Sobre as manifestações em Londres

Durante toda a última semana, os tablóides de Londres — especialmente aqueles dados de graça no metrô, como o London Paper e o London Lite — se esforçaram ao máximo para criar um clima de caos na cidade, referente aos protestos anunciados durante a reunião de cúpula do G20, hoje.

Se referiam aos protestantes como anarquistas, anteviam tumultos e violência. As tentativas de instaurar um clima de terror chegaram ao ponto de interpretar literalmente as provocações — nitidamente exageradas, com ameaças demorte a banqueiros e etc. — de um professor universitário que faz parte de um grupo de ativistas chamado G20 Meltdown como gravíssimas ameaças. Londres é uma cidade que ainda não superou completamente os atentados terroristas de alguns anos atrás no metrô; a atitude dos jornais foi irresponsável e canalha.

No entanto a cidade, como qualquer cidade grande, seguia normalmente a sua vida.

Nos pasquins, o encontro dividia as atenções com a cobertura da morte de uma tal de Jade, que participou de um Big Brother, saiu depois de ter dito uma frase racista (como me informou a Carol) e então descobriu que tinha câncer, tornando-se uma espécie de namoradinha da Inglaterra e transformando os ingleses em uma nação de necrófilos; com Madonna querendo adotar uma criança em Malawi; e com Jaqui Smith, ministra que pagou umas contas de filmes pornô na TV por assinatura com dinheiro público. Enquanto isso, Gordon Brown tentava passar uma imagem de força dizendo que seria capaz de convencer os outros países a regularem melhor o sistema financeiro internacional, como se países como o Brasil precisassem disso e como se o Partido Trabalhista não estivesse no poder há 13 anos, sempre apoiando tudo o que Bush fazia.

Goste-se ou não, esses pasquins têm uma grande influência sobre a formação de opinião na cidade. Em resposta ao clima que tentaram criar, o prefeito de Londres, em entrevista à BBC anteontem, se viu forçado a reafirmar que a polícia de Londres não iria tolerar violência, mesmo deixando claro que esperava que as manifestações fossem pacíficas. Bancos e lojas no centro da cidade colocaram tapumes em suas portas e janelas — e a área em torno do Banco da Inglaterra, de repente, ficou parecendo Salvador no carnaval.

Um dos pontos de concentração seria a Torre de Londres. No entando, quando cheguei lá me senti transportado 40 anos no tempo e no espaço: uns maluquinhos dançavam ao som de Bob Marley, parecendo muito distantes de qualquer coisa relacionada ao credit crunch ou à globalização. Tudo aquilo parecia Haight-Ashbury no Verão do Amor.

Na verdade eu tinha chegado atrasado: os manifestantes já tinham ido para a região em volta do Banco da Inglaterra — provavelmente a região mais feia da cidade, a que mais lembra São Paulo. Quando cheguei lá, três fotógrafos editando suas fotos editavam suas fotos em computadores, numa das tantas Starbucks das proximidades. A manifestação já lhes tinha dado um bom material, mesmo apenas no seu início. Eram fotos de gente alegre, tipos que caberiam bem numa festa a fantasia.

A primeira coisa que se notava era o barulho dos dois helicópteros que se encontravam parados sobre área do Bank of England, filmando a manifestação e garantindo o trabalho dos policiais. Um barulho ininterrupto, urgente, que ajudava a criar um certo clima de tensão aliado ao gigantesco número de policiais que isolavam a entrada do banco.

No entanto a multidão parecia alheia a tudo isso. O que se via era um grande desfile de pessoas que estavam ali para se divertir e, se pudesse, marcar uma posição que não pareciam saber bem qual era. Mais que manifestação política, aquilo era no máximo um desabafo bem-humorado.

Uma equipe da NHK japonesa entrevistava uns garotos que carregavam uma bandeira da Itália com a incrição “Morte al capitalismo“. Lembrei dos domingos à noite e passei por trás dos entrevistados fazendo aquela dancinha do Pânico que fazia a tristeza da TV Globo. Um velhinho bêbado dançava com um punk. Meninos e meninas com roupas esquisitas e chamativas, e cabelo talvez ainda mais, passeavam para lá e para cá. Músicos tocavam jazz em uma esquina; na outra, um grupo cantava uma antiga música folk de protesto, dizendo não ia matar ninguém, enquanto se viam às voltas com um bêbado que, dançando entre eles e as câmeras fotográficas, atrapalhava a sua performance. Um garoto passava com a máscara de “V de Vingança” e uma camisa com uma foto de Che Guevara. Até Jesus Cristo apareceu por lá, prtestando contra os mercadores do templo — qer dizer, contra os agiotas.

E em meio a tudo isso, as pessoas tiravam fotografias. Talvez seja essa a mais forte impressão que fica da manifestação: esse foi um acontecimento absolutamente midiático. Praticamente todos estavam tirando fotos, com celulares, máquinas point and shoot como a minha e até mesmo máquinas SLR semi-profissionais. Tudo isso sem contar jornalistas. Todos queriam registrar a festa e a sua presença ali. A manifestação era, na verdade, um grande desfile.

