Sobre o debate de ontem

O debate de ontem entre os candidatos à presidência me incomodou. E não foi apenas a dificuldade pessoal de Dilma em elaborar um discurso persuasivo, sedutor, chegando ao ponto de parecer menos simpática que, último entre todos, Serra.

A ênfase excessiva na privatização como está sendo feita, a não ser que as pesquisas me digam que estou errado, me parece um erro. 2010 não é 2006. Talvez a demonização de Serra como privatista, de maneira genérica, não seja tão eficiente hoje quanto a perspectiva de que tudo aquilo que os brasileiros conquistaram no governo Lula seja perdido com o modo de Serra governar.

(Um comercial de Serra veiculado naquele momento faz ataques pessoais a Dilma, colocando em dúvida a sua capacidade de gerenciar crises. Certamente é um comercial mais eficiente, mesmo mentindo, mesmo apelando para a baixaria, do que comerciais conceituais condenando a privatização.)

Por exemplo, Dilma precisa aproveitar as oportunidades que aparecerem para lembrar que “eles” passaram oito anos dizendo que o Bolsa Família não prestava, que era bolsa-esmola. Eles nunca entenderam o que o Bolsa Família representa para quem agora sabe que no dia certo vai ter o dinheiro para comprar pão e leite para seus filhos. Ela precisa olhar para a câmera e falar para cada brasileiro: “Você lembra: eles diziam que o Bolsa Família era salário para vagabundo, para gente que não queria trabalhar. Agora, só para se eleger, dizem que vão até criar o décimo-terceiro do Bolsa Família. Será que eles acham que alguém acredita nisso?”

Além disso, Dilma parece ter uma tendência a ficar no varejo das coisas. Tem domínio dos números; mas números são importantes, mesmo, quando fornecem a base para a construção de um sistema de valores que represente a importância do governo de que ela foi parte fundamental.

Ela acaba se comportando mais como a excelente administradora que é, a mulher que pode fazer o Brasil continuar a crescer, do que uma candidata a um cargo político eleitoral. Esquece de contextualizar o que representa o governo Lula, esquece de trabalhar valores como a satisfação dos brasileiros com as suas vidas e a esperança no futuro para ficar em dados burocráticos. Pelo menos nesse debate, faltou a ela a capacidade retórica de construir um raciocínio político que extrapolasse os dados puros e deixasse claro que ela é a única pessoa que pode dar continuidade a um governo que é muito mais do que as obras que realizou. Dilma não está conseguindo captar e comunicar os valores do governo Lula.

Quando Serra insistiu nos recursos do FAT, dizendo que havia emprego de sobra e trabalhador qualificado de menos, ela primeiro deveria aproveitar e lembrar que isso é um grande exemplo do crescimento do país durante o governo Lula; no tempo do governo dele e de FHC era diferente, faltava emprego, o Brasil não crescia, como cresce hoje a 7,5% ao ano. E então ela engatava a segunda e explicava o que significa o número de escolas técnicas construídas. Mostrava que o governo ampliou o acesso ao ensino profissionalizante, explicava a filosofia por trás disso. Deveria mostrar que, mesmo mantendo a qualificação dos trabalhadores, o Governo Lula está oferecendo chances aos jovens que nunca foram oferecidas.

Quando Serra mencionou estradas — embora eu tenha a impressão de que ali havia uma pegadinha, que não sei qual é — ela deveria ter lembrado, antes de mais nada, a herança maldita. Deveria lembrar que ela e Lula — não ela, não Lula: ela e Lula –, ao chegar ao governo, encontraram as estradas destruídas por FHC. Devia falar diretamente ao telespectador: você lembra como era, sabe como era difícil. Serra e Alckmin resolveram isso privatizando estradas, vendendo o patrimônio do povo paulista, e criando pedágios e mais pedágios nas rodovias de São Paulo; é assim que eles fazem o cidadão pagar por um serviço que deveria ser público, e hoje um cidadão tem que pagar sei lá quantos reais — eu não sei o valor; ela tem obrigação de saber — para ir do Rio a São Paulo. Agora, para você ver a diferença entre o nosso governo e o deles: nós também encontramos as rodovias abandonadas no Sul, no Nordeste. Mas em vez de privatizar, nós investimos na recuperação e ampliação das estradas em todo o país. Neste exato momento, enquanto o Serra cobra pedágio, nós estamos duplicando rodovias em Sergipe, em X, em Y. Ao todo, investimos três vezes mais do que o Governo de Serra e FHC. É claro que não pudemos fazer tudo o que era necessário. Ainda falta fazer muito, é claro — segue lista de obras principais, incluindo as do Mato Grosso. E termina: é isso que está em jogo agora. O eleitor vai decidir entre dois modos bem diferentes de governar: se quer as estradas pelas quais passam todos os dias privatizadas, cobrando pedágios absurdos e extorsivos, ou vai eleger um governo que investe o dinheiro público em obras importantes para o futuro e para mais brasileiros.

