Fala, memória

Há algum tempo escrevi um post sobre algumas lembranças da TV nos anos 70. Uma delas eram os filmes exibidos em “Disneylândia”, dos quais lembrava nitidamente de alguns, como Child of Glass, visto em 1979.

Mas foi o bocado de gente que também lembrava do filme, muito mais do que eu — incluindo nessas lembranças até uma pequena quadrinha — que me impressionou. E é por causa delas que esse post é daqueles que estão sempre recebendo um novo comentário, normalmente de alguém que vem parar aqui por acaso através do Google.

O post mencionava também um filme específico de que eu lembrava mas sobre o qual não conseguia achar nenhuma informação. Falava de um garoto mimado e um velho negro, náufragos em uma ilha deserta onde o menino, temporariamente cego, aprende a ser gente. Vi esse filme no outono de 80 e desde então não tinha encontrado absolutamente nada sobre ele. Sem lembrar do título ficava difícil encontrar alguma referência.

E é aí que entra a internet.

Uma moça que também havia assistido a esse filme lembrava dos nomes dos personagens, Timothy e Phillip, e deixou um comentário aqui:

Por favor, ajudam-me, a quase 30 anos mais ou menos procuro saber o nome desse filme, e hoje graças a Deus encontrei esse site onde alguem um dia tbm assistiu a esse filme, estou cadastrada em uns 5 ou 6 sites de busca por filmes antigos, e nesse site foi onde a minha esperança voltou a crescer, alguem sabe por favor me dizer o nome do filme do garotinho e do velho que naufragaram numa ilha, lembro-me que ele se chamava Timoty e o garoto Feliph. Ahhhh que tempo bom que naum voltam mais, agradeço a qm possa me ajudar, me mandem e-mail , qqr coisa mas, preciso saber o nome do filme , pois qdo assisti com minha mae(in memoria) eu era uma criancinha de 3 ou 4 anos naum me lembro bem…desde de ja agradeço do fundo do meu coraçao !!!!!!

A partir daí ficou fácil.

O nome do filme é The Cay. Foi feito para a TV em 1974 e é baseado em um livro aparentemente ainda popular no ensino de literatura para meninos americanos de 8 a 11 anos, uma espécie de “Capitão Coragem” misturado com “A Cabana do Pai Tomás” e com molho de “Robinson Crusoé”. Mais impressionante, no entanto, é o fato de ser estrelado por ninguém menos que James Earl Jones com uma carapinha branca artificial.

Mais de 30 anos depois, eu não lembrava mais do filme, e para garantir a integridade de minhas lembranças, boas ou ruins, decidi não assistir a ele. (Mas não consigo deixar de imaginar aquele negão olhando para o menino e dizendo: “Phillip, I am your father.”)

A cada dia as pessoas me surpreendem mais, e de maneira positiva. Em um desses carnavais perdidos de Deus, um sujeito chamado Jota apareceu nesse post procurando por outro filme, com um menino chamado Benjamin que era guiado por um texugo. Lembrei imediatamente da existência desse filme; e lembrei também que foi assistindo a ele que aprendi que existia um animal chamado texugo. (Esse foi fácil de descobrir: The Boy Who Talked to Badgers.) Eu só espero que esse seja um filme que Benjamin aparece caminhando em um trigal.

A verdade é que é esse tipo de coisa que, quase 20 anos depois, ainda me fascina na internet. É o fato de que, graças à colaboração de milhares de desconhecidos, e gente que não espera nenhuma retribuição pelo que oferece aos outros, um mundo inteiro de informação pouco relevante está acessível.

Porque informação digna desse nome a gente sempre achou. Certo, nem sempre tão facilmente — mas as coisas importantes, mesmo, a gente sempre achava em uma enciclopédia, num livro do ano, no Almanaque Abril. O que a internet trouxe de verdadeiramente revolucionário foi a informação pouco significativa, aquelas coisas que parecem não interessar a ninguém, mas das quais um número surpreendentemente grande de pessoas ao redor mundo lembra com carinho. Essas coisas estavam condenadas a desaparecer junto com as memórias de quem as viveu; é a possibilidade de essas pessoas, que antigamente não teriam nenhuma chance de conhecer-se ou de trocar lembranças, se conectarem de alguma forma que faz toda a diferença.

Só depois da internet consegui achar informações sobre alguns dos seriados a que assisti na infância e de que a minha geração já não lembrava. Descobri também que essas lembranças não têm atrativos só para mim. O Edilson, por exemplo, compra DVDs de seriados esdrúxulos como “Manimal” (uma espécie de protótipo melhorzinho de Animal) — e está atrás de alguém que tenha “Os Campeões”. O Maurício não esquece a Linda Carter. Eu também não.

Em qualquer lugar você acha grandes textos sobre a história da TV. Todo mundo escreveu um livro sobre isso. Mas os detalhes, mesmo, só na internet. É aqui que se pode saber onde andam atores dos quais só você parece se lembrar — mas isso apenas porque você ainda pertence a um mundo que já acabou, um mundo ainda não conectado. Aqueles seriados de que ninguém lembrava, como “Joe, o Fugitivo”, de que o Daniel ainda lembra; ou “Shazam”, ou “Ísis”, ou “O Homem do Fundo do Mar”. Sem falar nos desenhos, como os produzidos por DePattie e Freleng e a infinidade de tentativas da Hanna-Barbera que não deram certo. Alguém ainda lembra do desenho do Tarzan, produzido por Norm Prescott e Lou Scheimer, e que estreou no Brasil em 18 de novembro de 1979 (não, não me pergunte como eu lembro dessa data)?

Eu tenho certeza de que ninguém, absolutamente ninguém da minha idade lembra de Esper.

O que é realmente belo na internet é que não importa em que você pense: aqui você vai descobrir que mais gente também assistiu àquilo que marcou a sua infância, e essas pessoas se lembram disso e estão dispostas a compartilhar informações sobre eles. É o caso do Francisco Gomes, que anteontem deixou um comentário me informando que o filme a que me referi no início era o The Cay, e acrescentando algo que eu desconhecia: o filme está disponível no YouTube.

Com a chegada do P2P a coisa melhorou ainda mais. Boa parte dos filmes exibidos na Disneylândia hoje está disponível para download, em algum lugar — de preferência no Pirate Bay. As pessoas podem achar Child of Glass, por exemplo, além de um bocado de filmes antigos exibidos na Disneylândia. É só procurar. Curiosamente é mais fácil achar esse tipo de filme do que alguns clássicos do cinema, o que mostra que nada é capaz de vencer a lembrança afetiva das pessoas. Elas preferem assistir de novo a um filme bobo mas que lhes marcou, por alguma razão. E talvez, no fundo, eu saiba exatamente por quê.

