A ilha do tesouro

Um comentário de um sujeito que se diz chamar Zé a este post me deixou com uma pulga atrás da orelha. O comentário:

A primeira tv na minha casa chegou em 1974. Eu não tinha muito acesso a séries de TV, por então lia. Li de tudo: Júlio Verne, Mark Twain, Joseph Conrad, Robert Louis Stevenson, Alexandre Dumas, etc… O que vocês falam quanto a reação dos filhos em relação aos seriados e filmes, eu enfrento com os meus em relação aos livros. Há algum tempo encontrei a Ilha do Tesouro e entreguei para que eles lessem, lembrando de como devorei o livro. Nem ligaram. Se não tem super-poderes, magia ou algum outro “efeito especial”, a gurizada nem toma conhecimento

Tendo a concordar com o Zé. Quando era criança, li boa parte daqueles livros para crianças que se tornaram clássicos: Stevenson, Verne, Dumas, Salgari. Mas eu fui criança nos anos 70, quando a TV, em Salvador com seus dois canais apenas, ainda não era tão onipresente quanto agora. Por causa dos livros e por causa da TV, meus referenciais estavam no oeste americano, na África ou no Mar das Caraíbas, mesmo na Europa medieval. Eu e a minha geração crescemos em um momento curioso, em que o século XIX e XVIII ainda eram extremamente presentes no imaginário das pessoas mas já se esgotavam como referenciais para os que viram depois. A produção cinematográfica que chegava à TV tinha 20, 40 anos de idade; a II Guerra Mundial ainda era tema importante no cinema e na teledramaturgia. Cresci vendo seriados como Zorro, lendo livros de piratas ou assistindo a Tarzan. Provavelmente, a minha foi a última geração que não se incomodava quando um filme era em preto e branco.

Essa análise saudosista, no entanto, não é totalmente correta. Porque nos anos 70 havia também uma infinidade de seriados, filmes, revistas que dialogavam com o futuro em vez do passado: Space Ghost, “Os Invasores”, “Perdidos no Espaço”, “Terra de Gigantes” — a lista é grande demais para continuar. A conquista do espaço era algo recente para nós. Ainda estávamos em plena Guerra Fria e o espaço era um dos elementos da propaganda americana, a única a que tínhamos acesso em um país sob ditadura. Esses elementos que agora parecem onipresentes já estavam lá (e gente como o ex-blogueiro Hermenauta certamente era mais afetada por eles do que eu, por exemplo).

O verdadeiro problema no argumento do Zé e de todos nós que o repetimos é que ele esquece um fator básico: o de que os tempos mudam.

Não é difícil imaginar uma criança londrina dos anos 1910 lendo uma história de Kipling e imaginando tudo aquilo como algo inatingível, matéria pura de sonho — em St. Albans devia ser difícil encontrar um Shere Khan, certamente. O mais próximo disso deviam ser os circos que eventualmente passavam por ali. É por isso que “A Ilha do Tesouro”, com seus piratas, com seus papagaios tarameleando “peças de oito!”, era algo tão distante de uma criança no século XIX quanto Júpiter de uma criança do século XXI.

Essencialmente, o que atraía crianças no livro de Stevenson era o mesmo que as atrai hoje em, digamos, Harry Potter ou em Watchmen: o novo, o distante, o diferente, o improvável. As crianças não mudaram nessas poucas décadas — para falar a verdade a humanidade não mudou em dois mil anos; o que mudou foi o universo de informações a que elas estão expostas.

O século XX encolheu o mundo de uma maneira que não teve precedentes e que provavelmente nunca mais será repetida novamente — e muita gente afirma que estamos vivendo agora o momento final de um processo de convergência global que teve início há uns dois mil anos. No final do século XIX Edgar Rice Burroughs podia contar uma fábula meio kiplingiana sobre um menino criado por macacos, e isso era novo, diferente. Era algo totalmente estranho ao ambiente em que seus leitores viviam — boa parte dos quais jamais viu um gorila em toda a sua vida. Eles podiam imaginar uma África misteriosa repleta de aventuras, um lugar onírico com perigos e prazeres inimagináveis e obviamente sem mosquitos; hoje, o mais provável é que ao pensar nela imaginem um lugar onde genocídios acontecem a três por quatro, e de onde, de vez em quando, sai um vírus mortal.

Mas para crianças e adolescentes, a essência das coisas não mudou. Os arquétipos são os mesmos: ideais de heroísmo e coragem, de romance e amizade em ambientes inalcançáveis para o comum dos mortais. A diferença é que esses ideais hoje são realizados em outros cenários, utilizando outras ferramentas. É um processo acelerado, e talvez definido, pelo fato de que o cinema e seu derivado, a TV, se transformaram no principal meio de criação de dramaturgia. Mais que isso, conseguem transformar em imagens cada vez mais verossímeis aquilo que conseguíamos apenas imaginar, e geralmente de forma imperfeita. Depois de um século em que parece que não restaram muitos desafios para vencer, nos quais ser o primeiro é cada vez mais difícil, a realidade parece ter menos apelo. Até porque a imaginação pode parecer ser mais real do que a realidade, e o cinema e o CGI são um indício disso. Se antigamente podíamos assistir a um filme de Tarzan e não ligar para as imperfeições técnicas ou para as incongruências geográficas — Em “Tarzan e a Fonte Mágica”, por exemplo, Chita bebe água de uma fonte da juventude e de chimpanzé se torna um macaquinho sul-americano, com rabo e tudo —, a exposição constante a 100 anos de produção audiovisual nos tornou mais exigentes do ponto de vista formal.

Ao longo do século passado o cinema explorou ao máximo a herança dos milhares de anos anteriores. Não é à toa que existe um filme impagável chamado “Robin Hood e os Piratas”, em que se misturam duas tradições veneráveis, mas historicamente incompatíveis, desses tempos idos. Um século de excesso de exposição à informação fez a sua parte no esgotamento desse manancial de possibilidades dramáticas.

A África Negra e os Mares do Sul se tornaram acessíveis através do cinema; mesmo quando recriados em estúdio — e eu recomendaria a qualquer um assistir aos filmes de Tarzan com Johnny Weissmüller e Lex Barker — eram algo totalmente diferente do que se tinha à sua volta. E embora qualquer psicanalista possa adiantar que uma coisa é a expectativa que você tem diante de uma nova experiência e outra, totalmente diferente, é a realidade dessa experiência, para as pessoas boquiabertas num cinema isso importa pouco ou nada. Por isso, por essa banalização de experiências não vividas, a maior parte das pessoas hoje não vêm nenhum apelo em contos que há 100 anos faziam a imaginação de crianças e adolescentes. Ficamos mais exigentes, não nos contentamos mais com o chitão de temas seculares. Nossa imaginação precisa de mais para ser estimulada; precisa cada vez mais da pirotecnia que apenas o CGI pode oferecer, precisa do impossível.