Dilma domina os números. Mas precisa dominar, acima de tudo, os conceitos. A discussão sobre números interessa a Serra, porque é ele quem precisa desconstruir a obra do governo Lula; Dilma não precisa reafirmá-la de maneira absoluta até porque os 80% de aprovação popular do governo Lula não se devem aos seus belos olhos. Em vez disso, ela precisa retomar o seu significado. Dilma precisa, acima de tudo, evocar a mágica de uma obra sem precedentes na história deste país.

Dilma e o aborto

Dilma caiu na armadilha do aborto e Serra ganhou uma batalha importante. É uma armadilha muito semelhante à que Alckmin caiu em 2006; a diferença é que daquela vez era a privatização.

Já tinha caído antes, na verdade.

Mas na tal “Mensagem da Dilma” sobre o tema, veiculada hoje, ela assumiu uma posição clara, e disse que é “pessoalmente contra o aborto” e defende “a manutenção da legislação atual sobre o assunto”.

O que Dilma deveria dizer é que aborto é uma questão a ser resolvida pelo Legislativo, e se eximir de uma responsabilidade que, afinal, não é sua.

Deveria lembrar a sua própria história e mostrar o que significou, para uma mulher perseguida por uma ditadura sanguinária, ter coragem de gerar uma filha e lutar por ela. O que significou trabalhar para sustentá-la, acompanhar o seu crescimento, estar ao seu lado quando ela estava triste e quando ela estava alegre. Mostrar o orgulho que ela tem pela pessoa que formou.

Dilma deveria mostrar a alegria que sentiu ao pegar, pela primeira vez, o neto recém-nascido em seus braços. Mostrar o valor da família não em declarações que parecem saídas de alguém acuado, mas em seu próprio sentimento e humanidade. A história de Dilma é suficiente para revelar ao Brasil o seu valor como pessoa e como mulher — porque não são mais valores políticos que estão em pauta, mas valores pessoais. E deveria fazer isso de maneira psoitiva, não defensiva.

Maluf fez isso em um comercial antológico. Depois de uma frase infeliz sobre estupro — o famoso “estupra, mas não mata” –, ele reuniu toda a família e deixou claro que não era a favor daquilo. Mostrou que era a favor da família, que valorizava aquilo que tinha — e como um homem que amava tanto a sua família, com tantas mulheres em casa que obviamente amava, poderia ser a favor de algo hediondo como o estupro?

Já vi gente dizendo que não quer vencer a eleição a qualquer preço, e não abre mão de princípios e quetais. Esse é o discurso mais acomodado, mais esnobe que eu conheço. Essa história cai bem em mesa de bar, quando um monte de gente fica dando a explicação que bem entender sobre as razões do sucesso ou do fracasso de uma campanha.

Porque eu quero. Custe o que custar. Com os votos de quem for necessário. Para mim, voto não tem cheiro, não tem cor, não tem sequer ideologia. Voto é voto, e ponto final. O voto de um evangélico tem exatamente o mesmo peso do de um ateu — e Dilma será a presidente de todos, não de um só segmento social. Além disso, tenho como certo uma coisa simples: campanha é uma coisa, governo é outra. A discussão sobre o que deve ser o governo do ponto de vista de uma blogosfera progressista que defende o direito ao aborto, descriminalização da maconha ou coisa do tipo — plataformas que numa campanha eleitoral beiram a imbecilidade e só servem para afastar eleitores — deve ser iniciada no dia 1o de novembro; mas até lá o que importa é fazer o possível e o necessário para ganhar a eleição.

Sob esse aspecto, a campanha de Serra está mais acertada. É um candidato mentiroso, falso, baixo — mas ele faz o discurso que deve ser feito.