Capitão América

Descobri, numa dessas descobertas tardias que velhos como eu fazem de vez em quanto, alguns sites que disponibilizam revistas antigas escaneadas.

O trabalho realizado pelo Quadradinhos PatópolisOnomatopéia DigitalRapadura Açucarada e Rock & Quadrinhos, entre outros, é inestimável. Escaneando e disponibilizando essas revistas antigas na web, elas realizam um trabalho valoroso e imprescindível. Revistas em quadrinhos já extintas, manuais Disney, a história da Marvel e da DC; tudo isso está lá, disponível gratuitamente, em um serviço público de preservação da memória editorial do país que supera, de longe, o de muitas bibliotecas. Os donos desses blogs e seus colaboradores são abnegados que compartilham com os outros suas coleções, material que gente menor tenta apenas vender em sebos por quaisquer 5 reais. Já perdi a conta do que reencontrei ali — coisas que tinha lido há mais de 30 anos, que tinham sido parte da minha formação, mas que não tinha esquecido totalmente. As pequenas felicidades que esse pessoal possibilita são inestimáveis, e eu gostaria que eles soubessem disso.

Acima de tudo, tudo isso tem um grande valor afetivo para muitas pessoas, e eu certamente estou entre elas. Reencontrar essas revistas, depois de tanto tempo, é algo que me faz mais feliz e mais certo do que fui. Elas atualizam e corrigem minha própria cronologia; me ajudam a me situar novamente no tempo, avivam e refazem minhas memórias.

Foi lá, por exemplo, que reencontrei as revistinhas do Capitão América.

Naqueles primeiros anos da década de 80, quando comprei virtualmente todas as revistas de super-heróis que a editora Abril publicava (eu não gostava da RGE, hoje Globo, por causa do papel muito inferior), o Capitão América era o meu preferido.Tudo começou com ele. Embora eu tivesse comprados outras esporadicamente ao longo dos anos anteriores, foi a Capitão América 20 que comprei num sábado de fevereiro ou março de 1981 porque era a mais barata na banca, e que me fez desenvolver uma paixão por histórias de super-heróis que duraria muitos anos. A Capitão América e a Heróis da TV acabariam, nos anos seguintes, substituindo as revistinhas Disney que eu comprava até então; tantas revistas já não caberiam no meu orçamento e, mais que isso, não caberiam mais na minha idade. Olhando agora, tantos anos depois, representaram um ritual de passagem. Quem diria. Cada um tem o que pode. Gary Grimes tem a Jennifer O’Neill; eu tive Stan Lee e John Buscema. Coitado de mim.

Mas na época isso interessava pouco e eu não sabia que aqueles super-heróis que passei a ler — Capitão América, Homem de Ferro, Surfista Prateado, Thor, Capitão Marvel, Mestre do Kung Fu, Punhos de Ferro, sei lá o que mais — eram o segundo escalão da Marvel. Para mim, isso não interessava — até porque eu já conhecia boa parte deles dos desenhos animados exibidos pela TV Tupi. Mais tarde, em 1983, a Abril conseguiria o creme, que na virada da década estava na RGE, e passaria a publicar as revistas do Homem-Aranha, do Hulk e todos os outros super-heróis. Curiosamente, para mim foi o início do primeiro fim. Em algum momento de 1984 ou 1985 eu deixaria de comprar essas revistas. Voltaria a comprá-las mais tarde, intermitentemente — até recentemente, por sinal —, mas jamais voltaria a ser como antes.

De qualquer forma, durante muitos anos, muito tempo depois de ter abandonado e esquecido suas histórias, eu não entendi por que gostava do Capitão América — e por que, de todos os super-heróis existentes, foi justamente ele a servir de porta de entrada para mim nesse mundo. Havia outros super-heróis por aí, personagens mais adequados e mais bem-sucedidos como o Homem-Aranha — àquela altura com 20 anos de sucesso na vizinhança.

Relendo essas revistas descobri por quê. As histórias eram típicas da Marvel — ou melhor, de Stan Lee: o Capitão América sofria por um romance cheio de mal-entendidos (com uma louraça daquelas), e os dramas pessoais do seu alter ego tinham o mesmo peso das aventuras típicas do herói uniformizado. Mas, principalmente, o Capitão atravessava o drama de viver em uma era que não era a sua. Essa era a essência do seu personagem, e isso o aproximava tanto do Surfista Prateado. A diferença é que o conflito do Surfista era espacial, o estar longe de seu lugar, enquanto o do Capitão era temporal, ele que estava longe de seu tempo.

Claro que isso não era desenvolvido como, talvez, fosse hoje. Lendo essas histórias agora, mais de 30 anos depois, dá para perceber como eram tão mais leves do que o que se publica agora em quadrinhos, quase pueris. Mas ao mesmo tempo — e eu não sei o quanto há de preconceito pessoal aqui, a insistência em achar que “no meu tempo as coisas eram melhores” — elas me parecem mais interessantes, mais simples, mais palatáveis. Os tempos mudaram muito, mas aquilo que passou não perdeu totalmente seu apelo. O Capitão América em 1981 era mais interessante do que hoje. Provavelmente ele só funcionava porque, criança ainda, eu não fazia noção que ele representava. Mais tarde, a dicotomia entre o personagem e o país real levaria à decadência completa do super-herói, e mesmo hoje tenho a impressão de que ele só existe porque o meio-oeste americano ainda tem habitantes.

(As coisas não são assim tão simples e esquemáticas como escrevi aí em cima. Se eu soubesse que essa fase do Capitão América tinha sido uma das campeãs de vendas da Marvel, e que em 2010 seria considerada o quarto melhor momento da Marvel nos anos 70, talvez entendesse melhor as razões da minha paixão repentina e irremediável, e talvez devolvesse um pouquinho de respeito às opiniões e critérios da criança que fui.)

30 anos se passaram. Ao ser revivido por Stan Lee nos anos 60, ele tinha passado 20 anos congelado; hoje, para fazer sentido, teria que ter passado 70. O Capitão América é um personagem desgraçado, e sua maior desgraça não é sequer a passagem do tempo, e sim o país e a bandeira que representa. O tempo o condena, apenas: o seu país o destrói.

Mas isso é o que eu acho hoje. É tão pequeno. Reencontrar essas revistas me lembrou de um tempo em que as coisas eram mais simples e o mundo era tão grande. E isso é bom.

Balada do Andarilho Ramon

É simples.

Os acordes, como eu aprendi há quase 30 anos, são G / Em / G / Em / Am / C / D, repetidos em cada estrofe (e aí você pode, se quiser, brincar um pouco com os acordes de You’ve Got to Hide Your Love Away, D#4 / D / D#9 / D.

