Os mártires

A idéia do martírio do cristãos em Roma é bisonha.

Os cristãos (com exceção daquele breve período sob Nero) só foram perseguidos de verdade no final do império de Décio. A perseguição durou relativamente pouco tempo, com bispos mortos e exilados e a proibição de eleição de um novo bispo por 16 meses.

Depois disso, só no finalzinho do período de Deocleciano — e dessa vez o cacete comeu durante 10 anos. Ainda assim, é pouco tempo. E os números são menos imponentes do que os cristãos gostariam: 9 bispos foram mortos, e cerca de 2000 cristãos foram encontrar o Senhor mais cedo. Se os leões do Coliseu fossem depender de cristãos para sobreviver, morreriam de fome.

Os cristãos, no entanto, tinham um ladinho meio masoquista. Gibbon: “O gosto dos primeiros cristãos pelo martírio era tão grande que eles por vezes supriam pela sua própria confissão espontânea a falta de um acusador, perturbando rudemente a celebração pública do culto pagão; pediam ao magistrado que pronunciasse e aplicasse a sentença da lei e então pulavam prazerosamente dentro do fogo aceso para consumi-los — até os bispos condenarem essa prática.” E fizeram o procônsul da Ásia se lamentar: “Homens desditosos!, que estais tão fartos de vossas vidas, será tão difícil assim achar cordas e precipícios?”

Que o Papa me perdôe, mas tenho a impressão de que toda aquela lenga-lenga de sofrimento é só justificativa barata para as perseguições aos judeus e muçulmanos e hereges e viadinhos e bruxas e índios e japoneses e budistas e etc. e etc…

Satyricon

Quando eu eu era pequeno e comecei a ler sobre a decadência de Roma numa velha enciclopédia Delta Larousse de História, aquilo me deixava profundamente triste. Era melancólico ver o maior império que o mundo já tinha visto desmoronar daquela forma. Era triste ver Cômodo como sucessor de Otávio.

Mas pensando bem, deve ter sido justamente aquele período de decadência e corrupção em que foi melhor viver em Roma. Uma sociedade rica e sofisticada a ponto de se permitir todo e qualquer desregramento, todo e qualquer supérfluo. Para aqueles privilegiados que podiam viver Roma de verdade, aquele pode até ter sido o pior dos tempos. Mas foi, com certeza, o melhor dos tempos.

Nero e Roma em chamas

Eis um personagem que me fascina: Nero. Enquanto outros imperadores romanos são interessantes apenas pelo nível de ridículo e degradação a que conseguiram chegar, como o travesti Heliogábalo, ou pela loucura do poder, como Calígula ou Caracala, Nero é uma das personalidades mais complexas de que ouvi falar, e provavelmente uma das mais injustiçadas.

O primeiro motivo pelo qual gosto daquele gordinho é Agripina. O pobre do Nero tentou matar sua mãe duas vezes: primeiro fez com que o navio em que ela estava afundasse; a desgraçada nadou até terra firme. Então Nero mandou Herculéio e Obarito darem um jeito na velha: uma paulada e uma estocada deram finalmente conta do serviço.

Um sujeito capaz de matar a própria mãe (embora quase em legítima defesa) tem que ser, se não admirado, pelo menos respeitado.

O segundo é o fato de que nenhum outro imperador foi tão caluniado quanto ele. Até do incêndio de Roma o culparam. Nero foi tão pichado por uma razão simples: grande estadista, fez um governo demagógico e populista, e ao tentar agradar excessivamente ao povo, caiu em desgraça junto à elite de Roma.

Mas a verdadeira razão pela qual ele passou à história do jeito que passou foi o incêndio de Roma, e a culpa que teria colocado nas costas dos cristãos. E foram eles, os cristãos, que deram a Nero a fama monstruosa que perdura até hoje.