Desde o início dava para perceber que havia algo de bizarro na manifestação. Em uma das cidades mais multiculturais do mundo, com pessoas vindas de praticamente todos os continentes — há uma exuberância de sotaques e línguas em toda cidade, normalmente, mas isso era ainda mais visível ali –, pessoas reclamando contra a globalização parecem fora de lugar. Também era curioso ver os punks com tênis da Van’s de Carnaby Street — não, ao menos não tinha ninguém usando nada da Regent’s Street — reclamando do capitalismo. Um deles brandia um cartaz: “Dear gov, get the hell out of the economy” — como se grande parte do problema não fosse justamente a ausência do Estado nos negócios dos banqueiros. De modo geral, a manifestação carecia de sentido, de consistência política.

Perguntei a uma policial se a manifestação estava sendo pacífica. Ela disse que sim. E imaginei que os policiais iriam sair dali decepcionados, sem ter batido em ninguém. Afinal, eu sou brasileiro e estou acostumado a isso.

Mas a coisas não continuaram nesse clima de parada gay durante muito tempo. De repente, pessoas começaram a ser presas, como um japonês com uma câmera de vídeo profissional. (Pude tirar as fotos que quis da prisão; em nenhum momento os policiais fizeram algum gesto para que parássemos. A única coisa que um deles pediu foi que desobstruíssemos a passagem do beco onde estávamos.) Os ânimos estavam começando a se alterar. Punks e anarquistas, mais organizados e motivados, começaram a provocar os policiais, a forçar um confronto que a maioria das pessoas ali não queria.

Eu já estava indo embora quando a multidão começou a gritar, como em uma palavra de ordem: “Shame on you, shame on you, shame on you!” Me voltei para ver um rapaz correndo do centro da multidão, amparado pelos amigos. Sua cabeça sangrava. Era o sinal de que a festa estava acabando.

E acabou. Logo depois começaram os atos de vandalismo. Alguns confrontos isolados entre manifestantes e polícia, e uns poucos marginais que depredaram e saquearam o Bank of Scotland — que todos já sabiam ser o alvo preferencial dos manifestantes. No entanto, a se acreditar na cobertura da BBC e do único jornal a circular até agora, o Evening Standard, o caos foi generalizado e se instalou por toda a Londres.

Se não é uma impressão errada da manifestação, essa abordagem é, no mínimo, um superdimensionamento de seus aspectos negativos. Para a maior parte dos manifestantes, esses acontecimentos não podiam sequer se vistos. Faltou também dizer que a cidade continuou seu ritmo como se nada estivesse acontecendo. Que duas ou três ruas depois do Bank of England, era impossível perceber que havia uma manifestação nas proximidades. Que tudo aquilo foi pequeno, e que a maior parte das pessoas estava ali se divertindo.

Mas a cobertura da imprensa não foi apenas negativa. Há algumas qualidades. Eu estava saindo da manifestação e indo em direção ao metrô quando vi o Evening Standard, fresquinho: trazia na capa uma foto de um manifestante no chão. A manifestação estava apenas começando. Para quem está acostumado ao ritmo lento da cobertura jornalística brasileira, foi um choque. Esse tipo de rapidez, de urgência, não existe no Brasil.

Assim que eu tiver tempo e um computador decente — ou seja, quando voltar para casa — eu coloco as fotos da manifestação aqui ou no Flickr.

Começa a campanha contra Dilma Rousseff

A revista Época desta semana traz uma matéria com chamada de capa sobre as cirurgias plásticas a que a ministra Dilma Rousseff teria se submetido. Faz um detalhamento das operações, além de investigar suas razões e possíveis conseqüências políticas, e se justifica dessa forma:

Num comportamento inapropriado, já que todo evento que tem implicações com a saúde de um ministro deve ser tratado com transparência, sua assessoria nem sequer confirmava a realização da cirurgia.

Essa afirmação da Época é um exemplo claro de hipocrisia e de segundas intenções. A diverticulite do presidente Tancredo Neves era de interesse público. A saúde frágil do vice-presidente José Alencar, também. Cirurgias plásticas de ordem meramente estética, como as feitas por Dilma, não são questão de saúde e não interessam a ninguém.

Não se costuma ver na mídia perguntas sobre os cabelos tingidos de José Sarney, ou mesmo a retirada das bolsas sob os olhos de José Serra e de Fernando Henrique Cardoso — a não ser quando servem para justificar ataques como esse. O passado de Dilma Rousseff como guerrilheira e opositora da ditadura militar, ainda que remoto e pouco relevante hoje, é uma informação importante para o cidadão brasileiro. Se ela levantou ou não uma pálpebra, é no máximo assunto de tablóides de fofocas de novela. É a esse nível que a Época se rebaixa quando explora esse assunto.

Mas a investida contra Dilma tem razão de ser: hoje, ela é reconhecida como a sucessora potencial de Lula.

A grande esperança da oposição, até agora, tinha sido a aposta na ausência de um candidato forte para suceder Lula. Finalmente reconhecendo que, mais que um político ou estadista, Lula é um dos maiores heróis nacionais na história, costumava ver como vantagem a idéia de que tinha candidatos mas não tinha programa, enquanto o governo tinha programa mas não tinha candidatos. (A propósito, este blog sempre achou que é mais fácil arranjar um candidato do que desenvolver um programa.)