A letra é a seguinte:

Balada do Andarilho Ramon
(Braulio Tavares)

Vou lhes falar sobre um amigo
Que tornou-se andarilho
E a sua mãe ainda hoje
Espera a volta desse filho
Que antigamente era tão
Obediente e tão bom.
A sua infância foi cercada
De ternura e de carinho
Tudo fizeram pra que ele
Se tornasse um cordeirinho
Foi batizado na igreja
Com o nome de Ramón.

Todas as noites ao dormir
Fazia sua oração
E aos sete anos de idade
Fez a primeira comunhão.
Velas de cera, terno branco,
Flores de papel crepon.
Foi sempre o melhor aluno
No curso ginasial
E até hoje os professores
Do Colégio Estadual
Inda recordam o talento
E a disciplina de Ramón.

Mas ao chegar os quinze anos
Tudo muda de repente
Pois ninguém sabe o que se passa
Em cuca de adolescente
E haja gíria extravagante,
Barba grande e muito som.
Ele lê livros e jornais
Com uma linguagem esquisita
Passa a sair com moças feias
Que ele diz que são bonitas
Ninguém em casa compreende
O que se passa com Ramón.

O pai acende um charuto,
Traça as cartas do baralho
E diz que o problema do filho
É só falta de trabalho
E esses LPs dos Beatles,
Bob Dylan e Rolling Stones.
Ele esbraveja pela casa,
Diz que a coisa é muito séria.
E que vai falar com um amigo
Oficial da Força Aérea
Que é pra ver se arranja vaga
Pra alistar o seu Ramón.

Mas sua mãe ainda acha
Que são as más companhias
Pois se não fossem os amigos
O seu filho poderia
Ser um bom pai de família
Ser católico e maçom.
Ela ouve nomes esquisitos
Cineclube, diretório
Rock and roll, latinoamérica
E corre pro oratório
Rezando um terço pede a Deus
Que cuide bem do seu Ramón.

O pai rugindo, a mãe chorando,
A casa era um pandemônio
E no fim de sessenta e oito
Foi guilhotinado o sonho
Dos estudantes marselheses
A cantar marchons, marchons.
E então quando foi mil novecentos
E sessenta e nove
Deixou na porta um bilhete
Em que dizia peace and love
E desde então ninguém mais soube
O que foi feito de Ramón.

Me disse um cara que vai sempre
Ao Rio Grande do Sul
Que foi tomar umas cervejas
Lá no bar Danúbio Azul
E viu um cabeludo estranho
Trabalhando de garçom.
Ele sorria e cantava
Enquanto servia as mesas
E enganava o patrão
Quando cobrava as despesas
O cara nunca perguntou,
Mas pensa que era Ramón.

Mas me disseram que um dia
Ele foi visto numa esquina
De um pequeno vilarejo
Lá em Santa Catarina
Onde as mulheres usam anágua,
Espartilho e califon.
E logo ali o idiota
Acabou se apaixonando
Pela filha de um antigo
Imigrante italiano
Que sustenta ainda hoje
Os quatro filhos de Ramón.

Teve também um cabeludo
Que foi visto em Cabedelo
Usando um chapéu de palha
Para esconder o cabelo
E embarcando num navio
Com destino a Hong Kong.
No bolso levava a gaita
E nas costas a mochila
Tinha um sorriso irônico
E a cuca muito tranquila
E só por essa descrição
Eu penso que era Ramón.

Mas me contaram que ele andou
Um certo tempo na Argentina
Lá se casou com uma chilena
E foi pai de uma menina
Que nasceu no dia exato
Do regresso de Perón.
Ele andou nas passeatas
Pintou versos sobre os muros
Mas depois chegou Videla
E os tempos ficaram duros
E nem mesmo a chilena
Tem notícias de Ramón.

Me disseram que um dia
Ele foi preso na fronteira
Quatro guardas o pegaram
Lhe rasparam a cabeleira
E o deixaram vários meses
Na cadeia de Assunción.
Mandou mais de dez bilhetes
Para o cônsul brasileiro
E uma noite foi levado
A passear — com o carcereiro
E quem me diz onde é que fica
A sepultura de Ramón?

A sua mãe ainda o espera
Quer esteja vivo ou morto
O pai diz “pau que nasce torto
Não tem jeito, morre torto”
E o irmão mais novo está viajando,
Mas no Projeto Rondon
Vocês desculpem se a história
Vai ficar inacabada
Não vou dizer se a escolha dele
Estava certa ou errada
Tem os que ficam como eu
E um que parte, que é Ramón.

Nostalgia dos anos 80

Vendo um comentário antigo do Leonardo Bernardes aqui, fico surpreso ao ver que pareço não gostar do passado.

Porque sou a pessoa mais nostálgica que eu conheço. Eu gosto de lembrar de tempos idos e tenho boa memória para essas coisas. E a internet tornou tudo isso muito mais fácil. Antes dela, eu era a única pessoa que gostava de “Daniel Boone”, a única que lembrava de um seriado chamado “Joe, o Fugitivo”. A internet aproximou as memórias, universalizou lembranças individuais, tornou o passado um pouco mais próximo.

Aqui você encontra até a programação diária de TVs nos anos 70; fotos antigas da sua cidade cobrindo todo o século passado, tempos que você viu ou não; no YouTube, encontra registros em vídeo ou áudio de virtualmente tudo o que foi exibido ao longo da história da TV. Intervalo comercial do horário nobre da Globo no início dos anos 80? Está lá.

A internet corrigiu muitas de minhas memórias, e tornou outras mais específicas. Agora esse tipo de coisa chegou também à TV porque os canais precisam de programação, e é tão estranho, mas me peguei assistindo ao Globo de Ouro e ao Cassino do Chacrinha nesses dias.

São coisas de 25 anos atrás, um quarto de século. Em outros tempos essas coisas tão velhas seriam esquecidas, pelo bem da humanidade; mas a TV e a internet não permitem que velhos pecados sejam perdoados e não permitem que você enterre os malfeitos do passado.

No Globo de Ouro a gente vê Fábio Júnior e Fagner novinhos, Lulu Santos em sua melhor época, Elba Ramalho dançando fricote, José Augusto — alguém lembra de José Augusto? Os anos 80 foram dele —, Kátia voltando dos mortos que ela não viu, Rosana como uma deusa absoluta das rádios, e o rock brasileiro em seu melhor momento, garimpando um espacinho aqui, outro ali nas paradas de sucesso.

Vê também que rock era coisa de menino rico, então como agora. É engraçado ver o Humberto Gessinger, em plenos anos 80 em que a guitarra Giannini ainda era rainha (a menos, claro, que você não tivesse nenhum resquício de amor próprio e fosse o dono envergonhado de uma Tonante), com um baixo Rickenbacker 4003 — caríssimo até hoje. É olhar as caras de quem fazia rock, numa época em que ele tinha se transformado na música unificadora da juventude brasileira, e notar as fisionomias de meninos que nasceram em meio à fartura — tão diferentes dos dançarinos e backing vocals da Banda Reflexu’s e dos integrantes do Placa Luminosa, uma típica banda de baile.