Dilma não está fazendo isso. Sua campanha está errada. Se fizeram um primeiro programa eleitoral que para mim — que já vi e fiz mais programas eleitorais que a imensa maioria dos mortais — é o melhor da história, de repente eles resolveram, em pleno segundo turno, privilegiar a informação e a comparação de governos, investindo em um discurso excessivamente racional. Esses são dados que devem sempre estar presentes, claro, mas a esta altura é preciso mais que isso. Não é mais questão de levantar razões para votar ou não na Dilma. Depois de dois meses de campanha na TV e no rádio, as pessoas já sabem o que o governo Lula fez e que Dilma é a candidata de Lula. O que se discute agora é quem é o melhor para sucedê-lo; e essa não será uma escolha feita de modo racional. Comparar governos talvez não seja a estratégia mais eficaz. Ou investir num conceito como o Serra Mil Caras — que sinceramente me parece inócuo.

O que Dilma deve recuperar é a emoção que esteve presente, de maneira magistral e insuperável, no primeiro programa. É a presença de Lula ao seu lado, lhe emprestando o carisma que ela, definitivamente, não tem. E a mensagem deve ser de paz e amor — a mensagem que Lulinha, ainda longe de ser o herói nacional que é hoje, passou em 2002. Dilma deve mostrar que é a garantia de que as pessoas vão continuar cada vez mais felizes, porque comem, porque vão à universidade, porque podem trabalhar, porque vão saber que Lula, através dela, continua olhando por eles.

Não é só a economia, estúpido. É também a emoção.

Enquanto isso, a militância poderia fazer algo que o NPTO está fazendo.

Se o primeiro turno deixou alguma lição, foi a de que as notícias sobre a morte da mídia foram muito exageradas. Foi a sua atuação que conseguiu valorizar Marina Silva (que merece um post e um mea culpa meus) e forçar um segundo turno que parecia remoto quinze dias antes. Não será no Twitter, no Facebook ou nos blogs que a eleição será ganha. É na rua. Se cada eleitor de Dilma se dedicar a conseguir pelo menos um voto nesses quinze dias que restam, nós ganhamos fácil a eleição.

Enquanto isso, para o Helio Jesuíno que veio cobrar post aqui, eu repito o que disse antes: minha guerra ganhei no primeiro turno. E agora com licença que eu vou ali escrever um panfleto para Déda e Dilma, que vai ser lido, ou pelo menos visto, por muito mais gente que os leitores deste blog, que obviamente volta à hibernação.

Lembranças de Dilma Rousseff

Durante uns dois anos, este blog foi invadido por bobos de direita que insistiam que o PSDB/DEM voltaria ao poder em 2010. Gente que olhava de cima para a candidata escolhida pelo presidente que odiavam, uma tal de Dilma Rousseff.

Abaixo seguem trechos de três posts distintos publicados aqui, mais de um ano atrás.

E um recado a todo aqueles que, com mais ou menos inteligência, tentaram contradizer o que já devia estar claro como o dia:

Vocês são uns idiotas.

22/01/2009 – A grande esperança da oposição, até agora, tinha sido a aposta na ausência de um candidato forte para suceder Lula. Finalmente reconhecendo que, mais que um político ou estadista, Lula é um dos maiores heróis nacionais na história, costumava ver como vantagem a idéia de que tinha candidatos mas não tinha programa, enquanto o governo tinha programa mas não tinha candidatos. (A propósito, este blog sempre achou que é mais fácil arranjar um candidato do que desenvolver um programa.)

(…) ao final das eleições de 2008, analistas políticos se apressaram em afirmar que o tão temido poder de transferência de votos de Lula era muito menor que o imaginado, já que o governo perdeu as eleições em várias capitais.

Mas uma eleição municipal não é a mesma coisa que uma eleição presidencial em termos de capacidade de transferência de votos do presidente em exercício. Cada dia mais atento, o eleitor brasileiro sabe diferenciar essas esferas. Uma eleição municipal é basicamente dominada por temas e interesses locais. Uma eleição presidencial tem forçosamente como referencial o atual mandatário e a avaliação que se faz do seu governo.