Ou melhor: o que era impossível antigamente deixou de parecer impossível. O mais engraçado em tudo isso é que embora esses referenciais tenham se esgotado no imaginário das pessoas, isso não quer dizer que ficaram mais acessíveis. As pessoas continuam distantes dos Mares do Sul de Stevenson, e a jângal kiplingiana é tão inacessível para um garoto de Cabrobó — e para praticamente todo mundo — como um planeta em Andrômeda. O que mudou foi o espaço que eles ocupam nas mentes das pessoas. É como se passássemos direto da quinta para a sétima série, sem ter aprendido o que precisávamos da sexta. Ou seja: eu posso não ter vivido uma aventura com Balu e Baguera, mas sinto que tudo isso me é familiar, até comum. Resta o que agora parece verdadeiramente impossível: a magia, as viagens no tempo, a troca de dimensões, as explosões monumentais e a destruição cotidiana do mundo.

Mas que isso não pareça uma apologia desses tempos modernos. Porque não é. Eu consigo pensar em um roteiro de filme melhor, por exemplo, que “Piratas do Caribe”.

Início do século XVIII. O filme teria como personagem Anne Cormac, irlandesa que emigra para a Carolina do Sul. Conhece um pirata americano, James Bonny, e foge com ele. Bonny vira dedo-duro de piratas para o governador de Nassau, e uma Anne desiludida passa seus dias bebendo e se divertindo nas tavernas com outros piratas. Conhece outro pirata, John Rackham, e então temos nossas cenas ardentes de amor. O marido, revoltado com os chifres, denuncia-os e o governador os prende. Anne Bonny e John Rackham fogem, roubam uma corveta, juntam uma tripulação e se lançam ao maravilhoso mundo do saque e da pilhagem. Em pouco tempo Rackham e Anne Bonny se tornam conhecidos no mundo inteiro como piratas perigosos.

Enquanto isso, outra personagem é introduzida, a principal: Mary Read. Em alguns minutos ficamos sabendo que ela é uma inglesa criada como menino pela mãe. No momento em que ela nos é apresentada mudou o nome para Mark Read, e está lutando ao lado dos ingleses na guerra contra a França. Se apaixona por um soldado e se torna Mary novamente. Ele morre pouco depois e ela volta a ser Mark. A caminho do Caribe, seu barco é atacado pelos piratas liderados por John Rackham e Anne Bonny. Mas Read se empolga e se torna pirata também. Anne Bonny se apaixona por Mark Read, sem saber que ele é ela. Dentro de um triângulo indesejável, ela acaba tendo que revelar seu segredo aos dois piratas. Para complicar as coisas e adicionar mais tempero ao nosso filme, ela se apaixona por outro marujo. Esse marujo, ainda jovem, é desafiado a um duelo por outro pirata depois de uma briga. Sabendo que o marujo vai para a morte certa, Mary Read desafia o pirata para outro duelo antes. Na hora fatídica, Mary mostra os peitos para o pirata, que se assusta e vacila: acaba morto — e o outro marujo não precisa mais duelar com ele. Com o segredo revelado diante de todos, Mary Read e Anne Bonny se tornam as mulheres mais famosas da história da pirataria.

Daria um bom filme? Provavelmente. O mais interessante é que tudo isso é verdade. Rackham, Bonny e Read são piratas famosos — não tanto quanto Henry Morgan ou Barba Negra, ou ainda o Duguay-Trouin que invadiu o Rio de Janeiro, mas ainda assim famosos. Era dessa realidade que a dramaturgia infanto-juvenil bebia — uma realidade muitas vezes mais rica que a ficção. E a riqueza de histórias que se encontram nesses livros ultrapassados — eu posso citar alguns que tiraram elementos dessa história, como “Capitão Tormenta” e “Os Três Mosqueteiros” — ainda não conseguiu ser superada pelos novos queridinhos da criançada.

Se bem que no fundo isso seja apenas uma confissão de velhice. E ninguém precisa disso, porque já estamos velhos o bastante, e o tempo passou e, o que é pior, a gente viu.

<a href=”http://ohermenauta.wordpress.com/” title=”Ele se foi, tadinho…” target=”_blank”>Hermenauta</a>

D. João VI e a desinvenção do Brasil

O menino cabeçudo está quietinho no banco da praça em frente à sua casa, roendo uma asa de galinha enquanto balança as perninhas cheias de feridas. De repente o valentão da rua se aproxima e tenta tomar as suas asinhas. O menino corre e se abriga dentro da casa da mãe. Da janela, seguro, fica dando língua para o valentão.

Se esse menino se chamasse D. João VI, o Alex Castro diria que ao correr para casa ele foi um estrategista brilhante.

Em defesa do Alex pode-se dizer que essa é uma imagem um pouco menos injusta que a demolição sistemática empreendida por alguns historiadores e que, mais recentemente, filmes como “Carlota Joaquina” solidificaram. A imagem de D. João como um verdadeiro líder não é uma idéia tão deletéria quanto a do bufão cheio de cracas na perna se empanturrando de asas de galinha, certamente. Mas também não é verdadeira.

D. João VI não era um líder, nunca foi. Se não era o incompetente absoluto pintado pelas caricaturas, era relutante, conservador e covarde. Parte até razoável da elite intelectual e política de Portugal advogava a transferência do centro do império para o Brasil, reconhecido desde havia muito como o sustentáculo de Portugal em praticamente todos os sentidos, mas D. João não era muito simpático à idéia. D. Rodrigo de Sousa Coutinho, por exemplo, enchia o saco de D. João com a defesa dessa transferência desde pelo menos 1791.

O que o Alex chama de estratégia brilhante e ousada foi, na verdade, o último recurso de um governante fraco e indeciso, metido involuntariamente em uma sinuca de bico. De um lado a França no seu quintal, já pulando a cerca; do outro a Inglaterra, com a mais poderosa Marinha de sua época incomodamente localizada entre ele e seu cofre, que costumamos chamar de Brasil. Seu cálculo foi simples e lógico: entre perder Portugal para os franceses e perder o Brasil para os ingleses, Portugal que se danasse. O Brasil sem Portugal poderia ser alguma coisa; Portugal sem o Brasil estaria condenado a ser um refém pobre de Napoleão, um peão útil apenas no seu jogo geopolítico de dominação continental. Portugal era o Piauí da Europa, pouco mais que um entreposto comercial, um atravessador dos produtos gerados no que tinha restado do seu império.

Vir para o Brasil, algo que teria sido uma estratégia brilhante e revolucionária até uns poucos anos antes se parte de um projeto maior e consequente, a mais perfeita subversão da ordem política mundial, naquela hora era apenas desespero, a última alternativa factível para uma dinastia esgotada e desmoralizada; e é bom lembrar que D. João demorou em excesso até escolher entre duas soluções que lhe eram apresentadas. O amor devotado ao Brasil é uma construção histórica posterior: seu cálculo era político, não emocional. A única coisa emocional aí deve ter sido a reação do povo português, que acordou num dia frio de novembro e viu que na calada da noite seu rei tinha catado a prataria de Queluz, embarcado seus amigos ricos e deixado o povaréu nas mãos de Junot.