É chance de rever também a moda, tadinha. Eu não gostava na época — aquelas calças folgadonas (o nome era bag?), apertadas na cintura e nos calcanhares; camisas de manga comprida abotoadas até o pescoço; as moças com saias balonê e penteados de poodle malcriado; ombreiras quase universais fazendo lembrar os zoot suits dos anos 40; eram tempos estranhos. A moda dos anos 80 era brega, era feia, era um atentado aos olhos e ao bom gosto; mas comparando com o que se vê nas ruas neste século, é fácil perceber que ao mesmo tempo foi o último momento em que tentou ser ousada, mesmo que isso não tenha dado certo.

Pior que o Globo de Ouro, no entanto, era o Cassino do Chacrinha.

Rever o Cassino do Chacrinha me faz ter a certeza de que eu estava certo e os críticos de comunicação que falam maravilhas de Abelardo Barbosa estavam errados: pelo menos nos anos 80, o Chacrinha era lixo comercial, sem nenhum aspecto redentor. Nenhum. Chacrinha era lixo, ponto, uma caricatura de algo que talvez um dia tenha sido engraçado ou criativo. E eu nem mesmo me refiro ao jabá óbvio, aos acordos escusos (placas fazendo propaganda de Sarney e do governo do Maranhão, por exemplo). Me refiro ao tipo de programa que ele fazia, medíocre, rasteiro, pobre. Talvez o Chacrinha tenha sido revolucionário no rádio, ou no início da TV; mas em seu final, aquele que acompanhei, ele era apenas ruim. Aquilo não era um bom programa. Não era sequer uma boa estética. Além disso, o Globo de Ouro parecia ser mais controlado no jabá do que o Chacrinha. Talvez seja uma questão de ovo ou galinha, mas as músicas que apareciam ali, com raríssimas exceções, eram realmente as que tocavam no rádio. As do Chacrinha eram as que iam tocar.

Eu não via nenhum desses programas naquela época. Normalmente estava na rua, militando no grêmio estudantil ou na União da Juventude Socialista ou correndo atrás de alguma moça dadivosa o bastante para acabar com o meu sofrimento, e que nunca encontrava. Mas se estava em casa, eu não ia ver aquilo. Tinha mais o que fazer. O Globo de Ouro era apenas um repositório de música ruim a que eu assistia raramente; o Chacrinha, nem isso. Hoje vejo essas coisas com um sorriso nos lábios; lembro delas, e uma sensação de nostalgia é inevitável. Mas não por elas: por mim.

As coisas, no entanto, não são tão simples. Por mais que me doa admitir o que vou dizer agora, por mais que eu diga isso com o coração confrangido, a impressão é de que a música popular brasileira — a verdadeiramente popular, não a música de elite que sempre existiu — daquela época era melhor que a de hoje. Era mais variada, ao menos, e bebia em mais fontes. Se hoje a música brasileira está cada vez mais uniformizada, se o que chamam de sertanejo é basicamente música pop cantada em falsete e é cada vez menos diferente do resto da programação, se a música baiana degringolou no lixo que se ouve em trios elétricos e em micaretas, na época existia variedade. Do rock ao forró, do brega ao infantil, do axé à música romântica. A riqueza que sempre se apregoou acerca da música brasileira estava lá. Não está mais.

Imagino como era tão melhor para os artistas aqueles tempos. Devia ser mais fácil ganhar dinheiro. Hoje, sem o Chacrinha para ditar a programação das rádios, a coisa é mais complicada.

Mas não é só para eles. É também para nós, os queridos ouvintes, os caros telespectadores. Hoje, assistindo ao Globo de Ouro, eu consigo lembrar de praticamente todas as músicas. Tenho dúvidas de que lembraria de algo semelhante — músicas de que não gostava e que não ouvia intencionalmente — daqui a outro quarto de século (ainda que estivesse vivo, claro). Porque mesmo que eu não assistisse àquelas desgraças, essas músicas estavam no ar, em todo lugar. Era um mundo mais simples e menos fragmentado. Não era melhor; mas às vezes até chega a parecer que era.

Misericórdia

Era uma senhora velha, daquele tipo de velha cuja idade é difícil de ser adivinhada pela configuração singular das marcas no rosto. Tanto podia ter 50 anos quanto 80. Ela tinha um cortiço na Misericórdia no comecinho dos anos 70. E tinha um pretinho que criava e no qual batia todo dia. Todo dia.

Ainda estavam longe os tempos da recuperação do Pelourinho. Aquilo tudo era feio, mas era de verdade: a Praça da Sé era fim de linha de ônibus, as lojas de discos, as livrarias e a Primavera ainda não tinham cedido lugar às armadilhas de turista atuais. Turistas, sim, mas muito menos que hoje; nas calçadas o que havia era a gente da Bahia indo e vindo do trabalho, vivendo os últimos dias de uma província malemolente, os dias antes de Aratu e de Camaçari que eu não vi — só entrevi de longe, olhando para o que tinha restado deles.

Pela Misericórdia e pelo Terreiro de Jesus se espalhavam cortiços que estavam ali havia décadas. E das janelas daquela casa de cômodos da Misericórdia, aquela que ficava bem em frente à Igreja, moças jovens viam com olhos deslumbrados os casamentos requintados na Igreja da Misericórdia. Ali casavam-se os ricos, a nobreza baiana de sotaque mole e arrastado. É uma coisa da Bahia, esses casamentos em igrejas antigas de bairros decrépitos, que realçam o contraste entre a riqueza e a miséria que em Salvador é mais forte que em outros lugares.

E as moças que das janelas olhavam os casamentos da filha do desembargador, da filha do empresário — ah, essas normalmente não tinham se casado, tinham se amigado com o rapaz de conversa macia e brilho nos olhos que lhes fez ferver as carnes; e dividiam o cortiço de quartos apertados, quartos separados por paredes que eram apenas pentimento, décadas e décadas de tinta barata rosa, azul, verde se sobrepondo umas às outras. Dividiam-no com as meninas de coquinhos infinitos na cabeça amarrados com cordão; com as lavadeiras que estendiam no telhado as roupas das freguesas; com as prostitutas que dormiam pela manhã e saiam à noite para trabalhar no Maciel logo ali perto; com os comerciários que chegavam arrastando os pés no meio da noite, espalhando o bafo de cachaça por todo o corredor que rangia à sua passagem.