É por isso que na eleição presidencial de 2010 nós teremos Lula dizendo ao povo brasileiro: “A Dilma sou eu na presidência”. E por Lula na presidência entenda-se o cada vez mais forte e eficiente sistema de distribuição de renda simbolizado pelo Bolsa Família. A condução firme da política econômica. Uma posição internacional cada vez mais visível, sólida e influente. O Brasil que Lula vai deixar em 2011 é um país melhor do que aquele que o elegeu. Seus índices de popularidade alarmantes — para a oposição, ao menos — são o melhor exemplo disso. Em 2010, o que se terá será a disputa entre o modo de governo capitaneado por Lula e as alternativas pouco simpáticas às classes mais baixas representadas pelo PSDB e pelo PFL.

(…) Dilma Rousseff se consolidou de maneira surpreendente. Tem cada vez mais pontos positivos a seu favor, e se firma a cada dia como uma boa receptora dos votos do presidente Lula. Como possível candidata, vai se mostrando um nome ao mesmo tempo leve e sólido, sem as resistências que, por exemplo, um Ciro Gomes encontraria.

Dilma é uma mulher, o que por si só já representa um sopro importante de renovação. É uma política com ampla experiência administrativa e comprovadamente competente. Atravessou incólume o escândalo do mensalão, e não paira nenhuma suspeita sobre sua honestidade — mesmo no comando de um orçamento gigantesco, como o do PAC. Ou seja, a cada dia se consolida mais como o nome ideal para substituir o governo mais bem-sucedido da história democrática do país. É infensa até ao mais idiota dos argumentos contra Lula: ela tem mestrado em economia.

07/06/2009 – Em 2010, assim como em 2006, não vão adiantar factóides. Será preciso, ainda que isso a aterrorize, que a oposição apresente um programa de governo real e palpável. É algo que a sociedade vai cobrar dela. Ao contrário do que os saudosos do Plano Real possam imaginar, as eleições de 2010 não serão iguais às de 1994. O PSDB não vai estar na situação; e o povo não vai estar desesperado correndo de uma inflação de três dígitos. O país que a oposição vai enfrentar no ano que vem estará mais estruturado e mais bem encaminhado.

Resumindo: a oposição vai ter a inglória tarefa de apresentar conserto para um país que dá certo.

(..)

Qual é o projeto de Serra?

É preciso que a oposição faça a si mesma algumas perguntas. A primeira delas é: o que José Serra vai fazer de melhor como presidente? Sem cair na estupidez de dizer que este é um país que não funciona — porque, pela primeira vez em décadas, as pessoas finalmente sentem que ele melhora a cada dia –, o que Serra tem a apresentar que seja melhor do que Lula vem fazendo?

Quais as suas propostas para melhorar a distribuição de renda no país? Como ele fará com que o Brasil seja mais respeitado no exterior? O que ele pretende fazer para, sem passar por cima do jogo democrático e da separação de poderes, aumentar o nível de governabilidade do país?

Algumas armadilhas vão aparecer no seu caminho. Como justificar que, depois de oito anos dizendo que o Bolsa Família não presta, eles vão à TV e ao rádio dizer que não pretendem acabar com o programa? (Na verdade, eles já estão correndo atrás do prejuízo. Há cerca de duas semanas, o DEM e o PSDB de Sergipe realizaram um mini-seminário de um dia, com a presença do deputado federal carioca Rodrigo Maia, sobre Bolsa-Família. No que é um passo acertado, e uma correção de rumo há muito devida, a oposição resolveu deixar de lado a sua resistência irracional e aprender como é que se faz.)

Essas não são as únicas questões que vão aparecer diante da oposição. Eles vão precisar responder outras perguntas mais simples e que dão direito a menos tergiversações. Por exemplo: o que, no mandato de José Serra como governador de São Paulo, dá àqueles que o apóiam a convicção de que ele será melhor presidente do que Dilma? Com exceção de obras superfaturadas, crateras de metrô e livros didáticos heterodoxos, o que o governador de São Paulo vai poder apresentar como credenciais para que o povo brasileiro volte as costas ao projeto de Lula e vote nele?

Até agora, a neo-UDN tem apenas gritado e reclamado. Nesses oito anos, sua maneira de fazer oposição tem se mostrado aética e, definitivamente, nem um pouco republicana. Isso pode ser creditado ao seu desconforto nessa posição, em última análise. Mas isso são águas passadas. Do que se vai falar agora é de futuro. É de concepção de país. Pode ser uma perspectiva assustadora; mas é inevitável.