Mas o maior exagero do Alex sobre esse momento histórico, na verdade, está num post anterior sobre o ano de 1815 como a “criação do Brasil”. Ali o Alex chega a dizer que, depois da instalação da família real, o Brasil provavelmente tinha mais regalias que Portugal — mas esquece de lembrar das remessas de ouro e açúcar, etc., e que fora a presença da família real na Quinta da Boa Vista o Brasil se mantinha como colônia, no esquema descentralizado construído meio século antes pelo Marquês de Pombal.

Apesar do que o Alex sugere, o alçamento do Brasil à condição de “par de Portugal” em 1815 não é propriamente a sua invenção; não passa de mais uma iniciativa de manutenção do status quo da colônia. O que ele chama de “construção de uma nação moderna” é na verdade a realização do projeto de manutenção de uma estrutura antiga e ultrapassada. Portugal não poderia transformar o Brasil em um país moderno — em um momento em que os Estados Unidos, por exemplo, já realizavam uma das mais fantásticas experiências de governo na história — porque ele mesmo era um exemplo de atraso e incompetência. 300 anos depois de protagonizar uma das maiores aventuras da humanidade, a exploração atlântica, Portugal era pouco mais que um país arcaico e decadente. A vinda de D. João reforçou essas características portuguesas no Brasil. Um trechinho de “História do Brasil com Empreendedores”, de Jorge Caldeira:

Na virada do século XIX, a economia brasileira era, possivelmente, a maior das Américas — de qualquer forma, de tamanho comparável àquela dos Estados Unidos. Na virada do século XX, tratava-se de uma economia 15 vezes menor que do país do norte.

O mito da importância do Reino Unido deveria cair quando lembramos que o tal Algarve não é mais que o sul do Portugal continental. O que D. João estava fazendo ali era angariar para si capital político diante da ascensão — tardia, por sinal — da burguesia portuguesa. Estava fazendo como o dono de uma holding em dificuldades que divide suas empresas em unidades autônomas para ter mais controle e flexibilidade diante dos cobradores. Em outras palavras, tentava garantir diante das Cortes um certo grau de liberdade e mobilidade, mais um elemento no jogo de poder que a família real portuguesa, uma das mais singulares da Europa em seu tempo, estava perdendo em ritmo avançado.

No fim das contas, a invenção do Brasil, se é que se pode utilizar um termo desse tipo para definir um processo histórico, foi sendo feita aos poucos e aos trancos, em movimentos como a Guerra dos Mascates, a Revolta dos Alfaiates ou a Inconfidência Mineira. Evaldo Cabral de Mello, por exemplo, sugere como marco fundamental da nação brasileira a Batalha dos Guararapes, quase 200 anos antes, e ele não deixa de ter um ponto interessante aí — o negro Henrique Dias, o índio Felipe Camarão e o branco Vidal de Negreiros juntos combatendo, em nome de uma mesma identidade e já uma noção de pátria, o invasor holandês. O mesmo Evaldo Cabral discordaria completamente quando visse o Alex falar do “crescimento exponencial do Brasil” durante o período 1808-1821, e lembraria que esse crescimento se deu apenas no Rio de Janeiro; ele apontaria que faltava a D. João um projeto nacional.

Claro que, com boa vontade, pode-se até forçar a barra e dizer que D. João inventou mesmo um Brasil — mas ainda assim seria um Brasil muito pior do que as aspirações do povo que àquela altura se considerava, definitivamente, brasileiro. D. João apenas atropelou um longo processo de formação nacional. Mais que isso, condenou o país ao atraso: D. Pedro I representava o conservadorismo diante das cortes portuguesas.

Foi esse modelo que a vinda de D. João, se não implantou, consolidou no Brasil. A chegada da família real tem consequências nefastas e extremamente duradouras, e não é à toa que o Rio de Janeiro é, até hoje, uma cidade extremamente corrupta, em que as idéias do jeitinho, da proximidade do poder subvertem e minam como em talvez nenhuma outra cidade brasileira as noções de democracia e de republicanismo. E isso não é modernidade.

Uma pequena diferença entre Londres e Paris

Em Londres, praticamente todas as livrarias têm uma seção de história militar, têm até mesmo um número incomum de livrarias especializadas no assunto. Nelas a II Guerra Mundial ocupa lugar de destaque. A Inglaterra tem alguns dos maiores historiadores das grandes guerras do século XX, como Martin Gilbert — sem falar em Churchill, o sujeito que pelo menos no front ocidental definiu o que foi a II Guerra.

Uma parte importante dessa fixação vem, claro, da longa história de um império em que o sol nunca se punha, como eles gostavam de dizer. Os domínios ingleses abrangiam os cinco continentes, e eles podem se orgulhar até mesmo de terem sido pioneiros na exploração da Antártida e do Ártico. Além disso, durante séculos tiveram a mais importante marinha do mundo. É fascinante a história de como começaram como piratas e acabaram usurpando de Portugal, da Espanha e dos Países Baixos o posto de donos do mundo.

Em Paris essas seções não são tão facilmente encontradas nas livrarias. Em vez disso, pode-se passar o olho no passatempo preferido dos franceses, livros de filosofia em capas sóbrias e espartanas (estética aliás importada por Portugal), muitas vezes disfarçando um conteúdo medíocre e redundante, como é a maior parte da tal filosofia contemporânea. Ninguém pode acusar os franceses de desprezo à história — na Passage des Panoramas no Boulevard Montmartre, por exemplo, pode-se encontrar facilmente à venda moedas antigas que datam dos tempos do Império Romano, e alguns dos maiores especialistas em história européia, como Georges Duby e Paul Veyne, vêm de lá —, mas é como se eles achassem que não têm exatamente muitos motivos para celebrar aquela guerra. O que, num país de gente orgulhosa de sua história como os franceses, merece uma explicação.

Acho que ela pode ser encontrada nas ruas de Paris. Em boa parte delas encontram-se placas indicando que ali tombou um combatente da liberdade — em esquinas, pontes, marquises, sempre se pode achar um lembrete de que naquele local, durante a II Guerra, nazistas e colaboracionistas mataram um membro da Resistência Francesa. Muitas vezes a vítima sequer tem um nome, não passa de uma lembrança, quase um diz-que-diz. Mas a sua memória tem que ser lembrada, heróis anônimos também criam uma lenda, e por isso a Resistência Francesa alcançou, no imaginário mundial, uma importância muito maior do que a que realmente teve.

Por mais que tentem assumir um certo flair de vitoriosos de uma guerra perdida — como fez Clemenceau em 1918, por exemplo —, a França perdeu a II Guerra Mundial, e perdeu de maneira humilhante. Se com excesso de boa vontade a I Guerra pode ser vista como uma vitória, porque bem ou mal a França esteve do lado dos vencedores, se comportou com a bravura necessária e ainda levou seu quinhão do butim, a Alsácia-Lorena, a II foi a guerra em que se recusou a lutar, em que se rendeu quase instantaneamente e aceitou a ocupação e a palhaçada que foi o governo do Marechal Pétain em Vichy. Nessa guerra, o único ato francês realmente louvável foi declarar Paris cidade aberta e evitar a sua destruição.