Mas isso é o que elas veriam se olhassem para dentro, e por isso olhavam para fora, para as noivas radiantes e a gente chique embonecada, as câmeras fotográficas espoucando à sua passagem. Não interessa que para quase todas elas o futuro não fosse tão brilhante, e que os momentos felizes talvez fossem ainda mais efêmeros que o brilho dos flashes dos fotógrafos d’A Tarde. Acho que talvez soubessem, no fundo, que aquele destino não podia ser para elas. Mas também acho que tinham uma certeza: a de que o seu futuro, seguramente, não seria como o destino da velha dona do cortiço.

Era uma velha muito branca, de uma brancura difícil de achar na Bahia, pelo menos difícil de achar num cortiço na Misericórdia. Usava o cabelo também totalmente branco bem esticado em um coque no alto da cabeça. Morava ali mesmo, no seu cortiço, e era velha de maus bofes e alma ruim.

Não devem ter sido um ou dois os que tentaram adivinhar a sua história. Eu tentei também, mesmo muitas décadas depois. Talvez tenha sido a sua ruindade que a fez ir ficando para trás, ir perdendo as chances de ser feliz de verdade, e a ela só restasse o cortiço que herdou do pai enquanto seus irmãos, se irmãos ela teve, foram em busca de uma vida melhor. Talvez, como a Mulher de Roxo que já vagava um pouco mais abaixo, nas lojas da rua Chile, ela tivesse sofrido uma desilusão amorosa e o seu coração tivesse se encarquilhado em fel.

O que importa é que os anos 70 começavam e ela ainda estava ali. Mas não estava sozinha. Ela tinha o pretinho dela.

Era um rapaz franzino de uns 18 anos. Devia ter sido criado por ela desde a infância. Era tão comum, isso, e seria até muito mais tarde. Mas aquele caso era especial, porque não dá para deixar de pensar na ingenuidade de sua mãe, coitada, mulher tola que um dia achou que o seu filho teria uma vida melhor se fosse criado pela filha de sinhô.

O pretinho dormia no quarto com a velha, provavelmente no chão enquanto ela ocupava a cama. Quando me contaram essa história eu perguntei mas então a velha pegava o menino? E me disseram que não, que não era isso, ele era só o menino que ela criava, e por ser preto isso lhe dava o direito de bater nele, bater como se bate em jumento teimoso.

“Ah, Rafael, você não perguntaria isso se visse o olhar que ele dirigia a ela. Era um olho diferente, era ódio. Ódio e impotência.”

No final dos anos 60, em Salvador, a escravidão ainda não tinha acabado de todo. A velha ruim dona do cortiço na Misericórdia e tantas outras mulheres, bem ou mal intencionadas, criavam pretinhos como hoje criam poodles. Uns eram bem tratados e a esses era dada a sorte grande, a esses a vida abria mesmo a chance de uma vida melhor. Mas outros tinham o azar desse pretinho da Misericórdia.

Isso foi há mais de 40 anos. É tempo demais. A velha ruim já morreu, não pode estar viva. Sua casa de cômodos deve ter ficado para um sobrinho, um sobrinho-neto, e sobreviveu sobre as lojas do térreo — como a “5 Irmãos”, loja de tecidos que ainda estava lá no final dos anos 80. Mas então as coisas mudaram, e a nova Salvador para turistas saneou o lugar dos pobres que deveriam se conformar em morar para lá de Pernambués, para lá da Calçada. O cortiço hoje é um pequeno conjunto comercial. Ali fica a loja da Fundação Pierre Verger, por exemplo. A Misericórdia é hoje mais bonita do que talvez jamais tenha sido, e atrai vendedores ambulantes ansiosos por tirar algum dinheiro dos turistas que se amontoam por ali.

Se alguém se der ao trabalho de perguntar, o mais provável é que ninguém mais se lembre da velha senhoria do cortiço, velha ruim que tinha um pequeno escravo que a odiava no início dos anos 70. E deve ser difícil recuperar a história do velho cortiço, essas coisas a cidade esquece, engole como uma lembrança ruim que deve ser obliterada porque cidades são sempre tão maiores que suas pequenas histórias. Mas o menino que ela criava deve estar por aí, prestes a se aposentar, e só ele sabe as cicatrizes que sua alma carrega dos anos que passou no cortiço da Misericórdia.

Exercício de memória

Diante do meu cafofo surgiu um Karmann Ghia à venda. Azul, estacionado na frente do edifício. Pergunto ao porteiro de quem é aquele carro, é de um vizinho que recentemente escreveu um livro polêmico, e eu não conheço vizinho nenhum, mas agora gostaria de conhecer — e aí, vizinho, tem uma xícara de açúcar? –, porque acho o Karmann Ghia um carro belíssimo em seu tempo, bonito ainda hoje, e se tivesse dinheiro compraria o danado. Eu sou um saudosista e um nostálgico.

Ver o Karmann Ghia me lembrou que há mais de 30 anos, quando eu era criança, havia muito menos carros do que hoje.

Ainda peguei a Willys, que àquela altura já pertencia à Ford: vi na rua e andei em Gordinis, AeroWillys, em Rural e no Jeep, carros que já não eram fabricados. Havia também aqueles menos menos comuns, mas muitas vezes mais desejados, dos quais se viam um ou dois circulando por aí: Miúra, Puma, Lafer, Toyota Bandeirante. Havia também os Gurgel. Cheguei a dirigir um Gurgel Supermini. Foi o pior carro que já dirigi na vida.

A Chevrolet tinha a Veraneio, o Opala, o Chevette e a Caravan circulando nas ruas. A Fiat tinha apenas o 147, a não ser que se conte os Alfa Romeo que ainda circulavam por aí, e era montadora de péssima fama.

A Chrysler tinha o Dodge Dart e o Polara, pouquinhos, muito pouquinhos. Vi dia desses um Polara — olha, um Doginho!, como quem diz “olha, um iguanodonte!” — e eu nem sabia que esses carros com mais de 30 anos ainda circulavam.

A Ford tinha ainda o Galaxie, o Corcel I e II, o Jeep, a Belina e o Maverick. Que carro bonito era o Maverick. Minha última lembrança de um Maverick é a de estar pendurado no capô traseiro de um deles, o desgraçado do motorista a 100 por hora no caminho da praia, numa madrugada de carnaval de muito tempo atrás. Eu devia ter parado de beber então, mas não parei e olha só no que deu. E a F-10. Ou era C-10? Eu não lembro mais. E a Volkswagen, de longe a maior de todas, tinha o Fusca (ou simplesmente Volks), Kombi, Karmann-Ghia, o 1600, o TL, a Variant, o SP2, Brasília, e Passat. De todos esses carros, só a Kombi sobreviveu.

É triste conseguir lembrar de tudo isso, e talvez mais triste fazer uma lista assim, uma lista sem sentido. Não pelos carros, porque eu não gosto de carros, não gosto sequer de dirigir. Mas por mim.