O cenário era ainda mais promissor para a oposição porque, ao final das eleições de 2008, analistas políticos se apressaram em afirmar que o tão temido poder de transferência de votos de Lula era muito menor que o imaginado, já que o governo perdeu as eleições em várias capitais.

Mas uma eleição municipal não é a mesma coisa que uma eleição presidencial em termos de capacidade de transferência de votos do presidente em exercício. Cada dia mais atento, o eleitor brasileiro sabe diferenciar essas esferas. Uma eleição municipal é basicamente dominada por temas e interesses locais. Uma eleição presidencial tem forçosamente como referencial o atual mandatário e a avaliação que se faz do seu governo.

É por isso que na eleição presidencial de 2010 nós teremos Lula dizendo ao povo brasileiro: “A Dilma sou eu na presidência”. E por Lula na presidência entenda-se o cada vez mais forte e eficiente sistema de distribuição de renda simbolizado pelo Bolsa Família. A condução firme da política econômica. Uma posição internacional cada vez mais visível, sólida e influente. O Brasil que Lula vai deixar em 2011 é um país melhor do que aquele que o elegeu. Seus índices de popularidade alarmantes — para a oposição, ao menos — são o melhor exemplo disso. Em 2010, o que se terá será a disputa entre o modo de governo capitaneado por Lula e as alternativas pouco simpáticas às classes mais baixas representadas pelo PSDB e pelo PFL.

Hoje a oposição deposita suas fichas em José Serra e Aécio Neves, governadores de dois dos mais importantes (e eleitoralmente densos) Estados brasileiros. Guardadas as devidas proporções e diferenças, esperam em Aécio um novo Collor para bater Brizola, como em 1989, e em Serra um novo Fernando Henrique para vencer um Lula, como em 1994. Seria o bastante, caso o governo continuasse sem um candidato forte e sofresse o que normalmente é um desgaste natural depois de 6, 7 anos de governo.

Mas o fortalecimento crescente de Dilma começa a mudar esse panorama.

Primeiro, Dilma foi levada na conta de boi de piranha, uma pré-candidata destinada a servir de alvo da oposição enquanto o governo preparava seu candidato real. Essa era, por exemplo, a opinião deste blog. Talvez fosse uma opinião equivocada. Porque intencionalmente ou não, Dilma Rousseff se consolidou de maneira surpreendente. Tem cada vez mais pontos positivos a seu favor, e se firma a cada dia como uma boa receptora dos votos do presidente Lula. Como possível candidata, vai se mostrando um nome ao mesmo tempo leve e sólido, sem as resistências que, por exemplo, um Ciro Gomes encontraria.

Dilma é uma mulher, o que por si só já representa um sopro importante de renovação. É uma política com ampla experiência administrativa e comprovadamente competente. Atravessou incólume o escândalo do mensalão, e não paira nenhuma suspeita sobre sua honestidade — mesmo no comando de um orçamento gigantesco, como o do PAC. Ou seja, a cada dia se consolida mais como o nome ideal para substituir o governo mais bem-sucedido da história democrática do país. É infensa até ao mais idiota dos argumentos contra Lula:ela tem mestrado em economia.

A matéria da Época é apenas uma das primeiras das muitas que virão por aí. Logo depois, na última página da revista, assinada pela Ruth Aquino — uma espécie de Lya Luft da Época, uma boa tradução daquele pensamento de classe média do Leblon — a matéria mostra indiretamente a que veio:

Para salvar vidas, as estradas federais precisam de uma plástica radical com a da Dilma.

Vem mais por aí. A partir de agora, Dilma Rousseff vai ser alvo de chumbo grosso. As eleições de 2010 estão começando.

Rafael Galvão, agora especialista em Nostradamus

Parece brincadeira.

Há alguns anos, o Marcus repassou por e-mail — e por sacanagem — uns trechos de Nostradamus como uma profecia sobre a tsunami que tinha acabado de assolar uma parte do Índico. Eu fiz um post brincando com as centúrias do grande apotecário e picareta francês. E ainda procurei mais algumas para provar que com boa vontade, elas podem significar o que quiser.

Entre as centúrias que achei e que achei interessantes, estava uma que eu podia “interpretar” facilmente:

To an old leader will be born an idiot heir,
weak both in knowledge and in war.
The leader of France is feared by his sister,
battlefields divided, conceded to the soldiers.

Meu comentário na época foi esse: “É Bush. Quer apostar que é Bush?” Podia ter dito também que os soldados eram a Halliburton ou a Blackwater.

Agora eu acho que talvez Nostradamus estivesse certo. E se estava, agora me intitulo o mais novo hermeneuta no sujeito, vigarista de séculos atrás mas que, ao menos e sem saber, definiu antecipadamente George W. Bush.

Os que defendem o genocídio palestino

A coluna da Cora Rónai em O Globo, também publicada em seu blog, é um insulto à memória dos palestinos assassinados por Israel e uma ofensa a quem tem algum respeito pela humanidade.