Uns anos atrás, uma moça francesa veio a este blog defender seu país. Como poderia uma França despreparada, em crise desde a queda da III República, ousar enfrentar a Alemanha?, ela perguntou. A moça não sabia a diferença entre coragem e covardia, e certamente olhava para o exemplo da Polônia — que mesmo sabendo que não tinha a mínima chance lutou até onde pôde contra a invasão alemã, e ninguém poderá jamais desprezar a imagem da cavalaria polonesa investindo contra os Panzers alemães, quixotesca e bela — com desprezo pela sua burrice: como pôde um paisinho daquele resistir a uma potência como a Alemanha nazista?

O curioso é que Inglaterra tampouco poderia se orgulhar de ter vencido a guerra, objetivamente. É provável que o maior erro de Hitler tenha sido não tentar invadir a Grã Bretanha quando teve chance, preferindo invadir a União Soviética e entrando de cabeça no erro estratégico que é lutar uma guerra em dois fronts. Em 1941, a Inglaterra já estava de joelhos diante da máquina de guerra nazista. Não fosse o erro de Hitler, além do apoio posterior de Stálin e Roosevelt , o Reino Unido teria caído.

Mas a história da resistência inglesa à Alemanha é memorável. Londres e cidades portuárias como Liverpool sofreram bombardeios só superados pela destruição causada pela vingança — não há outra palavra que possa definir o bombardeio de Dresden, por exemplo — aliada na Alemanha. Ainda hoje se descobrem bombas que não explodiram. Se não podem dizer que ganharam a guerra por seus próprios méritos, como podem os soviéticos, os ingleses podem se orgulhar da sua postura e do seu orgulho. Durante a Blitz, resistiram com uma dignidade que ainda hoje impressiona, mesmo quando amontoados em estações de metrô ou em abrigos anti-aéreos. Filmes como o autobiográfico “Esperança e Glória”, de John Boorman, e livros como o recente Keepin’ Mum, de Brian Thompson, contam o que foi viver em um país sob ataques constantes.

Os franceses não passaram por essa experiência. Daí a insistência em glorificar a Resistência e os maquis que morreram combatendo Hitler. São o último fiapo de dignidade naquela guerra a que a França pode se agarrar, e por isso espalham placas por toda a cidade como uma tentativa de lembrar a todos que afinal a II Guerra Mundial não foi, para a França, apenas vergonha e humilhação. A Resistência Francesa, ainda que pouco eficiente, foi uma mostra do que gente com coragem pode fazer para defender seus ideais: são a diferença entre o espírito de Napoleão e a tibieza de Pétain. Acima de tudo, são uma lembrança mais digna do que o que se seguiu depois da libertação.

A postura francesa no pós-guerra é uma das coisas mais impressionantes daquela época. Se o país não foi bravo o bastante para resistir à Alemanha, coragem não lhe faltou para perseguir as mulheres que “colaboraram” com a Alemanha — ou seja, que tentaram sobreviver dormindo com o inimigo, como mais tarde milhares de alemãs ganhariam o chucrute de cada dia de pracinhas americanos. Deve ser algo na psique francesa: os alemães podiam estuprar o país, mas não podiam seduzir suas mulheres.

Um cronista mau-humorado poderia dizer que os franceses não foram homens o suficiente para enfrentar os alemães, mas o foram para raspar cabeças de mulheres cujo crime de guerra foi tentar sobreviver da única maneira que lhes era possível. Obviamente as coisas não são assim tão simples, e é razoavelmente fácil entender a revolta francesa contra colaboracionistas. Um observador mais imparcial poderia inclusive dizer que não há, necessariamente, uma relação entre os dois fatos, embora isso fosse um tanto difícil de provar.

Independente disso, o que se viu nos momentos que se seguiram à libertação francesa foi, no fundo, o extravasamento da frustração que todo francês deve ter sentido ao ver a Wermacht marchar na Champs Elysées, mas feito da maneira mais fácil. Talvez seja compreensível; mas é difícil perdoar sua indignidade. Porque é impossível olhar para as imagens de mulheres humilhadas das maneiras mais cruéis, uma humilhação completa a partir de sua nudez e da sua “emasculação” simbólica ao lhes cortarem os cabelos, e imaginar que, assim como a mancha causada pelo nazismo jamais será realmente apagada da história alemã, será difícil esquecer a vaga sensação de que a única hora em que os franceses pegaram em armas de maneira realmente efetiva na II Guerra Mundial foi para raspar as cabeças de suas mulheres.

Bangue-bangue

Revi dia desses uma foto minha aos oito anos. Nela estou vestindo calça, kichute e camisa de manga comprida. Não era minha roupa habitual — eu normalmente vestia apenas um short qualquer (na época os shorts de nylon começavam a ser a grande moda) e descia para a rua, para brincar e acumular cicatrizes em virtualmente todo o corpo, além de algumas fraturas aqui e ali. No máximo usava uma sandália — nessa época, Katina Surf.

Mas aquela indumentária específica, naquele dia, era o que eu podia chegar de mais próximo à roupa de cowboy: na cintura havia um cinturão de plástico com dois coldres e dois revólveres prateados de espoleta.

Ver esses revólveres novamente é estranho. Lembro exatamente de quando os ganhei — uma manhã de sábado de 1979. Pela primeira vez eu tinha um coldre e uma cartucheira — embora não fossem de couro, fosse de plástico. Na caixa vinha também uma estrela prateada de xerife.

Revólveres de espoleta foram uma das constantes da minha infância, assim como os bonecos Falcon e os filmes da Sessão da Tarde. Com um revólver na mão tinha-se garantida uma tarde inteira de brincadeiras. Podia-se, com um pouco, quase nada de imaginação, imaginar que postes eram saguaros, que portões de garagens eram celeiros, e que tumbleweeds rolavam pelas ruas asfaltadas como em uma cidadezinha qualquer da fronteira, onde iríamos duelar até a morte.

Os revólveres eram sempre versões do Colt Peacemaker, e havia dois tipos de espoleta. Um em que ela vinha em pequenos rolos de papel, as espoletas Ringo, e outro em que elas eram acondicionadas em aros de plástico: eram as espoletas Far-West. Eu preferia, de longe, essas últimas. As espoletas de papel davam muitos problemas. Eram mais baratas, davam mais tiros sem precisar recarregar, mas enganchavam — e se elas enganchavam um dos comanches que eu perseguia poderia me matar.

Nessas horas, todo cuidado é pouco.

Eu tive alguns revólveres daquele modelo Far-West, da Estrela, além de alguns outros. Não sei exatamente quantos revólveres de espoleta tive, nem os seus modelos, embora saiba que a maior parte eram o Far-West ou variações. Mas lembro desse que estou usando na foto, provavelmente uma variação do modelo Laramie, com dois revólveres e cartucheiras, um modelo semelhante ao que está na foto ao lado, com a diferença de que não vinha com corda e provavelmente nem com lenço, mas em compensação vinha com uma estrela de xerife e com dois revólveres. Mas eu não gostava tanto deles, porque usavam espoletas Ringo.

