarquilhado em fel.

O que importa é que os anos 70 começavam e ela ainda estava ali. Mas não estava sozinha. Ela tinha o pretinho dela.

Era um rapaz franzino de uns 18 anos. Devia ter sido criado por ela desde a infância. Era tão comum, isso, e seria até muito mais tarde. Mas aquele caso era especial, porque não dá para deixar de pensar na ingenuidade de sua mãe, coitada, mulher tola que um dia achou que o seu filho teria uma vida melhor se fosse criado pela filha de sinhô.

O pretinho dormia no quarto com a velha, provavelmente no chão enquanto ela ocupava a cama. Quando me contaram essa história eu perguntei mas então a velha pegava o menino? E me disseram que não, que não era isso, ele era só o menino que ela criava, e por ser preto isso lhe dava o direito de bater nele, bater como se bate em jumento teimoso.

“Ah, Rafael, você não perguntaria isso se visse o olhar que ele dirigia a ela. Era um olho diferente, era ódio. Ódio e impotência.”

No final dos anos 60, em Salvador, a escravidão ainda não tinha acabado de todo. A velha ruim dona do cortiço na Misericórdia e tantas outras mulheres, bem ou mal intencionadas, criavam pretinhos como hoje criam poodles. Uns eram bem tratados e a esses era dada a sorte grande, a esses a vida abria mesmo a chance de uma vida melhor. Mas outros tinham o azar desse pretinho da Misericórdia.

Isso foi há mais de 40 anos. É tempo demais. A velha ruim já morreu, não pode estar viva. Sua casa de cômodos deve ter ficado para um sobrinho, um sobrinho-neto, e sobreviveu sobre as lojas do térreo — como a “5 Irmãos”, loja de tecidos que ainda estava lá no final dos anos 80. Mas então as coisas mudaram, e a nova Salvador para turistas saneou o lugar dos pobres que deveriam se conformar em morar para lá de Pernambués, para lá da Calçada. O cortiço hoje é um pequeno conjunto comercial. Ali fica a loja da Fundação Pierre Verger, por exemplo. A Misericórdia é hoje mais bonita do que talvez jamais tenha sido, e atrai vendedores ambulantes ansiosos por tirar algum dinheiro dos turistas que se amontoam por ali.

Se alguém se der ao trabalho de perguntar, o mais provável é que ninguém mais se lembre da velha senhoria do cortiço, velha ruim que tinha um pequeno escravo que a odiava no início dos anos 70. E deve ser difícil recuperar a história do velho cortiço, essas coisas a cidade esquece, engole como uma lembrança ruim que deve ser obliterada porque cidades são sempre tão maiores que suas pequenas histórias. Mas o menino que ela criava deve estar por aí, prestes a se aposentar, e só ele sabe as cicatrizes que sua alma carrega dos anos que passou no cortiço da Misericórdia.

9 de dezembro de 1980

O dia seguinte ao assassinato de Lennon foi diferente dos tantos outros domingos do verão de 1980/1981. 32 anos depois e ainda lembro dele como um dia escuro, o que quer dizer que deve ter chovido em Salvador; ao menos nublado. A TV exibiu o Let it Be — acho que a única vez em que esse filme chatíssimo foi exibido na TV brasileira. Alguém foi lá para casa, e lembro de entreouvir sem nenhum interesse conversas estupefatas e tristes sobre Lennon. É essa a sensação que ficou desse dia: não era a morte de um parente, de um amigo próximo, mas era a morte de alguém que de alguma forma tinha sido importante e querido. Era tudo tão inesperado, todo mundo estava realmente chocado com aquilo.

Menos eu. Eu estava de saco cheio. Eu queria era ver desenho.

O século XXI

O século XXI é isso: o arroz simples que você comeu a vida inteira, que milhões de brasileiros e brasileiras cozinham todos os dias sem sequer pensar no assunto, que sempre foi a parte mais fácil do almoço, agora se chama pilaf e tem história, tem um contexto, e se sofisticou para continuar sendo, no fundo, o arroz simples que você comeu a vida inteira.

As espetaculares oportunidades aracnídeas desperdiçadas

Só o Homem-Aranha para me tirar da minha aposentadoria como frequentador de cinemas.

Acho que todo mundo que escreve sobre filmes de super-heróis deveria lembrar de uma coisa antes: eles estão aí já há quase um século, e fazem parte do imaginário das pessoas de maneiras mais profundas do que se imagina. Personagens como Bruce Wayne, Peter Parker ou Mary Jane Watson são mais familiares à maioria da humanidade do que nomes como Bazarov, De Rubempré, Vronski ou Murdstone. No entanto, se ninguém em sã consciência respeitaria um filme em que o sr. Pickwick se tornasse parte de algo como a Liga Extraordinária, ou que transformasse Julien Sorel em um super-herói atlético, as pessoas parecem aceitar candidamente as barbaridades que se faz com as histórias dos super-heróis.