A história cristã — ou seja, a história dos vencedores — conta que os cristãos foram perseguidos por Nero, e esse mito ficou. Não há nada mais deturpado do que essa versão. Roma era o paraíso da tolerância religiosa; alguém já viu a sede de um império ser sectária? Historicamente, quem tem a mania de perseguir os outros são os cristãos, com sua fixação em fazer proselitismo o tempo todo e exigir que mesmo aqueles que não querem a Salvação vejam a Luz. Mania chata, essa. Uma olhada no que sobrou dos autos após o incêndio mostra que, se alguns cristãos foram considerados culpados por Nero, acertada ou erradamente, a perseguição não se estendeu ao grupo como um todo (em 64 São Paulo estava na cidade e sequer foi investigado, por exemplo). Além disso, o êxtase público que alguns fanáticos demonstraram em ver a nova Sodoma em chamas era bastante suspeito.

Os cristãos, em sua luta para chegar à proximidade do poder romano, assumiram muitas de suas opiniões; e a opinião romana sobre Nero, com certeza, era das piores. O resultado foi um rei que, embora longe de ser decente, não chegava a ser o Anticristo como alguns julgaram, e que passou à história como o bandido que não era.

Mas pensando bem, poucas imagens são tão fantásticas e belas como aquela de Nero tocando harpa iluminado pelas chamas que lambem a sua cidade. E daí que seja mentirosa? Tem toda a beleza da loucura, da devoção à arte, daquela estilização extrema a que o ser humano pode chegar em sua apreciação estética do mundo.

Talvez, lá fundo, a história tenha feito justiça a Nero. Ars gratia artis.

Daniel Boone

Durante a segunda metade da década de 70, eu tinha um seriado preferido: “Daniel Boone”.

A última vez que vi um episódio de “Daniel Boone” foi em 81. Mas nunca esqueci os nomes dos personagens, e nem mesmo dos atores (com a vergonhosa exceção do ator que fazia Mingo, um cantor relativamente famoso em sua época chamado Ed Ames; só pode ser racismo). Lembrava até da música: “Daniel Boone was a man, yes a big man, with an eye like an eagle and as tall as a mighty oak tree…

O Daniel Boone do seriado, claro, tinha pouco a ver com o original, um sujeito cuja vida foi interessantíssima, tanto no papel determinante na expansão americana quanto nos processos por desonestidade a que teve que responder. Eu tampouco sabia que a razão do seriado tinha sido a febre nacional que Davy Crockett havia causado nos EUA, na década anterior, por causa de um filme em que o próprio Walt Disney, produtor, tinha escolhido Fess Parker. (O verdadeiro Davy Crockett, herói nacional, foi morto no Álamo, enquanto os americanos tentavam roubar o Texas dos mexicanos.)

Mas naquela época isso não importava absolutamente nada. O que importava é que aquele seriado era o melhor da TV, para mim. Mesmo correndo o risco de ser piegas ou bobo, até hoje considero os valores ensinados pelo seriado como extremamente válidos. E ainda que não fossem, tudo o que eu queria ser era um novo Daniel Boone, usar um daqueles chapéus de pele de racoon e ter aquela ruiva belíssima, Patricia Blair, como mulher.

Aquele era um tempo diferente, sem dúvida. E hoje, quando vejo o o público tendo que se limitar a crônicas da histeria trintona urbana como Friends ou aos Bob Esponjas da vida, acho que a minha infância foi abençoada.

"Força que cresce, aqui é UJS"

Uma surpresa agradável lendo os blogs que deixei de ler nos últimos dias: o Plataformista é militante da UJS.

A União da Juventude Socialista, para quem não conhece, é o braço do PCdoB para a juventude (embora todos neguem e afirmem a pluralidade da entidade). Fui militante da UJS durante alguns anos, até que aquilo me cansou e resolvi que estava na hora de sair para ganhar dinheiro.

Para mim, a UJS evoca algumas das melhores e algumas das piores lembranças da adolescência. Lembra uma época de fé cega em dogmas questionáveis, mulheres feias mas disponíveis, fome em congressos e muita, muita diversão, embora incompreensível para quem não faça parte dela.