Lembro também dos que eu não tive; o Álamo da foto ao lado foi meu objeto de desejo ainda em 1981. Não adiantou que eu atravessasse a rua constantemente para ir namorá-lo no Burako da Fechadura, uma pequena loja de presentes quase em frente ao edifício onde eu morava. Um dia venderam o último exemplar, e eu fiquei sem ele. E nunca mais tive um revólver de espoleta. Seu tempo tinha passado, para mim, e em breve passaria para toda a sociedade.

Mas não foram apenas revólveres. Ainda lembro do sábado em que fui com meu pai comprar uma espingarda de espoleta nas antigas Lojas Brasileiras da Avenida Sete. Era uma bem parecida, se não igual, com o modelo abaixo. Com ela pude brincar de Daniel Boone — que não usava revólveres, apenas uma espingarda de caça, o rifle de Kentucky. Aquela era a também a minha Winchester, e não era difícil imaginar carroções em círculo nos defendendo de um ataque de siouxies ou cheyennes — de apaches nunca, porque se lembro bem apaches costumavam ser bonzinhos, pelo menos na maior parte dos filmes — com um sofá e algumas poltronas.

Mas brincar de cowboy e de índio é uma brincadeira que não faz mais sentido hoje. Os referenciais das gerações que se seguiram à minha não estão mais em Monument Valley. Eu e tantos outros crescemos assistindo a faroestes na TV, durante as Sessões da Tarde, e ainda assistíamos a inúmeros seriados como Zorro (o Lone Ranger, aquele com Tonto). Não posso listar o número de bons filmes que assisti ali — Jerry Lewis, Danny Kaye, Burt Lancaster, John Wayne. E à noite, horário interditado para mim, ainda havia o “Bangue-Bangue à Italiana”. Mas hoje faroestes não fazem mais sentido. As Sessões da Tarde são ocupadas por filmes com chimpanzés motociclistas e bizarrices como Thunderpants.

Role playing game” também tem um sentido totalmente diferente, hoje. É a vitória dos meninos bem cuidados que ficavam em casa tomando nescau com um termômetro debaixo do braço; o futuro pertencia ao modelo que eles preparavam em seus pequenos ninhos, não ao meu, em que me estabocava no chão de vez em quando e dava e recebia socos, pontapés e ofensas fraternas de amigos que viravam inimigos e depois viravam amigos novamente. Não me cabe dizer se o que foi feito do mundo é melhor ou pior, até porque é um contrasenso dizer que uma brincadeira é melhor ou pior. Mas não é a minha maneira, nem a da minha geração.

Pelo menos sei que não estou sozinho na impressão de que os meus tempos eram mais interessantes: é o caso dos autores do Brinquedos Faroeste, de onde foram tiradas as fotos que ilustram este post.

Mesmo reconhecendo tudo isso, eu ainda sinto falta de revólveres de espoleta. Eles saíram de moda e foram banidos há mais de 20 anos. Ao que parece, isso se deve em parte ao fato de que bandidos passaram a usá-los em assaltos (e embora eu confesse que preferiria ser assaltado com um revólver de espoleta em vez de um de verdade, não vou discutir isso). Mas em parte, também, sua queda se deve também à histeria politicamente correta e eminentemente imbecil que acha esses brinquedos excessivamente violentos. Para essas pessoas, brincar com revólveres de brinquedo criava adultos violentos.

Essa justificativa deve ser válida, porque essas pessoas sempre sabem do que estão falando. Tantos anos depois, essa geração que hoje entra em sua terceira década de vida, como se pode ver, está menos violenta. Há menos homicídios. As cidades estão mais seguras. A violência urbana nunca foi tão baixa, e isso se deve única e exclusivamente ao fim dos revólveres de espoleta.

Oitenta anos de esquecimento

A data passou em branco, como sempre. No último sábado, um dos acontecimentos mais trágicos da história da América Latina completou 80 anos. Ninguém lembrou.

Depois da missa dominical do dia 6 de dezembro de 1928, os trabalhadores da United Fruit em Ciénaga, Colômbia, aglomeraram-se na praça principal da cidade, acompanhados de suas famílias — velhos, mulheres, crianças. Estavam em greve.

A United Fruit era uma das principais multinacionais americanas, e tinha construído seu império produzindo e exportando bananas a partir dos países da América Central. Nos 40 anos anteriores, ela já tinha transformado quase toda a região em um amontoado de repúblicas de bananas, todas sob o seu controle. O termo tinha sido criado no início do século por O. Henry no romance Cabbages and Kings, abertamente inspirado no modus operandi da United Fruit, e se referia a todos aqueles países em que a empresa tinha influência tão grande que definia seus governos em função de seus próprios interesses. Com a conivência do governo dos Estados Unidos, a United Fruit já tinha patrocinado vários golpes de Estado em países como a Nicarágua, tinha invadido Honduras, e quase conseguiu fazer com que Honduras e Guatemala entrassem em guerra por uma questão de terras em suas fronteiras — pertencentes à empresa, claro.

Todo esse poder era possível porque a United Fruit se apropriava de boa parte da economia dos países onde estava presente — sem contar, claro, um alto nível de corrupção e chantagem. Se aliava a ditaduras, controlava porções imensas de terras. Com o discurso do desenvolvimento nacional, construía ferrovias com dinheiro público mas sob sua propriedade, e controlava boa parte da infra-estrutura desses países desgraçados.

No dez anos anteriores, as greves dos empregados da United Fruit tinham mudado de caráter. Das reivindicações puramente salariais do início, tinham evoluído para abranger também propostas políticas, incluindo a nacionalização das suas ferrovias. Os americanos viam nisso uma grave influência bolchevique, porque apenas comunistas ferrenhos poderiam ser contra um modelo que só trazia benefícios para paisinhos como aqueles.

Entre os benefícios trazidos pela United Fruit estavam os empregos de milhares de trabalhadores centro-americanos. Recebendo salários de fome e vivendo em condições sub-humanas, os trabalhadores não recebiam seu pagamento em dinheiro: em vez disso, a empresa os pagava com vales, que só podiam ser trocados nas suas próprias lojas. Esse sistema, no Brasil, é conhecido por “barracão”; no resto do mundo é chamado simplesmente de semi-escravidão.

É fácil imaginar o discurso da elite colombiana naqueles bons tempos. Aquilo era desenvolvimento, era livre-iniciativa, a United Fruit trazia a modernidade. Mesmo em países fora da esfera de controle da United Fruit, como o Brasil — que nunca pôde ser considerado uma “república de bananas” –, esse era o discurso prevalente; em grande medida, é até hoje. Infelizmente ele não era compartilhado pelos empregados da United Fruit, que trabalhavam de sol a sol, com o perdão do trocadilho, a preço de banana. Nem seria compartilhado por quem via na ação nociva de multinacionais como a United Fruit a destruição institucional de países inteiros, seu empobrecimento, o fim de sua soberania e sua desmoralização mais que absoluta.

Naquela greve em Ciénaga as reivindicações dos trabalhadores deviam ser mesmo coisa de comunista: um dia de folga por semana, tratamento médico médico gratuito e, finalmente, banheiros de verdade, que só existiam nas casas dos supervisores — quase todos americanos. Queiram também jornadas um pouco menores de trabalho, absurdas oito horas. E queriam o supremo ultraje de receber seus salários em dinheiro de verdade.