Resumindo a história original em algumas linhas: o secundarista Peter Parker é uma dessas vítimas preferenciais de bullying que é picado por uma aranha radioativa e, em vez de câncer, desenvolve superpoderes. Ao deixar escapar um bandido que posteriormente mata seu tio, ele descobre que “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Passa a atuar como um vigilante uniformizado, combatendo principalmente supervilões como o Abutre e Duende Verde enquanto tira fotos de si mesmo para um jornal chamado Clarim Diário, onde tem um rápido namoro com Betty Brant. Parker entra na universidade e conhece Gwen Stacy, que virá a ser sua namorada, e também Mary Jane Watson e Harry Osborn, seu futuro melhor amigo. Harry é filho do Duende Verde, que causa a morte de Gwen Stacy e morre em seguida. Parker então começa a namorar Mary Jane, com quem se casará mais tardes, até que os editores percebam a grande cagada que é casar um herói e desfaçam tudo.

Basicamente, essa foi a história do Aranha durante 50 anos. O que faz produtores de cinema quererem mudá-la é um mistério para mim. Não apenas por causa do seu tempo de serviço; mas porque esse é um excelente argumento, que pode ser desenvolvido de maneiras fascinantes.

Por exemplo, eu faria uma trilogia diferente (alguém um dia pode me explicar por que Hollywood desenvolveu essa tara em trilogias? Eu não consigo achar explicações razoáveis). Filme 1: Conhecemos Peter Parker, o babaca. Vítima eterna dos colegas, desprezado pelas meninas — com exceção de Liz Allan, o que ele não percebe. Parker é picado por uma aranha, tenta ganhar a vida como um Hulk Hogan genérico, mas deixa escapar o bandido que mata seu tio. Para purgar seu pecado vira herói, e aparece então seu primeiro grande inimigo, o Abutre (na verdade o primeiro vilão do Aranha foi o Camaleão, mas ele não daria um personagem adequado ao cinema). Parker começa a tirar fotos de si mesmo para ajudar a sustentar a casa, que vende para o Clarim Diário, onde conhece não apenas J. J. Jameson — cujo filho salva e, por isso, ganha sua inimizade eterna –, mas também Betty Brant, com quem passa a ter uma relação complicada, estabelecendo um pequeno triângulo confuso com Liz Allan. O filme termina com o Aranha derrotando o Abutre, mas perdendo suas mulheres. Porque o Aranha sempre se ferra no final.

Filme 2: Parker entra na faculdade. Conhece Gwen Stacy e Harry Osborn, e também Mary Jane Watson. Muita tensão sexual entre Parker e Stacy, mal resolvida. Aparece um novo vilão, o dr. Octopus. Tia May adoece, Parker se vira para tratá-la, a vida se torna um inferno. Jameson consegue fazer com que o Aranha seja procurado pela polícia. Parker finalmente começa a namorar Gwen Stacy, mas logo depois seu pai (que já tinha deduzido a identidade secreta de Parker) morre ao salvar uma criança durante uma luta entre o Aranha e o Octopus. Ele pede para que Parker cuide de Gwen, mas ela agora tem horror ao Aranha, complicando a vida do nosso herói. Ah, sim: no final o Aranha derrota o Octopus, mas eis que surge um tal de Duende Verde. Porque o Aranha sempre se ferra no final.

Filme 3: esse seria o filme “montanha russa”, o clímax em que a base delineada no filme anterior teria como cobertura uma ação assustadora. Agora o Duende Verde se torna um grande problema para o Aranha, que mora com Harry Osborn. O namoro com Gwen fica cada vez mais complicado. Parker enfrenta novos vilões (à escolha do freguês: pode ser o Kraven, pode ser o Rei do Crime ou o Electro, mas eu recomendaria muito o Escorpião). Depois de derrotá-los, eis que reaparece o Duende e mata Gwen Stacy. Ele morre num confronto com o Aranha, que termina o filme de maneira bem filosófica no Empire State. Sabe como é: o Aranha sempre se ferra no final.

Digam o que quiserem: eu gosto mais da minha trilogia do que dos filmes do Aranha feitos até agora. O engraçado é que esses filmes não mudam nada em relação à história tradicional dos personagens; são basicamente os dez primeiros anos das revistas do Aranha condensados em seis horas. Infelizmente, essa nova trilogia só existe na minha cabeça, e o que eu queria comentar mesmo era esse filme novo do Aranha.

Não é possível assistir a “O Espetacular Homem-Aranha” sem compará-lo à trilogia de Sam Raimi. Junto com os dois primeiros Supermen, de 1978 e 1980, o “Homem-Aranha 2” é o melhor filme de super-heróis já feito, e mesmo os defeitos que tinha foram herdados do filme inicial: erraram ao colocar Mary Jane na história desde o começo — e ainda por cima escolheram a Mary Jane errada. A decisão de utilizar uma teia orgânica gerou um comentário excelente do Henrique Plácido aqui neste blog: “Se é pra ser anatomicamente correto, ele tinha que soltar teia do cu”. Robbie Robertson era interpretado pelo ator errado, assim como ambos os Osborns, e o uniforme do Duende Verde parecia contrabandeado de um episódio dos Power Rangers. Mas o resto foi excelente. De J. J. Jameson à tia May, o elenco era perfeitamente adequado — Alfred Molina como o Dr. Octopus é inesquecível. Além disso, o filme mostrava o máximo possível de respeito ao uniforme original, em um tempo em que virtualmente nenhum uniforme é deixado intacto — olha o Batman aí, que depois de 7 filmes ainda não aprendeu a fazer seu uniforme.