É uma das mais claras e veementes defesas de Israel na atual crise — e nisso é preciso admirar a senhora, porque é preciso coragem para tentar justificar o indefensável, fechar os olhos para a carnificina e mentir descaradamente. Abaixo seguem alguns trechos comentados dessa coluna/post. O texto integral está no blog da Cora Rónai.

No momento, nada que se diga ou se mostre em favor de Israel terá qualquer efeito. Para além da presente guerra propriamente dita, há outra que, há tempos, foi perdida pelo país — cuja capacidade de fazer propaganda, ao contrário do que acredita tanta gente, é inversamente proporcional ao seu poderio militar.

A Cora Rónai está falando de algum país que não conhecemos. Há 40 anos Israel é um país opressor. Poucos países contaram com tamanha boa vontade quanto Israel — e para isso inverteram valores, chamaram de “luta pela existência” o que era apenas opressão. Foi necessário que anos de abusos, de invasões, de limpeza étnica passassem para que uma parte do mundo se conscientizasse do crime contra a humanidade que Israel vem cometendo há décadas. E se isso não é boa propaganda, eu não sei o que é.

Além da amizade com os Estados Unidos, vilão preferido de meio mundo, e do questionável rótulo de “direita” que lhe foi pespegado, há uma série de fatores culturais e políticos que atuam permanentemente contra Israel. Para ficar apenas num ponto de óbvio apelo emocional, seus mortos e feridos nunca são filmados ou fotografados, salvo em hospitais ou caixões e, ocasionalmente, pela imprensa estrangeira. Os mortos tampouco são exibidos em procissões; eles tem sido, atentado após atentado, guerra após guerra, mortos que se contam em números – mas o que é um número diante da foto de uma criança morta?!

Se as fotos de crianças assassinadas por Israel não sensibilizam a Cora Rónai, talvez os números sensibilizem.

Até ontem pela manhã, eram 1054 palestinos mortos desde o início da chacina. Desses, 100 eram mulheres. 255 eram crianças. Outros 4870 ficaram feridos.

13 israelenses morreram até agora. 10 militares, 3 civis.

É um insulto à inteligência de qualquer pessoa sequer pensar comparar as duas situações.

(Mais dados e análises excelentes podem ser encontrados no Idelber, que vem fazendo uma cobertura brilhante do genocídio perpetrado por Israel na Palestina.)

Ao mesmo tempo, ao longo dos últimos anos, quando foguetes do Hamas eram lançados sobre o sul de Israel, as crianças iam para abrigos subterrâneos, e não para o meio da rua, providencialmente armadas com estilingues. Ora, a foto de uma escola (vazia) destruída por um “míssil caseiro” (seja isso lá o que for) não tem uma fração do impacto da foto de um garoto de estilingue diante de um cenário de destruição.

A Cora Rónai deve saber, por exemplo, que o Hamas voltou a lançar foguetes depois que Israel, mais uma vez, quebrou o cessar-fogo.

Mas não interessa a ninguém que se preste ao papelão de defender Israel, neste momento, lembrar da história da região. Em vez disso, a torção de fatos, os sofismas primários, as imagens fáceis.

Isso não justifica matança alguma, seja de um lado, seja de outro; mas o fato é que criou-se, assim, a singular percepção de um povo intrinsecamente mau e sanguinário, que ataca criancinhas por pura maldade, contra um povo intrinsecamente bom e coitado, que só explode civis por falta de escolha.

O último argumento dos defensores dos crimes de Israel é esse: o maniqueísmo bobo, piegas, e um eterno colocar-se no papel de vítima. Mas a Cora está errada. A máquina de propaganda isralense criou justamente a imagem contrária: eles eram um país vítima enquanto os palestinos eram terroristas — embora falar em “matança de um lado e de outro”, dados os números, seja um despautério. Uma frase de Golda Meir não em sai da cabeça: “Depois do que os nazistas fizeram conosco, podemos tudo”. Agora Israel mostrou o que acha que pode.

Por ser um país desenvolvido cercado de vizinhos em diferentes estágios de “civilização”, Israel paga, guardadas as devidas proporções, o preço que a classe média paga, no Brasil, em relação à criminalidade nas comunidades carentes: para uma certa visão míope, é sempre a culpada, porque, em tese, nessa forma enviesada de análise, os bandidos são sempre inocentes – são apenas pobres reagindo à desigualdade social (o que, claro está, é uma baita ofensa à imensa maioria dos pobres, que sofrem na miséria sem nunca pensar em delinqüir). Enquanto isso, os verdadeiros culpados pelas desigualdades, lá como cá, não são mencionados nem en passant – e, ainda que o fossem, continuariam onde sempre estiveram, ou seja, nem aí.

Esse parágrafo é tão podre que dá vergonha de comentar. Ela define Israel como uma ilha de civilização em meio a um mar de barbárie; é a inveja do desenvolvimento de Israel a causa de todo esse caos. E a isso junta os seus próprios preconceitos de classe, o esnobismo profundo de certa elite — ela diria intelligentsia, talvez — brasileira. O Abundacanalha já falou sobre esse trecho. Não é preciso dizer mais nada.