O problema da United Fruit era, obviamente, também problema do governo colombiano. Bogotá enviou tropas para Ciénaga.

Naquela noite de 6 de dezembro, com os trabalhadores e suas famílias na praça principal de Ciénaga, os soldados se posicionaram nos telhados dos edifícios dos cantos da praça, com metralhadoras. Abriram fogo. A ordem expressa era de não economizar munição.

O primeiro relato sobre o número de vítimas dizia que cerca de 50 trabalhadores haviam sido assassinados. O segundo aumentava esse número para algo em torno de 600. O relatório enviado pela embaixada americana na Colômbia, em janeiro de 1929, estimava em mais de mil o número de mortos. A fonte desses dados era a própria United Fruit. É possível imaginar que o número de vítimas tenha sido muito maior.

Governo, imprensa e United Fruit puseram uma pedra nesse assunto, e ele raramente voltou à tona novamente. O povo colombiano especulava sobre o destino dos corpos. Uns diziam que a United Fruit os tinha enterrado em valas comuns na floresta; outros, que ela tinha colocado os cadáveres em navios da companhia e os jogado ao mar. Criou-se uma lenda em torno do assunto, ainda mais persistente quanto mais proibido era.

No ano seguinte, numa cidade vizinha, Aracataca, nasceria um homem que, mais tarde, contaria essa história em seu principal livro. Seu avô, parlamentar, tinha sido um dos poucos a denunciar os horrores de Ciénaga. O menino cresceu ouvindo histórias sobre o massacre. Mudaria o nome da cidade para Macondo, e seu livro se chamaria “Cem Anos de Solidão”.

Mas ninguém mais lembra disso. Não foram necessários cem anos; bastaram oitenta para o seu esquecimento.

Barroquinha

Uma barroca é uma “passagem funda entre penedos ou barrancos”. O nome que foi dado à Barroquinha, que desce da Praça Castro Alves em direção à Baixa dos Sapateiros, é a única lembrança de que houve um tempo em que ela estava além dos limites urbanos da cidade da Bahia; mas não demorou a ser ocupada, enquanto as classes mais altas se expandiam em direção ao sul, provavelmente atraídas pelo cheiro agradável da maresia da praia aos pés do Forte de Santa Maria e finalmente se fixando no alto das escarpas da Vila Velha, que depois se transformaria em Vitória.

Foi ali perto, no Largo da Barroquinha, onde na metade dos anos 70 vi pela última vez um tipo que desapareceu com o tempo: um sujeito que carregava umas maquininhas semelhantes a máquinas fotográficas, amarradas a um pau por pequenas correntes, contendo seqüências de slides a que se podia assistir, como em um binóculo, por 50 centavos de cruzeiro. Aquele trazia cenas de “Zorro” em um tom azulado — não o Lone Ranger, mas o de capa e espada, o do Sargento Garcia. A televisão e a sofisticação do mundo acabariam logo com esses pequenos mascates, talvez até mesmo nos grotões mais escondidos do interior. Mas em 1977, o que para mim era apenas uma experiência curiosa, para os meninos que moravam ou passavam entre a Baixa dos Sapateiros e a Avenida Sete ainda devia ser algo novo e fascinante, pelo menos a ponto de o mascate tentar ganhar seu pão ali.

Descendo a Ladeira da Barroquinha e dobrando à esquerda na primeira esquina, bem depois da igreja, chega-se à Visconde de Itaparica, uma rua estreita, antiga, de pedras gastas pelo tempo parecidas com as do Pelourinho a algumas centenas de metros dali. Mas ao contrário do Pelourinho a Barroquinha nunca pareceu bonita o suficiente aos olhos do Patrimônio Histórico. Foi abandonada pelos ricos ainda no século XIX, ocupada pelo povo baiano, negros livres e escravos, e abandonada está até hoje. Na esquina oposta havia uma padaria, que mais tarde daria lugar a uma das tantas lojas de roupas baratas que hoje fazem a vida do lugar.

Nos fios elétricos que se espalham dos postes da Visconde de Itaparica gerações de meninos jogaram barbantes amarrados em pedras, e aqueles barbantes ficavam meses, até anos enrolados ali, enegrecendo com o sol e a chuva, e criavam uma imagem típica e inesquecível — ao mesmo tempo repetida em várias outras partes da cidade e do mundo, em todos os lugares onde a escravidão deu lugar à miséria.

Noblesse obligesNa casa de número 24 um brasão antigo, quase soterrado por séculos de camadas de tinta, atesta que aquele foi um dia um edifício importante. Talvez um edifício público, historiadores devem confirmar essa hipótese com mais propriedade; mas prefiro a idéia de que aquela foi a residência de um nobre qualquer, um conde, visconde ou barão que trouxe sua fidalguia antiga e sólida de Portugal — ou de alguém que queria se dar ares de importância e arranjou para si um brasão bonito, para se legitimar diante de uma sociedade que se apoiava nas costas de milhares de escravos. Sua fidalguia não durou muito, no entanto, porque seus herdeiros foram obrigados a transformar a casa nobre que ostentava um brasão em um cortiço — uma casa de cômodos, como se diz em Salvador.

Eu lembro dessa casa. Era a típica casa colonial brasileira, mais comprida do que larga, com portas altas e janelas com sacadas elegantes de onde se podia olhar abaixo o populacho em sua faina diária, sacadas de onde moças recatadas namoravam, com olhares tímidos e sorrisos castos, pretendentes encasacados que escondiam sob a pudicícia provinciana as incontroláveis safadeza e descaramento baianos. Mas isso foi eras atrás, quando ainda se vendia aluá nas ruas de Salvador. Quando eu a conheci ela abrigava apenas miséria, só isso.

Decadência é issoNo lugar de latifundiários, garçons; em vez de donzelas à espera de um marido, lavadeiras; nenhuma delas lembrando que aquela casa foi moradia de fidalgos, ou pretensos fidalgos, que deixaram a casa se deteriorar àquele ponto apesar do brasão pretensioso em sua porta.

Na soleira da porta havia um batente alto, proteção contra uma rua que alagava facilmente e que não tinha esgoto. Na entrada, um sapateiro consertava sapatos em uma banquinha, igual a milhares de outros espalhados por toda Salvador, mas principalmente no centro antigo. Salvador tinha muitos sapateiros. Herança das ruas de pé de moleque e dos tempos da escravidão, semelhante ao canto dos encanadores no Relógio de São Pedro: até os anos 1980 quem passava por ali podia encontrar vários encanadores com suas caixas de ferramentas e seus maçaricos, esperando que alguém precisasse dos seus serviços. Mas o tempo passou; primeiro sumiram os maçaricos junto com as tubulações de ferro, e depois foi a vez dos próprios encanadores.

Da porta do edifício da rua Visconde de Itaparica um grande corredor com chão de cimento queimado seguia até uma escada antiga, com corrimãos de boa madeira escura. Os degraus de madeira gasta rangiam a cada passo. Por ela se subia até o primeiro andar, outro grande corredor com vários quartos de cerca de 8 ou 12 metros quadrados onde, às vezes, viviam famílias inteiras. A escada fazia uma volta e continuava até o segundo andar.