National Geographic Magazine

Diante de mim três edições da National Geographic Magazine — 1957, 1971 e 2008. (Só a mais recente é brasileira. As outras são americanas, compradas em sebos. A National Geographic só chegou ao Brasil há relativamente pouco tempo; antes o que existia era um genérico chamada “Revista Geográfica Universal”, cuja moldura de capa era vermelha em vez de amarela, mas que era basicamente a mesma revista, pelo menos na minha memória.)

Olhando para elas, o que sinto é uma pena grande por algo que parece não fazer mais sentido. Uma fascinação pessoal por revistas antigas, por anúncios dos anos 50 e 60 e pelas técnicas de impressão da época, com suas cores distorcidas — tudo parece ter sido impresso em três cores, apenas — acaba dando lugar a uma sensação triste: a de que eu olho para um fóssil vivo, cujos dias estão prestes a terminar.

Não importa muito o ano da National Geographic. Ela é sempre basicamente a mesma, não mudou muito nessas tantas décadas de vida; a principal mudança foi a adoção de fotos na capa, em 1959, progressivamente substituindo o índice de matérias. O conteúdo no entanto é basicamente o mesmo: reportagens sobre coisas importantes ou curiosas do mundo e muitas, muitas fotografias.

Uns tantos anos atrás, a leitura de uma National Geographic significava a descoberta de um mundo novo. Imagino que gerações inteiras ficaram sabendo de coisas do mundo que os rodeava através suas páginas — fiordes na Noruega, mergulhos em Bora-Bora, mulheres com roupas multicoloridas feitas com pelo de lhama na Bolívia, festivais de rena estranhos em algum lugar da Lapônia, esquimós são aqueles indiozinhos besuntados de gordura de baleia? A revista era uma janela importante para o mundo que hoje, mais de cem anos depois de sua primeira edição, vemos principalmente na TV, numa era de informação farta, até excessiva.

Por isso é triste olhar para uma National Geographic. Porque é triste ver algo perder sua função. Ela não faz mais sentido — por causa da TV e por causa da internet. Não tenho idéia de seus números de circulação. Não sei se aumentaram ou diminuíram nos últimos anos, mas se aumentaram são um caso raro entre revistas. Porque o que ela fazia agora é feito de maneira mais eficiente nos canais de TV, como Discovery e o próprio NatGeo, em alta definição e em câmera lenta. E quanto às fotos, elas abundam na internet.

Ou seja: uns 60 anos atrás o sujeito no interior de Minas via uma foto do mar, pela primeira vez — e aquilo já era mais do que 150 anos antes, quando nem isso ele tinha, tinha apenas as impressões eventuais de um viajante que lhe descrevia a imensidão da água, o ribombar das ondas, o sal em seus lábios. E mesmo aquela foto ainda era uma experiência incompleta, não era ainda o mar, era algo como a sombra platônica na parede da caverna. O cinema e o vídeo diminuíram ainda mais esse fosso, deixando menos espaço para a imaginação, para a criação de um mundo próprio, de um mar apenas seu. Isso não é algo necessariamente bom ou ruim; mas é mais um pedaço de um tempo que se vai, um modo de ver as coisas que o progresso tornou obsoleto.

É por isso que sei que a National Geographic Magazine vai acabar, mais cedo ou mais tarde. Com ela vai embora, ao menos em termos simbólicos, uma grande tradição do século XX, a da fotografia como principal janela visual para o mundo. E junto vai uma forma de descobrir esse mesmo mundo, sempre incompleta, sempre distorcida — mas paradoxalmente de alguma forma mais rica também. Porque todos esses canais que aos poucos sucedem a National Geographic podem transmitir as mesmas informações de maneira mais eficiente, sim; mas também são menos poéticos, deslumbram menos, porque não me permitem mais completar o vazio que as fotos permitiam e recriar o mundo de acordo com o que eu gostaria que fosse, ou com o que eu podia pensar.

PT saudações

Recebi um telegrama dia desses. Parece brincadeira, mas recebi.

Os telegramas estão bem diferentes dos de antigamente. Mais parecem aerogramas, aquelas cartas alaranjadas pré-fabricadas que os Correios vendiam — não sei se ainda vendem.

Eu já sabia o que o telegrama dizia, mas de alguma forma, ainda que incompleta, consegui relembrar um pouco da sensação qeu se tinha ao, de repente, receber um telegrama inesperado. Mais que isso, veio também a impressão de que esse, provavelmente, é o último que receberei na vida. É um telegrama temporão, porque eles não fazem mais sentido no mundo de hoje.

Há alguns anos, quando a Western Union avisou que estava cancelando sua unidade de telegramas nos Estados Unidos, foi colocada a lápide sobre uma instituição do século XX. No entanto essa agonia começou em silêncio, e ninguém parece ter notado. Telegramas já não faziam sentido há muito tempo. E o passar dos dias não melhora, em nada, a sua situação.

É difícil, para quem não recebeu alguns telegramas, entender exatamente o que significava a chegada de um deles. Um telegrama era um carimbo de urgência e de importância em um tempo que não era tão corrido, em que as pessoas ainda admitiam não encontrar outras no momento em que queriam; o telefone celular ainda não existia. Um telegrama era uma esfinge à espera de um Édipo. Podia significar algo que teria a faculdade fatal de mudar sua vida, de transformar radicalmente, e para sempre, o seu mundo. De certa forma, era imparcial como a mão divina, e igualmente inesperado: podia lhe avisar de maneira seca que alguém querido havia morrido, que alguém que mais tarde também seria querido tinha nascido, ou podia simplesmente mandar você passar em algum lugar para pagar uma dívida.

Telegramas tinham uma linguagem própria. CHEGO SEGUNDA TREM DAS ONZE PT, e a gente sabia o que o PT e VG significavam. E isso fazia com que fossem mais concisos que SMS ou Twitter, porque não era uma limitação tecnológica que lhe fazia ser sucinto, mas o preço de cada letra, ou palavra, não lembro bem.

Eu disse que eles podiam significar que algo bom havia acontecido com você,  mas não falei toda a verdade. Porque algo na natureza humana, talvez a sensação permanente de queda iminente, fazia com se soubesse instintivamente que um telegrama, quase por princípio, trazia notícia ruim. Boas notícias não vinham por telegrama com a mesma freqüência com que as más chegavam. Más notícias, não, essas sempre fporam rápidas; com o telegrama, elas passaram a voar na velocidade da luz. Por alguma razão esquisita, as pessoas parecem achar que boas notícias podem esperar. Já as más, por menos relevantes que sejam, por menos que você possa fazer em relação ao fato que elas contam, precisam ser ditas com urgência. E para isso inventaram o telegrama.