Está na hora de a oposição tirar a cabeça do buraco de onde grita “Está tudo errado!” e tentar mostrar às pessoas, afinal de contas, por que votar em Serra.

23/07/2009 – Qualquer tucano sabe que, ao escolher Dilma Rousseff como sua candidata à presidência, Lula fez uma escolha magistral. Dilma é uma mulher com qualidades “masculinas”, provavelmente o melhor meio-termo possível em política: pode representar uma mistura de renovação com segurança. Uma mulher forte, de história invejável e competência administrativa reconhecida. Uma mulher identificada, acima de tudo, com o governo Lula, muito mais do que outras personalidades petistas, que sempre tiveram carreiras paralelas à do presidente — e aqui se pode citar um Aloísio Mercadante ou uma Marta Suplicy. Dilma atravessou incólume a crise do mensalão, e está à frente de um dos mais importantes projetos de infra-estrutura do país, o PAC. Assustados, tucanos apontam pesquisas que indicam Serra na frente — mas mesmo eles sabem que isso, a esta altura, não significa nada, significa apenas que ela está crescendo, o que é um cenário ainda pior do que o que eles gostariam.

O PSDB sabe que quando Lula aparecer na TV e no rádio, colocar a mão no ombro de Dilma e disser “Dilma sou eu na presidência, mas ainda melhor”, milhões de brasileiros decidirão imediatamente os seus votos.

O que eles ainda não conseguiram entender com clareza é a razão disso.

Vale a pena ver de novo

Funcionava assim: chegava o meio do ano e eu republicava o que achava serem os melhores posts antigos.

Isso na em tempos idos, em que tinha post todo dia neste blog zumbi.

Agora chegou o momento de fazer a minha parte para enterrar de vez o que o meu Estado tem de pior. É a hora de reeleger Déda governador — e de quebra dar uma mãozinha indireta à minha futura presidente.

Dessa vez eu vou aproveitar para, com a republicação desses posts antigos, dar um pouquinho de vida a um blog que sofre com a minha falta de tempo crônica.

Vai ter post dia sim, dia não pelos próximos meses, coisa que não acontece neste blog já há um bom tempo. Alguns deles, acredite, são bonzinhos. São antigos, é verdade, mas como dizia o poeta panela velha é que faz panela boa — e eu sou um velhinho que prefere um bom post velho do que um mau post novo.

Conselho para o jornal Olé

Na edição passada vocês recomendaram ao torcedores brasileiros que, diante da derrota do Brasil para a Holanda, a gente comprasse uma TV de LCD para poder ver o resto da Copa.

Devolvo agora o conselho. Mas comprem um maior, para poder enxergar o placar.

O sub-tenente Towersey, novamente

Há muitos anos, nos primórdios deste blog, escrevi sobre um livro que achei num sebo em Niterói. Era uma edição comum de How Green Was My Valley, mas que trazia o nome do seu primeiro dono: Y. R. Towersey, sub-tenente da Marinha Britânica que adquiriu o livro em maio de 1941, enquanto se preparava para a II Guerra Mundial no HMS Excellent, em Portsmouth.

É um post de que eu gosto.

Nele eu dizia que não tentaria descobrir nada sobre a história do livro, porque me contentava em imaginar suas peripécias até chegar às minhas mãos. Não ia tentar descobrir se o senhor Towersey tinha sobrevivido ou não à Iguerra. O sub-tenente Towersey poderia ser o que eu tinha imaginado.

Cumpri a promessa que fiz a mim mesmo. Não procurei saber nada sobre Towersey, principalmente depois que fiquei sabendo que o Excellent não era um navio, e sim um centro de treinamento.

Mas sete anos depois eu posso contar o destino do sub-tenente Towersey, e isso é, para mim, tão interessante quanto a história que eu mesmo criei para ele.

Towersey lutou na guerra. Serviu primeiro em um caça-minas no Mediterrâneo, e mais tarde foi para a base naval da Algéria, trabalhando na parte administrativa.

Quando a guerra acabou, a Inglaterra estava em frangalhos. E Towersey, àquela altura mais um civil procurando emprego em uma cidade que não os oferecia, foi trabalhar para uma empresa de navegação, que tinha um escritório no Rio de Janeiro, para onde foi enviado.