Nem mesmo o céu continua azulNos quartos, inúmeras mãos de tinta ruim se acumularam por décadas nas paredes, formando uma espécie de pentimento desarmonioso. Janelas sem vidraças traziam grades de ferro bem trabalhadas, atestados de que houve um tempo em que as coisas eram feitas para durar uma eternidade e que eram orgulho dos artesãos mulatos que as fundiam.

Em cada quarto o mínimo necessário para se viver: cama, fogão, mesa e armário para guardar as poucas coisas, umas panelas baratas e uns copos se arranjavam onde desse, às vezes um móvel que fazia as vezes de aparador. E por todos os quartos varais, sempre muitos varais, onde era estendida a roupa lavada.

Isso era bonito 200 anos atrásApenas um banheiro, grande, servia todo o andar. Em vez de chuveiro uma bica, que caía forte sobre o piso cimentado. E aquele banheiro tinha um cheiro estranho, único: mofo, água e sabonete e perfumes baratos. Não era cheiro de sujeira, mas tampouco podia ser cheiro de limpeza: era um cheiro único, cheiro de miséria e de luta pela sobrevivência.

A casa da rua Visconde de Itaparica está fechada há alguns anos e suas portas e janelas foram lacradas com tijolos. A casa do lado já desabou há muito tempo; não deve demorar muito até que o número 24 desabe também. E talvez aí esteja a maior ironia, porque seguindo a rua, em direção à Ruy Barbosa, está o IPHAN, que assiste quietinho e bonitinho à decadência literal de uma das áreas mais bonitas da cidade da Bahia.

Hulk, quase 30 anos atrás

1979, Barra, Salvador, Bahia.

Nós — e por “nós” eu lembro de mim, de Jailton, filho de Joel, o alfaiate que ainda hoje dá expediente no edifício Monterey e é um dos meus mais antigos amigos, e de Pedrinho; mas talvez houvesse mais gente, talvez Marquinhos Moreno, que deixei com um olho roxo por semanas depois que ignorou meus avisos para me deixar em paz, talvez Marquinhos Louro, menino sempre tranqüilo — nós o chamávamos de Hulk.

Era um menino magrinho. Aparentava ter, como nós, 8, 9 anos, mas talvez tivesse mais, talvez fosse pequeno para a idade.

Eu não sei como começou. Mas acontecia assim: nos fins de tarde ele ia comprar pão na padaria que ficava na rua Presidente Kennedy, pouco depois da mercearia San Remo, de um italiano cujo neto mais tarde estudaria comigo, e do Chico Bar — o mesmo Chico Bar que até hoje tem o mesmo cheiro inconfundível e agradável, trinta anos depois.

Assim que a gente o via se aproximar, nós o cercávamos. E então começava a sua transformação. Ele repetia todo o gestual do Lou Ferrigno no seriado “Hulk”: grunhia, fazia poses de halterofilista, e então eu tentava prendê-lo com os braços. Não era briga, porque não se davam socos ou pontapés, e nem havia raiva. Para nós, pelo menos, era apenas uma brincadeira.

Gosto de pensar que ele realmente acreditava que se transformava no Hulk, pelo menos uma transformação interior, invisível a quem não tinha a sua imaginação. Talvez a repetição do mise en scène lhe despertasse uma força insuspeita. O Hulk tinha uma idade em que algumas coisas são permitidas.

Eu era bastante forte, mas ele sempre conseguia se soltar. E ia para a padaria vitorioso, provavelmente já tendo voltado a ser apenas David Banner. O Hulk sempre nos humilhava, principalmente a mim.

Mas um dia as coisas mudaram. Nós o vimos quando ele já voltava da padaria, carregando um saco de pão e um de leite. Nós o cercamos, como sempre. E nesse dia, não sei por quê, ele entrou em pânico. Nós não íamos bater nele; e ele devia saber disso, porque tudo aquilo já tinha acontecido tantas vezes antes. Mas ele ficou com medo, e correu.

Ele não percebia que isso é algo que não se faz diante de uma pequena matilha de crianças, porque quando sentem o cheiro do sangue elas se tornam piores do que o que são, e o espírito leve da brincadeira dá lugar a uma ferocidade divertida e mal-disfarçada. E nós corremos atrás dele, o cercamos como lobos cercam um alce doente. Desesperado, o Hulk tropeçou, se esborrachou no chão, o saco de leite rolou mas não estourou.

Então ele correu para a rua Oliveira Salazar, uma pequena rua ligando a João Pondé à Oito de Dezembro onde eu já tinha deixado um bom nacos de carne em uma queda memorável durante uma corrida de bicicleta — mas Bal tinha se dado pior, ele estava na minha frente e caiu primeiro, e se eu fiquei com o ombro em carne viva ele teve que tomar quatro pontos no queixo.

Eu não podia deixar passar a chance de saborear a vingança por tantas pequenas humilhações — como era que aquele magrelo raquítico se soltava tão facilmente de mim? — e corri atrás dele, nem um pouco disposto a soltar uma presa que sempre nos escapava. Ele entrou em um prédio, sempre comigo atrás dele, e fiquei sabendo onde ele morava. Subiu as escadas.

E então, no meio do caminho, ele de repente se desesperou completamente. Encostado à parede, ele chorava apavorado. Pedia que, por favor, eu não contasse à sua madrinha que ele estava brigando na rua, porque ela iria bater nele. A brincadeira já tinha ido longe demais.

O Hulk se tornou meu amigo até muito tempo depois, mesmo anos depois de eu me mudar. Da última vez que o vi, em 1983, ele ainda morava lá. Tinha crescido, já não era o mulatinho magrelo de alguns anos antes. Foi ele quem me reconheceu. Eu espero que ele tenha se dado bem na vida, porque era um bom menino. Muitas vezes, depois daquilo, me peguei pensando em como eram as relações dele com a madrinha, qual o seu papel naquela casa. E sempre lembro dele quando vejo alguém falar em escravidão e em sua herança, e lembro como eram complexas as relações de classe e cor na Salvador dos anos 70, e que aqueles americanos não entendem nada do que se passa abaixo do Trópico de Câncer.

Disneylândia

Já devo ter dito algumas vezes por aqui que me sinto um afortunado por ter podido assistir à televisão nos anos 70.

Não é nostalgia boba de um sujeito mais velho do que parece. É que a programação da TV aberta naqueles tempos era realmente melhor. Talvez por não ser obrigada a nivelar excessivamente por baixo sua programação, já que não tinha a concorrência das TVs a cabo e da internet, a TV aberta conseguia equilibrar razoavelmente apelo popular e qualidade estética: foi nessa época que se firmou o tal padrão Globo de qualidade.

Além disso, a maior parte dos filmes que exibia eram antigos; o que quer dizer que em vez de assistir a espetáculos escatologicamente dementes como Thunderpants, podíamos assistir a “O Gavião e a Flecha”, com Burt Lancaster, bons faroestes com John Wayne e filmes de Jerry Lewis e Charles Chaplin. Assisti a The African Queen pela primeira vez na Sessão da Tarde; duvido que isso seja possível hoje em dia.