Já os líderes mundiais que não perderam tempo em se declarar contra a “reação desproporcional” de Israel pouco estão se lixando para o sofrimento das vítimas. Se a sua preocupação fosse realmente humanitária, o Sudão, por exemplo, não sairia das manchetes; só que as vítimas do Sudão não dão ibope. Quando a China entrou de sola no Tibete, ainda outro dia, ouviram-se, no máximo, ligeiros resmungos protocolares – e, ainda assim, só porque o Dalai Lama é um véinho carismático, com bom transito em Hollywood.

Dá para justificar um erro com outro? Eu acho que não. Tentar desviar a atenção para o Sudão é uma atitude covarde e suja. E mais que isso, mostra a impossibilidade de justificar os atos de Israel. É o homicida falando do latrocida.

Isso sem falar no antissemitismo que, invariavelmente, aproveita para dar as caras quando tem a ótima desculpa de uma guerra para acobertá-lo. “Israelense” e “judeu” não são sinônimos; há incontáveis cidadãos israelenses que não são judeus, como há milhões de judeus que não são israelenses. Ainda assim, os dois termos se equivalem para efeitos de noticiário, de artigos, de posts enraivecidos em blogs. Seria até compreensível se a mesma equivalência servisse para “palestinos” e “muçulmanos”, mas esta é sempre cuidadosamente evitada. Às vezes, o uso (ou a omissão) das palavras revela muito mais do que o seu significado.

Qualquer pessoa que já tenha questionado as atitudes de Israel já foi chamado de anti-semita (ou antissemita, como querem os novos). A Cora apenas repete os mesmos argumentos de sempre. Mas esquece de dizer que os termos “judeu” e “israelense” parecem muitas vezes equivalentes porque Israel é um Estado formado sob a premissa judaica.

Apoiar os palestinos, o Hamas, o Hezbollah e os países árabes de modo geral, é chique, é bacana e é uma garantia de popularidade com a soi disant “esquerda”. Israel não terá o apoio da intelligentsia – que em geral é de uma extrema covardia e ignorantsia – nem se for completamente aniquilado, como quer o Hamas. Aí ainda vamos ouvir o “fizeram por onde” que tanto se disse em relação ao ataque ao WTC; as Nações Unidas vão fazer tsk, tsk, o Papa vai condenar vagamente o exagero – e estaremos conversados.

Até agora, não vi ninguém apoiando o Hamas ou o Hezbollah. No máximo, o que se tenta é compreender como a opressão israelense levou uma parcela do povo palestino à radicalização e à resistência. O Hamas não é simpático a ninguém; mas queira a Cora Rónai ou não, a sua luta é hoje a luta de todo um povo. É uma resistência legítima — assim como era legítima a resistência judaica anterior à fundação de Israel. Mas os judeus que explodiam hotéis eram heróis, como Ben Gurion; os palestinos que tentam resistir à ocupação por um país que pode chegar ao nível de genocídio a que Israel chegou são terroristas.

Mas a verdade é que eu nem devia estar falando sobre isso. Minha opinião é descartada de saída em qualquer discussão a respeito do Oriente Médio: como venho de uma família dizimada pelo Holocausto, sou suspeita e, portanto, não posso me manifestar. Cansei de ouvir isso até de pessoas supostamente inteligentes – e, de cansada, não discuto mais. Se o que você diz não vale nada a priori, o mais sensato é seguir os conselhos do professor Higgins, e falar apenas sobre o tempo e a saúde.

Então a Cora Rónai não pode falar? Mentira. Tanto pode que está falando. E pode muito mais que a “internet” da qual ela reclama, porque fala do alto de uma coluna em um dos maiores jornais brasileiros. Ela pode e faz. Isto aqui vai ter algumas centenas de leitores. A Cora Rónai tem centenas de milhares. Se há um tipo de pessoa que não pode posar de vítima é uma jornalista tarimbada e com anos de experiência.

E ela fala apelando para o velho argumento do Holocausto, lugar comum para todos que tentam justificar as atrocidades israelenses. Mas o Holocausto já não justifica Israel. Deixou de justificar, na verdade, há muitos anos, quando Israel violou o acordo que possibilitou a sua criação.

Como é, tem feito muito calor por aí?

Tem, dona Cora. Mas um calor menor que o das bombas explodindo na Palestina.

Os programas eleitorais de Marta e Kassab

Vi o programa eleitoral do Kassab e o da Marta na última sexta-feira. E Deus do céu, como o programa do Kassab é tão melhor que o da Marta. Tão bom que ele nem precisaria dessa campanha de imprensa em sua defesa que se vê agora, primeiro com o caso das insinuações acerca de suas opções sexuais, agora com o possível depoimento de Nicéia Pitta — dois eventos muito diferentes entre si, mas tratados da mesma forma pela imprensa.

Segundo após segundo, o que se vê no Kassab é uma afirmação constante do valor da sua obra. Mostra, em linguagem clara e eficiente, o que ele fez e como isso se transformou em benefícios para o povo paulistano. Dosa corretamente o número de aparições do candidato. Humaniza a campanha com exemplos de pessoas cujas vidas melhoraram por causa do seu trabalho à frente da Prefeitura.