No Rio lhe deram um conselho sábio: que fosse se hospedar em Niterói, para fugir da febre amarela. E lá o sub-tenente criou sua família. De alguma forma, um de seus livros foi parar num sebo. E hoje descansa na minha estante.

Fiquei sabendo da história de Towersey porque seu filho, Daniel, achou este blog e o post sobre o seu pai, e deixou um comentário.

Na verdade, o nome do sub-tenente cujo livro veio parar em minhas mãos não começava com Y, e sim com F — eu é que li errado. E ele está vivo em 2010, do alto de seus 90 anos. Ao lado está uma foto do oficial ainda jovem.

Daniel Towersey descobriu que alguém, que ele nunca viu na vida, escreveu sobre um pedaço da história de sua família.

E eu descobri que algumas coisas continuam mágicas mesmo depois que você descobre o mais importante sobre elas.

Deus e o diabo

O mais me fascina em quem acredita em Deus é a maneira como eles estão dispostos a acreditar em um ser superior sem começo nem fim, sem nenhuma explicação, que criou toda a matéria do nada e vai continuar existindo a despeito de tudo o que achamos, e ainda assim não conseguem perceber a beleza e a similaridade da idéia de que tudo o que existe é grande e belo o suficiente para dispensar um criador, matéria sem começo nem fim, sem nenhuma explicação, e que vai continuar existindo a despeito de tudo o que achamos.

O que mais me fascina em quem não acredita em Deus é a maneira como eles estão dispostos a acreditar que tudo o que existe é grande e belo o suficiente para dispensar um criador, matéria sem começo nem fim, sem nenhuma explicação, e que vai continuar existindo a despeito de tudo o que achamos, e ainda assim não conseguem admitir a beleza e a similaridade da idéia de um ser superior sem começo nem fim, sem nenhuma explicação, que criou toda a matéria do nada e vai continuar existindo a despeito de tudo o que achamos.

E o que me irrita em uns e outros é a maneira que, ao fazer proselitismo de suas crenças, abdicam da razão e se igualam na mesma lama da ignorância.

José Serra não está preparado para ser Chefe do Estado brasileiro

O que mais chama à atenção nas declarações recentes de José Serra sobre o presidente da Bolívia, Evo Morales, é que elas servem, quando menos, para comprovar uma constatação que vinha tomando corpo nos últimos anos.

É uma constatação muito simples, mas fundamental para a compreensão do cenário político atual: a direita brasileira não apenas foi incapaz de trazer o Brasil ao estágio de desenvolvimento em que ele se encontra. Infelizmente, ela é também incapaz de administrar esse novo país — mais rico, mais justo, mais importante.

Já há algum tempo, vinha ficando cada vez mais claro que o PSDB/DEM tem dificuldades em entender o país em que vivemos atualmente. Suas investidas contra a participação do Estado na economia mostram que, mesmo que os fatos desabem sobre suas cabeças, eles não conseguem enxergar além de suas fórmulas de administração de país subdesenvolvido, condição que, historicamente, é a favorita da direita brasileira. Mesmo depois do crash de 2008, quando a atuação eficaz do Governo impediu que o Brasil seguisse os passos de países tradicionalmente mais ricos e atolasse em um dos maiores lamaçais financeiros da história — enterrando de vez as lembranças amargas das crises em que o governo de Fernando Henrique Cardoso, padrinho de Serra, enfiou o Brasil.

Se essa situação já estava suficientemente clara em termos de política interna, agora Serra se encarregou de demonstrar que a incapacidade do grupo que representa não conhece limites. E mostrou que é realmente um candidato globalizado, como o PSDB/DEM gosta de ser: sua estupidez demonstra estar em expansão constante, e não consegue se limitar a meras fronteiras nacionais.

Ao acusar um Chefe de Estado estrangeiro de cúmplice de traficantes, José Serra fez muito mais que cometer uma gafe diplomática. Mostrou, acima de tudo, a sua completa incompetência em política internacional.

Já se sabia que, como virtualmente toda a direita brasileira, Serra não consegue enxergar as diferenças óbvias e cruciais entre Evo Morales e Julio Cesar Chávez, não consegue entender as condições objetivas de governo de cada um deles, suas necessidades políticas e suas retóricas diferentes. Por isso, por não compreender o que vê, trata a ambos como criminosos.