Nessa comparação é fácil perceber que “O Espetacular Homem-Aranha” acaba sendo um filme contraditório. De um lado, umas poucas melhorias bem vindas; do outro, um amontoado de boas oportunidades perdidas, com boas ideias sendo jogadas fora por um roteiro que, se não é ruim, não amarra todas as pontas.

A principal melhoria está nos efeitos especiais. 10 anos fazem muita diferença, e hoje eles estão próximos à perfeição. O resultado é fluido, realístico. O elenco é surpreendentemente bom, e Andrew Garfield é uma excelente surpresa, apesar da estranheza inicial causada por sua carinha enjoada de menino punk punheteiro viciado em Rivotril, adequado ao público de “Crepúsculo”. Seu desempenho impressiona porque, ao contrário que agora andam dizendo, Tobey McGuire foi um excelente Peter Parker. Mais otário até do que o Parker original, McGuire resgatava o seu espírito, aquele dos estertores extemporâneos da década de 50 — o sujeito que enquanto vencia grandes vilões não conseguia colocar a mão embaixo do sutiã da namorada. No entanto também passava uma certa passividade; Garfield transmite melhor a angústia e as contradições da adolescência e de um personagem dividido, dando nova vida ao personagem e iluminando facetas que andavam meio esquecidas.

Martin Sheen está adequado ao papel do tio Ben, embora um ator menos famoso fosse mais recomendável. Mas nem a pau que a Noviça Voadora pode ser a tia de Parker: Sally Field como tia May é uma escolha tão ruim quanto Kirsten Dunst para Mary Jane, talvez pior. Quanto ao capitão Stacy, o fato é que durante anos, desde que se começou a falar em um filme do Aranha, aí por 1990, eu tinha meus favoritos para o papel. Primeiro Ralph Bellamy, então ainda vivo; depois James Cromwell com sua altivez patrícia, ainda hoje minha opção preferencial para o papel. Mas Dennis Leary não faz feio como o personagem. Rhys Ifans, um excelente ator, está bem como o dr. Curt Connors. O único problema é que destruíram o personagem, ao tirar dele a mulher e o filho, o que possibilitava conflitos entre o reptiliano e o humano que davam grandeza e importância ao Lagarto.

Levar Parker de volta para a escola secundária foi uma escolha acertada, porque possibilita uma série de conflitos bem adequados ao público-alvo. No entanto é mal aproveitada, e o resultado é que tudo é excessivamente superficial. Parker sempre foi mais importante que o Aranha, e se compreendessem melhor isso poderiam evitar absurdos como a transformação de Flash Thompson em amiguinho do peito sem nenhuma explicação. Esse é o tipo de coisa que dá para fazer rapidamente: nas revistas, por exemplo, Parker e Harry Osborn vencem a antipatia inicial e se tornam amigos em exatamente cinco quadros. Se o filme não consegue fazer algo semelhante, é por pura incompetência.

O uniforme sofreu uma modernização desnecessária e, o pior, inadequada. E isso vai ser sempre incompreensível para mim. Eu entendo que algumas modificações — em nome principalmente das características técnicas do meio — às vezes são necessárias; daí porque as linhas de teia no uniforme do Aranha de Raimi mudaram de cor e ganharam relevo. Mas Batman: Dead End provou há muito tempo que é possível, sim, fazer um filme de ação respeitando o uniforme dos personagens. Isso talvez não incomode a maioria dos espectadores: mas incomoda aqueles que, como eu, estão às voltas com o personagem há tempo demais.

O grande equívoco de “O Espetacular Homem-Aranha”, no entanto, é a maneira como trataram Gwen Stacy.

Gwen é um personagem que morreu há 40 anos, no que é uma das melhores histórias em quadrinhos de todos os tempos. Sua ignorância a respeito da outra identidade do namorado gerou situações dramáticas interessantes que carregaram as histórias do Aranha durante alguns anos. No entanto, no filme ela não apenas conhece a identidade secreta o Homem-Aranha, como ainda o ajuda. No fim das contas, o filme a trata como os quadrinhos trataram Mary Jane depois de casada. É um desperdício enorme, quase vergonhoso, porque as possibilidades dramáticas, especialmente quando se faz um filme voltado para o público adolescente, são enormes. Dizem que isso foi feito para aproximar o filme de uma série alternativa do Aranha, a “Ultimate”. Pois é. Deve ser.

No fim das contas, o novo filme do Aranha fica apenas um pouco abaixo do primeiro filme, lançado dez anos atrás, com erros e acertos diferentes e perdendo a vantagem da novidade. Um filme razoável, com erros e acertos, nada mais que isso. Como aliás é uma boa história em quadrinhos.