Conversando com uma amiga, Indira, lembramos os tempos em que fizemos o que ela considera a melhor coordenação estadual da UJS em Sergipe, em todos os tempos. Não acho que tenhamos sido tão bons, apenas soubemos aproveitar bem as circunstâncias: campanha pelo voto aos 16 e primeira campanha de Lula.

Me contaram que relançaram novamente a UJS há alguns anos. Fazem isso regularmente, e quando a coisa começa a fazer água usam os mesmos argumentos e a relançam mais uma vez. Essas coisas são como bicicleta: se parar de pedalar, cai.

Mamonas Assassinas

Estava ouvindo os Mamonas Assassinas hoje. Eu realmente gostava daquela banda. “Pelados em Santos” foi uma das músicas mais engraçadas que ouvi nos últimos anos. Qualquer pessoa que saiba o que é povo se reconhece naquela música, ou conhece alguém que é assim. Ou “Chopis Centis”: “A felicidade é um crediário nas Casas Bahia” é brilhante.

Os Mamonas eram engraçados e leves, escatológicos às vezes. Eram deboche puro, e não tentavam se levar a sério, como por exemplo o cearense Falcão, que faz questão de deixar claro que está fazendo uma caricatura do brega e que é um sujeito inteligente e preparado.

Eu não costumo sentir a morte de gente famosa, e sempre há algo engraçado na cobertura da mídia. A de Senna me garantiu risadas para uma semana — não por ele (as piadinhas de humor negro só apareceram algum tempo depois), mas pelo bando de desocupados que lotou as ruas durante seu funeral, como se fossem as suas mães naquele caixão. Mas o picadinho de mamona me deixou triste. E foi quando eu percebi que Tom Jobim, afinal, estava errado quando disse que brasileiro não gosta de quem faz sucesso.

Gosta, sim. E gosta muito. A comoção causada pela morte dos Mamonas foi porque eles eram jovens, faziam muito sucesso e tinham um futuro pela frente. Todo mundo gostava deles, mesmo que não gostassem de sua música. E gostava porque eles mostravam que era possível fazer sucesso traduzindo um pedaço do espírito do brasileiro, ainda que debochando justamente desse povo. Pelo menos aparentemente, eles eram o vizinho do lado que tinha se dado bem.

Do que o povo brasileiro não gosta é de gente metida que parece se achar melhor do que ele. E disso Tom não sabia.

Iara Iavelberg

Hoje ela deveria ser exumada, para que pudessem comprovar a causa de sua morte.

Segundo a versão oficial, ao se ver cercada em um apartamento em Salvador, Iara (namorada de Lamarca, e na época grávida) teria se suicidado. Ninguém jamais pôde comprovar essa versão, porque ninguém foi autorizado a abrir seu caixão.

Entretanto, há muito tempo conheço outra versão, passada por alguém que a teria ouvido de um dos participantes do cerco.

O banheiro onde ela se trancou foi metralhado pela repressão, a ponto de não sobrar quase nada da porta. Seu corpo, obviamente, não ficou em bom estado. Mas por um desses milagres da vida, seu rosto, belíssimo, continuava intocado.

Agora, 30 anos depois de sua morte, vai-se finalmente saber a verdade. E vamos ver como andam minhas fontes.

O sub-tenente Towersey

Eu sinto um certo vazio quando vejo alguém falando que tal ou qual livro mudou sua vida. Nenhum livro mudou a minha; alguns até que chegaram perto, mas li todos eles — como Demian, The Catcher in the Rye — tarde demais, sempre. Pelo menos gosto de imaginar que foi por isso.

Mas alguns livros merecem um carinho especial. E um deles é “Como Era Verde Meu Vale”.

Ano passado comprei num sebo uma edição inglesa de How Green Was My Valley, um livro que li quando era pré-adolescente e que adorei. É só uma edição comum, tipo Círculo do Livro, que comprei apenas para poder ler no original. Sempre fui apaixonado pela linguagem majestosa e bíblica do livro.