O programa da Marta, em vez disso, parece perdido, como se lhe faltasse um eixo suficientemente claro. É difícil fazer um julgamento minimamente correto de uma campanha eleitoral a partir de apenas um programa, mas o da Marta parece ter defeitos estruturais que provavelmente não se limitaram à sexta-feira.

A impressão que o programa de sexta passou é de que Marta parece ter medo. Não vi nenhuma grande reafirmação dos méritos do seu governo; apenas uma tentativa de fazê-la parecer mais simpática conversando com o povão na rua — e uma simpatia forçada e desnecessária, porque Marta não parece muito à vontade perto do povão.

Pior, não vi nenhuma tentativa séria de desconstrução séria e conseqüente da administração Kassab. É inadmissível, por exemplo, que o programa de Marta não tente aproveitar as crises recentes de segurança em São Paulo. Tanto a greve dos policiais civis — cuja responsabilidade o Serra, de maneira competente, tentou jogar imediatamente nas costas do PT — quanto o absoluto despreparo da polícia no caso das meninas mantidas reféns pelo namorado de uma delas poderiam, sim, ser aproveitadas. É algo legítimo — aliás, muito mais legítimo que perguntas sobre as preferências sexuais de Kassab.

O Duda Mendonça diz, no seu livro “Casos e Coisas”, que quem bate, perde. Não parecem ter dito isso à campanha do Kassab, para a sua sorte. Todo o tempo ele estabelece uma comparação entre a sua administração e a da Marta. Não se furta a bater quando necessário, nem se omite quando é hora de dar alguma resposta; o segredo está no equilíbrio do tom usado e no fato de sempre bater enquanto apresenta um exemplo positivo seu.

O curioso é que, até onde sei, Kassab é situação e Marta é oposição. O papel de apontar as falhas, de desconstruir o adversário deveria ser preferencialmente dela. Não dele.

É impressionante também ver que o programa de Marta não tem emoção, não tem humor, não tem nada. Enquanto isso o texto do programa do Kassab é leve, emotivo, trabalha a experiência do paulistano sob o governo Kassab. Abusa de jingles temáticos que cumprem funções importantes, batendo em Marta com graça.

Se uma campanha eleitoral fosse uma partida de futebol, alguém poderia dizer que o programa de Kassab domina todos os fundamentos com maestria, enquanto o time da Marta se mostra perdido em campo.

E finalmente há a diferença crucial entre as imagens dos dois candidatos.

Há alguns meses, depois de ver o primeiro programa de Marta durante a campanha de 2004, reclamei que enfocavam a candidata em plano aberto, reforçando uma distância e antipatia que já vinham se tornando sua marca registrada. Mas aproximar a câmera de Marta foi pior: seu rosto é uma massa deformada de plásticas toscas e botox. A sensação de estranheza causada por aquele rosto que não move um músculo sequer ao falar é ruim, e tira a atenção do conteúdo de sua fala.

Enquanto isso o Kassab, com aquele sotaque de Chico Bento e cara de menino cabeçudo, oferece ao eleitor a confiança e a intimidade que sempre estiveram ausentes em Marta. Em vantagem por ser candidato à reeleição, Kassab transmite simplicidade e humildade. Faz o básico — admitir que não deu para fazer tudo em dois anos –, mas assume a sua responsabilidade e mostra confiança na sua própria capacidade. Já a Marta, enquanto continua com aquela lenga-lenga de dizer que “quer ser prefeita”, se refere à “sua equipe”. Outra bobagem. Equipe era necessária para Lula, que precisava se sobrepor à imagem de despreparado; agora o povo quer é alguém que possa governar direito, e pelo visto, e infelizmente, já decidiram que esse alguém é Kassab.

Sobre as opções sexuais do prefeito Kassab

A campanha da Marta Suplicy fez um comercial com uma série perguntas sobre a história e o comportamento de Kassab e o céu da mídia caiu. O assunto virou pauta grande: Marta insinuou que Kassab é gay.

O Idelber, como sempre (ou quase sempre: não devo esquecer jamais que o sujeito é um trotskista safado), faz uma análise impecável do episódio. Não há o que acrescentar a ele.

Mas eu posso dar uns pitacos, digamos, técnicos.

Ética é, ou deveria ser, atributo recomendável a qualquer campanha. Não por ingenuidade, como aquela que o pessoal da oposição cobra do governo sem nunca tê-la praticado (ingenuidade, favor lembrar, não é burrice, atributo ultimamente bastante aplicável a essa oposição), mas porque é geralmente mais eficiente. Mesmo assim, e embora eu seja o primeiro defensor da idéia de que a única ideologia de uma campanha deva ser a vitória, e que para isso você usa as armas que tiver à disposição, acho também que uma campanha eleitoral cumpre um papel cívico importante. Insinuações sobre a sexualidade de um candidato deveriam ser algo totalmente banido de campanhas. A intimidade de uma pessoa pública não interessa a ninguém.

Além disso, particularmente não gosto desses comerciais vagos demais. Parecem, sempre, covardes. Não sei até que ponto são eficazes, e certamente funcionam de maneira diferente em circunstâncias diferentes. Há jeitos e jeitos de bater e desconstruir; eu, pessoalmente, não considero esse um dos melhores. Sempre me passam a impressão de serem insidiosos demais. E embora eu possa estar errado, acho que há jeitos mais eficazes de alcançar o efeito desejado.