O mais próximo da sensação causada pela chegada de um deles, hoje, é a sensação de alerta que se tem ao ouvir os acordes da vinheta do plantão do Jornal Nacional. Vinheta que hoje, mesmo vulgarizada em toques de telefones celulares, causa o mesmo desconforto instintivo, a mesma sensação de urgência, de acontecimento importante. Mas há uma diferença, e é por isso que o telegrama não tem nada, hoje, que se possa comparar a ele: o telegrama era algo pessoal, urgente. Dizia respeito a você, diretamente. O plantão do Jornal Nacional diz apenas que uma pessoa que você não conhece se fodeu, ou uma catástrofe aconteceu — e aí muitas pessoas que você não conhece se foderam. É uma má notícia, também, mas menos má porque é impessoal, não lhe afeta diretamente.

Não que isso signifique algo hoje. Tudo isso pertence a uma era atrás. O telegrama foi destruído pelo telefone e pela internet. Em um mundo em que quase todos têm celular, ficou mais fácil comunicar-se com a urgência que o telegrama implicava, e muito mais. E se o telefone não tinha a capacidade de dar um caráter definitivo às coisas, faltando a ele a solidez e inevitabilidade da palavra impressa, o e-mail representou o golpe de misericórdia.

Não foi um processo linear ou imediato, mas foi constante. Há uns 30 anos, se alguém — mesmo no Brasil, que já tinha um dos sistemas de telefonia mais avançados e abrangentes do mundo — queria falar com uma pessoa de alguma cidadezinha no interior da maioria dos Estados, ligava para o posto de serviços da companhia telefônica na cidade ou povoado. De lá mandavam alguém chamar o cidadão em questão: “Zinho, vai ali chamar Neco de Cotinha que tem uma moça de João Pessoa querendo falar com ele.”

Se o telefone celular conseguiu acabar com isso, destruir o telegrama foi, então, como tirar doce da boca de criança. Ele se tornou redundante. É por isso que vou guardar esse que acabei de receber. Daqui a alguns anos quero mostrar a minha filha o que era esse negócio já esquecido, da mesma forma como ainda guardo um aerograma como os que mandava para minha avó. Eles ainda têm a mesma cor, laranja, e com a sua praticidade já prenunciavam a decadência da carta pessoal escrita à mão. Talvez, com um telegrama, eu consiga explicar o que ele significava, e dar a ela uma noção específica de tempo e espaço que a ubiqüidade da informação suplantou para sempre. Mas duvido que ela se importe com isso. O telegrama acabou, não vai fazer falta, e PT saudações para ele.

De novo D. João

E D. João VI voltou à minha cabeça essa semana. Ainda aquela questão sobre a genialidade estratégica dele, que tanta gente parece ter como certa.

O que define um estrategista genial é a capacidade de ver o que ninguém vê e definir as táticas necessárias para concretizar essa estratégia. Ele está à frente dos outros. Estrategista genial era Lênin, por exemplo, que no comecinho do século passado percebeu que havia uma brecha na teoria marxista e que uma revolução socialista poderia ser feita em um cu de mundo como a Rússia, queimando a etapa do desenvolvimento capitalista, e se mandou para a Estação Finlândia.

Por outro lado, em nenhum momento D. João compreendeu que, diante do estado de Portugal e das possibilidades do Brasil, a correlação de forças que caracteriza as relações entre uma metrópole e sua colônia poderia ser invertida.

Estrategista genial D. João seria se, confrontado pelas Cortes Portuguesas, se revelasse um monarca magnânimo e concedesse graciosamente a independência a Portugal. Ele poderia até anistiar a terrinha da indenização que o Brasil, tendo sido outro o desenrolar da história, teve que pagar à metrópole.

D. João não podia fazer isso porque era e se sentia português, e era incapaz de ver além disso. Em nenhum momento a sua lealdade, o seu compromisso e a sua identidade estiveram fora de Portugal. Talvez não fosse isso o que a maior parte dos portugueses deixados na mão de Junot pensava, mas para D. João essa era uma das verdades absolutas da vida: ele era português, e Portugal era o centro do seu mundo. Essa visão arraigada, claro, não lhe impediu de ver o óbvio: sua escolha pela Inglaterra em detrimento de Napoleão foi feita em função do fato simples de que Portugal dependia em praticamente tudo do Brasil. O futuro, do ponto de vista da importância econômica entre os dois países, estava aqui. Portugal, àquela altura, jamais poderia ser maior do que era. O Brasil, por sua vez, sozinho poderia ir além dos mais alucinados sonhos de Camões. No entanto, nem essa percepção lhe fez tomar a decisão que seria mais acertada

(Antes que alguém cite inadvertidamente a Revolução Americana como exemplo comparativo de qualquer coisa, é bom lembrar que essa estratégia não daria certo para a Inglaterra. Embora a velha Albion tenha lutado ferozmente para manter seus domínios americanos, naquele momento avançava com rapidez na invenção da revolução industrial. Ao bom rei Jorge, caso forçado a escolha semelhante, valeria mais a pena manter a Inglaterra que um amontoado de 13 colônias que, afinal, basicamente produziam tabaco. Além disso, os Estados Unidos são uma invenção americana: aquelas 13 colônias expandiram seu território e criaram a maior potência do século XX comprando e roubando terras de espanhóis, franceses, mexicanos, russos e, principalmente, índios. O Brasil é uma decididamente uma invenção portuguesa.)

O problema em todos os revisionistas que tentam resgatar a imagem de D. João VI é que exageram na dose e caem no erro oposto. Certo, El Rey não era de todo desprovido de talento; o problema está na confusão acerca de sua natureza. Se D. João tinha talentos, não estavam na capacidade estratégica: estavam na política.

Nisso, todos os relatos concordam: D. João sabia lidar adequadamente com as circunstâncias — o que certamente fez no Brasil, negociando com inteligência as relações entre a elite brasileira e a nobreza portuguesa, ainda que de sua forma hesitante e reativa. Esse deve ser um traço estilístico dos Bragança: é algo que D. Pedro II, outro estadista luso-brasileiro injustamente admirado, também fez sistematicamente ao longo de seu reinado, trocando gabinetes regularmente para manter o equilíbrio de forças e uma estabilidade que lhe beneficiava. O que D. João sabia era interpretar as correlações de força ao seu redor — ou seja, era um bom tático. É isso que faz um bom político. Algo diferente do que faz um bom estrategista, que é simplesmente ver mais longe o que poucos veem.

Em sua história de fuga e rendição, o lance realmente genial de D. João se daria em 1821 quando, ao ver que a elite brasileira estava querendo fazer a independência, aconselhou seu filho a tomar a frente de um movimento pelo qual a família real não era minimamente responsável. Esse senso de oportunidade, se olhado com isenção, é digno de admiração.

Mas isso é política. É a capacidade de se posicionar diante de uma situação apresentada e tentar tirar o melhor dela. D. João era um bom político, de uma estirpe e um estilo que definiu a cultura política brasileira. Só que isso não faz dele um grande estrategista.