Mas agora o caso se torna mais grave. Ao tratar um líder legítimo e importante para a história de seu país como Evo Morales de uma forma indigna, ofensiva e caluniosa, enquanto fecha os olhos para os crimes verdadeiros cometidos pelo grupo do colombiano Álvaro Uribe, com quem tem muito mais afinidades ideológicas, Serra deixa antever a extensão da catástrofe que seria um eventual — e cada vez mais improvável — mandato seu em termos de política exterior e comercial.

Não se trata mais de discurso e presunções: falamos, agora, de atitudes concretas. Já temos indícios suficientes de que, se fosse eleito, Serra se encarregaria de devolver o Brasil à posição com a qual essa direita encabeçada pelo PSDB/DEM se sente mais confortável: a de um país subalterno e subjugado, envergonhado e resignado à condição de pobre da periferia — um país que assume completamente o seu complexo de vira-lata.

Insultando Evo Morales e colocando o Brasil como alvo de críticas justas, pela primeira vez em muitos anos, José Serra demonstrou que não é capaz de desempenhar dignamente a função de chefe de Estado. De nenhum país, nem mesmo de Honduras — mas, principalmente, se mostrou incompetente para governar um país em consolidação econômica e ascensão no cenário internacional como o Brasil.

Justiça seja feita: o feito que Serra conseguiu não é para qualquer um. A inserção internacional que o Brasil conquistou, contrariando as recomendações do PSDB/DEM, foi pela primeira vez em muitos anos abaladas pelas declarações absolutamente infelizes de um candidato que se pretende uma alternativa viável de poder.

Alternativa ele acaba de provar que é. O problema é que não é a melhor possível; não é sequer uma alternativa desejável para um país que se respeite.

Robin Hood, de Ridley Scott

Tudo bem, Robin Hood é uma lenda, e com uma lenda pode-se tomar as liberdades que quiser.

Mas não é uma lenda qualquer. E não apenas por ter quase mil anos. Junto à do rei Arthur, é uma das lendas fundadoras da identidade inglesa. Enquanto aquela diz respeito aos nobilíssimos ideais nacionais, a lenda de Robin Hood é, de certa forma, a visão que o povo inglês tem de si mesmo: rebelde, bravo, debochado, justo. Na Wikipedia se pode achar um bom resumo da confusão que se faz em tentar definir uma origem clara para a lend, mas isso importa pouco. A existência histórica de Robin Hood chega a ser desnecessária: o que importa realmente é que nele o povo inglês pintou um retrato excelente de si mesmo, ou ao menos do que gostaria de ser.

A idéia do sujeito ousado que rouba dos ricos para dar aos pobres é a sua verdadeira razão de ser. Sua versão consolidada, a que chegou até os dias de hoje (recontada, entre outros, por Monteiro Lobato), reza que o jovem Robert Fitzhood, tendo seus direitos usurpados pelo xerife de Nottingham durante a regência do príncipe que mais tarde seria o rei João Sem Terra, junta-se a um grupo de foras da lei na floresta de Sherwood, torna-se seu líder incontestável e se dedica a caçar cervos que são propriedade do rei, roubar dos ricos que passam por ali para distribuir entre os pobres oprimidos, e desafiar e insultar seus grandes inimigos, o xerife e o bispo de Nottingham — ou seja, o Estado e a Igreja —, com bom humor, ousadia e inconsequência. Se apaixona por uma jovem dama chamada Marian, e quando o rei Ricardo Coração de Leão volta das cruzadas, o perdoa. Mais tarde irá morrer nas mãos de uma freira, filha do próprio xerife, mas isso é praticamente outra história.

Essa é uma lenda que demorou mais de 500 anos para ser criada. “Robin Hood”, o novo filme de Ridley Scott com Russell Crowe, Cate Blanchett e John Hurt, joga tudo isso no lixo, e o resultado é uma mixórdia medíocre e confusa. Em duas horas, Ridley Scott consegue destruir uma lenda secular por pura e simples incompetência.

Do ponto de vista cinematográfico não há muito que se falar de “Robin Hood”. Não há nada nele que o distinga da super-produção média de Hollywood. É mais do mesmo, filme igual a tantos outros pseudo-épicos que vieram às telas nos últimos anos. Alguns críticos o compararam a “Gladiador”, do mesmo diretor e com o mesmo ator principal; mas as referências mais sólidas do filme estão estão em filmes mais recentes e que abordam a mesma Idade Média, como “Cruzada”, também de Scott, e “Rei Arthur”. Esteticamente, são praticamente o mesmo filme. É quase como se fossem feitos pela mesma equipe: diretor, roteirista, diretor de fotografia e diretor de arte.