Convicções à parte, o mais interessante no comercial é que a lebre levantada sobre a sexualidade do Kassab faz parte de um conjunto grande de perguntas. Para a maior parte das pessoas, principalmente as classes C e D, a insinuação sobre a sexualidade de Kassab pode passar despercebida. Eles se esforçaram para ser sutis.

Mas a mídia indignada em defesa de Kassab amplificou desnecessariamente essa questão. O que era apenas um item meio obscuro virou ponto central da peça e da campanha. Talvez a equipe de Marta tenha sido sutil demais; mas contaram com a ajuda da imprensa, que na ânsia de defender Kassab bem pode ter dado um tiro no próprio pé.

Não conheço o eleitorado paulistano. Não sei como reage a insinuações sobre a sexualidade de um candidato (em Sergipe, por exemplo, elas não costumam ser bem recebidas e são contraproducentes); lembro apenas que Quércia sempre sobreviveu a essa insinuações, embora com muito menos consistência que as feitas em relação a Kassab.

Mas sei que dificilmente Kassab tomará a palavra para dizer que é hetero ou homossexual. E a discussão, se continuar, se dará em um campo desfavorável para ele — desfavorável não por sua opção sexual, mas porque ele não terá nenhum controle sobre ela. E para isso ele terá contado com a ajuda inestimável daqueles que tentavam defendê-lo.

A revista das boas notícias

No início do governo Fernando Henrique Cardoso, quando a CUT e o Sindicato dos Petroleiros embarcaram na greve mais equivocada de sua história e pela qual ainda pagam um preço amargo, sindicalistas sergipanos trocaram suas assinaturas da revista Veja — que julgavam estar fazendo, acima de tudo, mau e tendencioso jornalismo — pela revista Exame, da mesma editora Abril.

Seu raciocínio era complexo, na melhor das hipóteses. Por que sindicalistas socialistas assinaram uma revista cuja razão de ser é o capitalismo, e que sempre condenou as propostas defendidas por eles, é algo difícil de compreender. Mas fazia algum sentido:como a Exame é uma revista com linha editorial tão clara, eles talvez esperassem que fosse mais honesta. O que irrita em um órgão de imprensa e o descredencia não são suas posições políticas assumidas: são aquelas enrustidas, normalmente mais pérfidas.

O caso dos sindicalistas que assinaram a Exame aconteceu há quase 15 anos. De lá para cá o conceito de honestidade deve ter mudado um pouco.

A edição da Exame que circulou pouco antes do primeiro turno destas eleições publicou uma matéria longa elogiando o que chama de “choque de gestão” dado pela Prefeitura de Porto Alegre. A revista é só elogios para o prefeito José Fogaça, que define, em outras palavras, como um administrador competente, moderno e ético.

Então tá.

Oficialmente, ninguém pode acusar a revista de nada. É uma matéria jornalística como outra qualquer. A direção da revista achou que a administração Fogaça é realmente digna de elogios, e elogios não têm tempo para serem merecidos. Esse é um direito claro de qualquer revista. Não é comum ver em uma revista liberal como a Exame elogios tão profusos ao Estado, mas há mais coisas entre o céu e a terra do que supunha Shakespeare. O que importa é que, objetivamente, não há nada na matéria que macule a reputação da revista.

Infelizmente, a experiência ensina que esse tipo de matéria, mais especificamente em momentos críticos como vésperas de eleições, não costuma atender a critérios simplesmente jornalísticos.

Uma pessoa menos crédula que eu poderia fazer uma série de ilações sobre a oportunidade e o teor da matéria. Poderia classificá-la como parte do esforço de campanha de um candidato que se via em uma disputa acirrada, seguido por duas candidatas de esquerda que, como se veria depois, levariam a disputa ao segundo turno.

Por sua vez, uma pessoa francamente maldosa poderia dispensar todas essas palavras acima e dizer simplesmente que aquilo é descaradamente uma matéria paga. Há pessoas assim neste mundo.

Coincidentemente, logo depois da matéria sobre a excelência do governo porto-alegrense vem a matéria de José Roberto Guzzo, uma peroração sobre as mazelas do Estado.

Guzzo foi o jornalista sutilmente acusado por Mario Sergio Conti no livro “Notícias do Planalto” de receber propina — e que propina: 250 mil dólares — para veicular uma matéria favorável ao então ministro Iris Rezende. Um assessor de Rezende tentava emplacar uma matéria chamando Rezende de “o ministro das boas notícias”. Segundo o livro, a oferta foi feita primeiro a Augusto Nunes, então no Estado de S. Paulo, que a recusou. Conti insinua que foram mais bem recebidos por Guzzo, e a expressão associada ao político apareceu em duas edições diferentes da revista.

Mas isso foi nos tempos em Guzzo era diretor da Veja, uma revista que já naquela época dava mostras de ter problemas éticos, embora ainda não fosse o pasquim desacreditado de grande circulação que é hoje. Supunha-se que por se destinar a um público diferente, a Exame operasse dentro de outras esferas, longe da politicagem pura e simples. Não que seja infensa a negociações que misturem dinheiro e redação; mas seu mercado parecia ser outro.