***

Essa postura diante de D. João me parece se dever a um certo “modo carioca” de olhar o Brasil, derivado da permanência da cidade como capital econômica, cultural e política ao longo de quase dois séculos. Porque a vinda da família real foi tão importante para o Rio, deveria ter sido na mesma medida para o país inteiro, também.

Por causa dessa presunção se chega a conclusões absurdas. Começam confundindo a renovação de costumes trazida pela chegada dos Bragança com renovação social, o que não é necessariamente a mesma coisa. Além disso, tem gente que credita à vinda da família real a continuidade da unidade territorial brasileira. No post anterior sobre o assunto, o Hermenauta de saudosa memória lembrou que deveríamos considerar a hipótese de a América portuguesa ter se dividido, como aconteceu com a espanhola.

O André Kenji lembrou que há diferenças significativas que levaram à fragmentação do império espanhol e do sonho bolivariano. Que os espanhóis mantinham colônias autônomas, e enfrentavam grandes obstáculos geográficos, como os Andes, algo diferente da situação brasileira.

Mas tem mais. Muita gente olha para a Confederação do Equador e diz que se não fosse a presença da família real no Brasil, a pressão pela independência e as muitas diferenças regionais fatalmente fariam com que a colônia se subdividisse em uma série de republicazinhas bolivarianas. Bobagem.

Essa atitude centralizadora diante de movimentos separatistas já era parte da administração brasileira antes da vinda da família real — e os pedaços de Tiradentes espalhados entre o Rio de Janeiro e Ouro Preto confirmam isso. Se a Inconfidência Mineira não precisou da presença de D. João tomando banhos no Caju para ser esmagada exemplarmente, tampouco precisaram os tantos outros movimentos que se deram depois.

Foi a formação de uma certa elite administrativa brasileira que garantiu a unidade territorial do Brasil. É engraçado que as pessoas deixem de lado o fato de que essa unidade foi seriamente ameaçada e mantida a ferro e fogo em um período posterior da história nacional: a Regência. Foram aqueles quase 10 anos que definiram de uma vez o que seria o país, quando movimentos importantes como a Cabanagem, a Sabinada, a Balaiada, mesmo a Revolução Farroupilha foram combatidos e vencidos. Meio século depois, a lembrança dessa época certamente foi fundamental para que o país cometesse o crime genocida de Canudos.

Se a alguém se deve o tamanho do país, seria antes ao Padre Feijó que a D. João VI.

28 anos depois

Até ontem, fazia quase quatro anos que eu não via um jogo da seleção brasileira de futebol. O último tinha sido Brasil e França durante a Copa de 2006. Não senti falta.

Mas ontem a ESPN exibiu o jogo Brasil x Itália, de 5 de julho de 1982, no estádio Sarriá, em Barcelona.

Fazia 28 anos que eu não assistia àquele jogo.

E de repente me vi gritando como se o jogo fosse o de uma final atual de Copa do Mundo.

Me vi xingando Serginho cada vez que ele pegava na bola e fazia alguma besteira.

Me indignei de novo ao ver a camisa rasgada de Zico no pênalti que o juiz israelense não deu.

Me irritei com Cerezzo nas duas bobagens que ele fez e que acabaram resultando em gols.

Tive a mesma sensação de desagravo que tive há 28 anos, ao ver Zico caminhando com a bola em direção a Gentile, mostrando quem afinal tinha o respeito da bola.

E me emocionei novamente ao ver as veias saltadas de Falcão na comemoração do segundo gol do Brasil. Aquela foi uma das belas imagens da copa, a mais bela para mim, e a Placar da semana seguinte estampou essa foto.

É preciso um certo grau de loucura para fazer isso, torcer novamente por um jogo tão antigo e do qual você sabe o resultado. A loucura é ainda maior porque eu sequer tenho esse amor todo ao futebol, posso passar anos sem ver um jogo, isso não me faz falta, não mais. Além disso, são 28 anos, tempo suficiente para fazer com que tudo isso tivesse se tornado uma lembrança amorfa e insípida.

Mas aquele maldito Brasil x Itália de 5 de julho de 1982 não é apenas um jogo de futebol, nunca será. E agora, depois de perceber como fui capaz de fazer papel de idiota, eu tenho a certeza de que jamais vou conseguir ver aquele jogo como veria novamente qualquer outro. Ainda fico angustiado por não entender como o Brasil continuou deixando Paolo Rossi livre, em vez de fazer com ele o que Gentile tinha feito com Zico — sem bater tanto, claro. O ódio ao camisa 20 da Itália continua; tambem a Serginho que perdia gols feitos; a Cerezzo que apesar de craque errou feio como Clodoaldo em 70, mas que não conseguiu se recuperar e ainda errou mais uma vez; ao juiz filho da puta que não deu um pênalti óbvio demais. E a cada bola chutada para o gol me peguei torcendo para que ela entrasse, que talvez ainda houvesse uma chance de mudar a história, que aquilo estava acontecendo novamnete naquele momento e tínhamos finalmente a nossa chance de redenção.

Mas a bola nunca entrou, e o Brasil perdeu de novo para a Itália por 3 a 2, três gols de Paolo Rossi

Aquela é a seleção dos meus sonhos, a melhor seleção cujos jogos eu vi. Não vi os de 1958 nem de 1962, não posso falar deles. Mas vi todos os jogos do Brasil na Copa de 1970, e apesar de reconhecer o talento absurdo daquele time — um time com Pelé, Tostão, Gerson, Rivelino e Jairzinho? Pelo amor de Deus –, eu não vejo no seu futebol tanta beleza de conjunto, tanta perfeição quanto pude ver na seleção de 1982. Aquele time tinha o mesmo carinho pela bola que a gente vê na Copa de 1970, mas era ainda melhor porque o futebol tinha evoluído, tinha ficado mais rápido, e porque o time inteiro jogava com uma harmonia que eu nunca mais veria. Diziam e dizem que aquele time jogava por música, e é verdade. Que time lindo Telê montou; e quem não viu aquela seleção jogar não sabe o que é futebol, e nunca saberá, não importa quantos campeonatos brasileiros, italianos ou espanhóis assista.

Tem gente que diz que se o Brasil tivesse ganhado aquele jogo a história do futebol seria diferente, o jogo não teria ficado tão feio. Eu tenho minhas dúvidas: a evolução do futebol independe de qual seleção ganhou tal Copa. O futebol seria o que é hoje independente de uma vitória brasileira. O Brasil ganhou em 1958, 1962 e 1970 e nem por isso o futebol europeu mundial virou uma beleza de se ver.

Mas a minha história seria diferente se o Brasil tivesse vencido aquele jogo e aquela copa. E eu certamente não ficaria, em 2010, gritando feito um idiota diante de um jogo que aconteceu há 28 anos.