A confusão histórica criada pelo enredo desafia qualquer tentativa de compreensão, a começar pela representação simplista, esquemática e falsa das relações entre França e Inglaterra. Que ninguém tente entender a história da Velha Albion naqueles anos dos Plantageneta através deste “Robin Hood”, porque tudo o que se vê ali é, virtualmente, imaginação do roteirista. Essa barafunda tem reflexos também na construção dramática do filme. Uma das cenas mais comentadas, a tentativa de invasão francesa, é alegadamente uma referência à invasão da Normandia como retratada em “O Resgate do Soldado Ryan”, de Spielberg. Mas mas ao ver aquelas barcaças movidas a remo, e sem o brilho de edição e sonoplastia que fizeram da cena dirigida por Spielberg uma das mais impactantes da história do cinema, a imagem que vem à lembrança é a dos Flintstones e suas paródias da tecnologia moderna. (E um detalhe bobo: qual almirante tentaria a invasão de um país por uma praia cercada de falésias e com uma única saída, como a do filme? É praticamente suicídio, mas em nome do visual grandioso Ridley Scott é capaz de qualquer coisa.)

A atuação de Russel Crowe é catastrófica. Se a versão de Michael Curtiz, de 1938, trazia um Errol Flynn elegante, irônico e alegre, Crowe faz um Robin Hood tão chato quanto Kevin Costner quase vinte anos atrás; mas enquanto Costner tinha também uma cara inamovível de banana, Crowe agrega ao seu uma ferocidade trazida diretamente dos seus tempos como gladiador no Coliseu romano. Se a lenda fosse respeitada, em vez de encarnar o protagonista Crowe poderia fazer Guy de Gisborne, um de seus antagonistas. Seria mais adequado. Porque Robin Hood é, acima de tudo, um boa-vida. E seu grupo, “vestido no verde pano de Lincoln”, era conhecido como “Robin Hood and his Merry Men”.

Mas o trabalho canastríssimo de Crowe não é o principal problema de “Robin Hood”. O que assusta, mesmo, é a capacidade impressionante de Ridley Scott para destruir a essência de uma lenda fantástica.

Agora Robin Hood é Robin Longstride, arqueiro de Ricardo Coração de Leão que deserta depois de castigado. A demagogia populista contemporânea tira do homem que um dia foi Robert de Locksley a sua nobreza hereditária — o que em tese o aproxima mais de suas eventuais raízes reais: historicamente, o mais provável é que a sua origem seja algum Robert que não passaria de um yeoman. Em algum momento deu-se a ele um título de nobreza que lhe teria sido usurpado; e disso nunca se conseguiu passar.

Mas a tradição de nobilitação de Robin Hood é antiga demais para que se consiga sair dela. E mais uma vez tenta-se dar uma origem nobre, de alguma forma, ao personagem. Ridley Scott vai mais longe do que alguém já sonhou, e agora, além de guerreiro experimentado no Oriente com um certo de tipo de ligação real, Robin Hood é filho do homem que, nem mais nem menos, escreveu a Carta Magna de João Sem Terra, o documento precursor da democracia moderna.

Se era para esculhambar dessa forma, poderiam ter dito que Robin Hood era Artur da Bretanha, o sobrinho em que o Rei João deu um sumiço jamais explicado. Seria mais decente, mais nobre e historicamente mais acurado.

Como se não bastasse, a própria razão de ser de Robin Hood — o homem que tomava a justiça em suas mãos, roubava dos ricos e dava aos pobres — é virtualmente eliminada. De acordo com Scott, Robin Hood é um sujeito que ajuda os barões em sua busca de consolidação do feudalismo, em vez de roubá-los. O único roubo de Robin Longstride (sem contar o saque de alguns mortos, algo perdoável porque o Inferno não cobra entrada) é para beneficiar a sua amada da pequena nobreza rural.

Scott conseguiu criar um Robin Hood que trabalha dignamente para a os ricos, e não é fácil imaginar um destino mais indigno para o pobre sujeito.