E mesmo com tantas opções, Disneylândia era um dos meus programas favoritos. Todos os sábados à tarde, “o mundo maravilhoso de Disney” exibia um filme, às vezes em duas partes. Eram obras dirigidas ao público infantil, e alguns deles, a exemplo de “O Tesouro de Matecumbe”, eram quadrinizados depois e apareciam em revistas como o Almanaque Disney.

(O mais engraçado é que um dos meus sonhos na época era poder ver os desenhos animados de que a Disneylândia exibia trechos [e também o Clube do Mickey, nos fins de tarde da TV Tupi] — ou seja, aquela quantidade enorme de curta-metragens que a Disney tinha produzido ao longo de mais de meio século. Eu já tinha visto alguns no cinema — antes do videocassete a Disney reprisava seus filmes periodicamente —, como “Cinderela”, “A Bela Adormecida” e Mickey and Seal, e alguns na TV, como Pluto’s Blue Note e Bongo, e achava que eram melhores que os filmes a que assistia. No início dos anos 80 meu sonho foi realizado. A Disneylândia deixou de exibir os filmes e se concentrou nos desenhos. Foi a pior coisa que podiam ter feito. Depois de algumas semanas, tudo aquilo se tornou extremamente chato, ao contrário dos filmes exibidos anteriormente. Moral: a gente deve ter cuidado com o que deseja.)

Durante muitos, muitos anos procurei saber mais sobre os poucos filmes de que me lembrava. Uma esperança apareceu com o IMDb, mas ele nunca conseguiu me dar a resposta — até que a anta aqui finalmente fizesse a pergunta certa.

É uma boa sensação reencontrar alguns filmes cujas lembranças lhe acompanharam pela maior parte de sua vida.

Child of Glass, de 1978, é um deles. Conta a história de um menino que se muda para uma plantation colonial no sul dos EUA e tem que encontrar uma boneca para que o fantasma de uma menina possa descansar em paz. Ele encontra a boneca em um vão dentro de um poço. Assisti a esse filme no ano seguinte ao de sua produção, mas não era comum exibirem filmes tão novos. Vi o segundo episódio de A Country Coyote Goes to Hollywood, por exemplo, no dia 30 de março de 1979. Estava sozinho em casa porque todos tinham saído — mas nada me faria deixar de ver a conclusão da história de um coiote perdido nas colinas de Hollywood, filmada em 1965.

Foi com Barry of the Great St. Bernard (1977), no início do inverno baiano de 1980, que conheci a história dos São Bernardos que salvavam vidas nas montanhas da Suíça. Lembro da imagem final, com a estátua que ergueram em homenagem ao cão Barry — só não sei por que a Linha Maginot me vem à memória sempre que lembro dessa imagem. Assisti a esse filme um pouco depois de Fire on Kelly Mountain, de 1973, em que pela primeira vez na minha vida vi um daqueles labirintos para hamsters. Por alguma razão, sempre achei que o ator principal desse filme era Kurt Russell. O IMDb me informou que era Larry Wilcox, que depois faria o John Baker de CHiPs.

Procurar por esse filmes no IMDb me lembrou de pelo menos mais um que vi, mas do qual não guardava nenhuma grande recordação: Charlie, the Lonesome Cougar, de 1967. Isso me lembra que Walt Disney, com todas as críticas que se faz aos seus métodos, fez mais pelo ambientalismo que dezenas de ONGs juntas. Em tempos de Our Common Future, foi graças a filmes como esses e a True-Life Adventure Series (além, claro, de programas como “Mundo Animal” e “Mundo Selvagem”) que a geração que cresceu nos anos 70 passou a ter maior consciência ambiental. Só alguns irrecuperáveis, como eu, continuavam preferindo a idéia de safáris em que caçariam animais selvagens como leões e elefantes, apenas pelo prazer de se provarem capazes de matar animais maiores e mais fortes que eles.

O que fica de tudo isso é o fato de que esses filmes cumpriam uma dupla missão de maneira ímpar: entretinham e educavam ao mesmo tempo. Por causa deles, toda a minha geração estava próxima da história e cultura americanas. Por um lado isso era bom, porque informação nunca é demais; por outro, graças à televisão nos tornamos cada vez mais distantes das tradições brasileiras. De certa forma, perdemos o contato com elementos importantes de nossa cultura como lendas como o saci-pererê e brincadeiras como pião e bolas de gude. A vida é assim mesmo.

Infelizmente não consegui achar um filme específico, exibido no final do primeiro semestre de 1980. Ele contava a história de um menino rico, mimado e preconceituoso que naufragava numa ilha deserta acompanhado apenas por um velho negro. Se não me engano, o menino ficava temporariamente cego no naufrágio. O filme contava como ele virava uma pessoa melhor ao conviver com o velho. No final aparecia um daqueles furacões caribenhos e o velho se amarrava a uma árvore, com o menino entre eles. Protegendo o garoto assim, o velho morria, e nos dias seguintes finalmente chegava o resgate, claro. O filme era basicamente uma variação mais óbvia e boba sobre o bom “Capitão Coragem”, com Spencer Tracy. Nunca consegui encontrar nada sobre esse filme, e ele não consta na relação do IMDb, o que me leva a desconfiar que não o vi em Disneylândia e que não era uma produção Disney, embora tivesse todas as características.

Tudo isso é coisa de cerca de 30 anos atrás. É mais de um quarto de século. As coisas mudaram muito desde então, nem sempre para melhor. Na época Salvador tinha apenas dois canais de televisão, a TV Aratu que retransmitia a Rede Globo e a TV Itapoan, afiliada à Tupi. Hoje há centenas à disposição, mas não me parece que a TV tenha importância tão grande na formação cultural de alguém — até porque Pucca não tem condições de formar nada.

O mais interessante é que se Disneylândia acabou, hoje temos um canal inteiro com a programação da Disney. Mas o Disney Channel não se compara à Disneylândia. Se concentram em exibir produções recentes, provavelmente mais comerciais, como High School Musical e seriados irritantes como Hannah Montana. Isso, claro, faz parte dos novos tempos, e reclamar do novo é que mostra nostalgia boba. Mas acho que não faria mal algum se reservassem um espaçozinho nas madrugadas para exibir esse acervo absurdamente bom que a Disney tem.

UPDATE: Child of Glass está disponível no YouTube.

Há quase 30 anos

Tá Com Medo Tabaréu
Super Bacana

Tá com medo, tabaréu
É de linha de carretel
Tá com medo, tabaréu
É de linha de carretel

Você encosta, ela estica
Tira a mão da minha pipa
Que eu quero soltar,
Chega pra lá, assim não dá
Minha pipa é voadora
Minha pipa tá no ar

Ah, ah, ah, minha pipa tá no ar
Ah, ah, ah, minha pipa tá no ar

Tem rabo grande e linha grossa
Com meu cerol não há quem possa,
Não encosta, não encosta
Com meu cerol não há quem possa

Tá com medo, tabaréu
É de linha de carretel
Tá com medo, tabaréu
É de linha de carretel.