No verso da capa há algumas informações escritas à mão, com as velhas e confiáveis canetas-tinteiro inglesas, pelo seu primeiro dono:

Sub-lieutenant Y.R. Towersey, R.N.V.R.
HMS Excellent
Portsmouth
May, 1941

Fiquei imaginando quem era o sujeito, a história que esse livro conta com apenas uns rabiscos em sua capa. Dias depois descobri que o Excellent não era um navio, ao contrário do que o nome faz indicar, mas uma ilha de treinamento naval construída por presos ao longo de 28 anos, no final do século XIX.

Em maio de 1941 o sub-tenente Towersey estava se preparando para ir à guerra. Tão estranho, e tão belo. Quem era ele?

O que esse livro pode ter representado para Towersey, preso numa academia naval, se preparando para lutar pela própria vida e para tirar a de outros, um livro que fala sobre valores familiares e força quando ele se prepara para enfrentar a morte? Não sei. Nunca vou saber.

Espero que o sub-tenente Towersey tenha sobrevivido, uma esperança que era certeza antes de saber que o Excellent não era propriamente um navio. Agora não sei mais.

Não tenho a mínima idéia do que aconteceu com Towersey. Decidi não tentar encontrar nenhuma informação sobre ele. Não quero sequer saber como esse livro veio parar em minhas mãos, 60 anos depois. Algumas coisas são mágicas quando você não sabe nada sobre elas.

Flipper

Neste fim de semana, no começo da manhã, eu estava assistindo a Flipper. É um remake do seriado original, que foi ao ar entre 1964 e 1968.

A nova série (nova nada; é de 1995, e durou só um ano, originalmente) traz uma série de diferenças. Agora a história, pelo que pude entender, se passa em um laboratório.

Eles não entenderam nada.

Esses executivos de Hollywood têm mania de transformar tudo o que reciclam, e o resultado raramente é convincente.

O que eles não compreenderam foi que deveriam, ao menos, respeitar a essência do seriado.

O Flipper original se passava num ambiente de total liberdade. Flipper não era propriedade de nenhum laboratório, era livre como um pássaro. Ele estava com aqueles meninos porque queria.

Liberdade, aliás, era a palavra chave. Eles moravam num paraíso praticamente selvagem, uma visão de praia que até hoje está no meu subconsciente, uma das Keys quaisquer da Flórida. Além disso, aquele era um universo totalmente masculino: o pai era um homem compreensivo e forte, um modelo perfeito de comportamento e figura de autoridade incontestável; e não havia uma mãe por perto, alguém para mandar você deixar de brincar com aquele golfinho estúpido e ir estudar. Para adolescentes isso pode parecer chato — um lugar sem mulher? — mas para crianças, é simplesmente perfeito.

Aquela vida era tudo o que uma criança poderia querer. Os elementos de identificação corretos, a liberdade quase utópica sem perder de vista a realidade, ainda que remota. Flipper seduzia porque oferecia uma visão bastante adequada ao imaginário infantil.

O novo seriado tenta, pelo visto, atingir adolescentes, e faz uma mistura indigesta que torna o seriado uma coisa esquisita para quem cresceu com Bud e Sandy.

Esses caras não entendem nada.

"Yellow Go Home"

Um dos maiores mitos da história americana é o de que os pioneiros do Mayflower (aqueles que deram ao mundo a idéia nojenta do peru no Dia de Ação de Graças, aqui no Brasil transplantada para o Natal) foram para o Novo Mundo fugindo à perseguição religiosa na Inglaterra.

Foi justamente o contrário: eles foram proibidos de perseguir os outros. Então decidiram que, dessa forma, morar na velha Albion não tinha mais graça. A Inglaterra ficou, de repente, sem sal.

Essa foto, tirada nos EUA no início da década de 1920, é a melhor prova disso. E eu pensando que o problema deles era com os crioulinhos.