Talvez os tempos tenham mudado, no entanto. E assim como outras revistas da Abril, a Exame, sem nada que oficialmente a desabone, parece mostrar que não está a salvo dos padrões de comportamento que estão se tornando típicos de suas co-irmãs, e é também uma revista especializada em boas notícias.

Lula e as viúvas de Fernando Henrique

Quanta mágoa, Márcio Rothstein Bacha. Quanta agressividade.

Em primeiro lugar, eu só queria corrigir uma informação sua. Você pode não ter votado em Lula, mas infelizmente ele é também o seu presidente, a partir do momento em que governa o país em que você mora. Desculpe. Você vai ter que dormir com isso, e acordar sabendo que o pau-de-arara analfabeto é o seu presidente. A vida tem dessas coisas.

Fora isso, acho fantástico quando as viúvas do PSDB vêm pedir a paternidade da política econômica de Lula. Como se tivessem inventado o dinheiro e a ciência econômica.

Vamos colocar as coisas em pratos limpos: seis anos são muito tempo, Márcio Rothstein Bacha. Em seis anos, o Brasil já teve cinco moedas diferentes — aliás, sei de um Bacha que criou duas. Sabe Deus quantos planos econômicos são possíveis nesse período. Lembro de um presidente que assim que assumiu confiscou o dinheiro de todo mundo e criou uma nova moeda, pouco mais de um ano depois do Plano Verão.

A partir do momento em que um presidente assume o seu mandato, a política econômica passa a ser dele. Se ele resolve ou não seguir um modelo anterior, é uma decisão que ele toma. Não se trata de pedir a paternidade do plano Real. Isso é de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, e vai ficar bonita no túmulo deles essa informação. O Plano Real foi fundamental para que o Brasil chegasse ao nível que chegou, sim, e ninguém é imbecil a ponto de negar isso. (A propósito, as iniciativas privatizantes de Collor também foram fundamentais para que se chegasse ao Real, e eu gostaria que sempre que uma viúva de FHC fosse catar o plano Real para jogar na cara dos lulistas lembrasse também disso. Infelizmente, têm vergonha.) Mas a política econômica atual é de Lula. Ponto final. Para desgosto das viúvas, o que vai ficar é que enquanto cada crise internacional deixava o Brasil de quatro na época de FH, o Brasil está resistindo, pelo menos por enquanto, à maior crise econômica que se viu nas últimas décadas.

Há também os saudosos da política externa. Se alguém pegar exemplares da finada Primeira Leitura, pode ver uma infinidade de exemplos disso. Aquele ministro que tirava os sapatos nos Estados Unidos era mestre nessa tática de tentativa de desmonte absoluto. Chega a ser risível uma entrevista com Rubens Ricúpero: o repórter tentando a todo custo arrancar dele uma condenação à política externa de Lula e o Ricúpero dizendo: “não, está indo bem, pode melhorar mas está indo bem…”

É como se a manada ficasse triste porque as suas previsões de que Lula iria afundar e desmoralizar o Brasil não se concretizaram. Essa manada sempre foi retrógrada; mas agora mostra definitivamente ser burra, porque enquanto o resto do mundo reconhece a importância de Lula, ela continua do alto de sua torrezinha de marfim gritando que as uvas estão verdes. Foi por isso que levaram a surra que levaram em 2006. É por isso que nestas eleições de 2008 o governo tende a sair fortalecido. Lula pode não gostar de ler, o que é uma pena — eu, pelo menos, gosto. Mas é um grande presidente. Melhor que o intelectual que ninguém lê, o FH.

O Márcio Rothstein Bacha, até pelo nome um aparente membro de uma elite que não entende por que o povo que não come não concorda com a sua visão política, mostra a mesma incapacidade que a oposição tem demonostrado nos últimos anos. Não consegue entender o que mudou no Brasil. Continua observando e analisando tudo da mesma maneira que antes.

Pior, fala do que evita conhecer. A diferença fundamental de Lula foi dar uma guinada em relação às necessidades de uma parcela da população. Nisso, o Bolsa Família (que o Márcio Edmar Bacha chama de esmola, mostrando ignorância total a respeito do programa e das necessidades de gente que passa fome, gente com a qual ele certamente não tem nenhum contato) foi fundamental, porque mudou as regras (Márcio Rothstein Bacha, dá uma olhada aqui). Até Lula, o que se tinha era uma elite governando de acordo com seus padrões e a sua distância do Brasil real. Com Lula houve mudanças significativas — mudanças que em 8 anos, ou pelo menos nos últimos 4, Fernando Henrique foi incapaz de fazer.

E não se trata aqui de esquecer o mensalão. O Márcio Rothstein Bacha tem razão ao falar das mazelas do mensalão — e nisso eu recomendo a leitura do arquivos do Idelber, que sempre teve uma postura extremamente crítica e racional a respeito disso. Houve a crise, foi um problema grave, e de custo elevadíssimo para o projeto de poder. Mas isso não significa que viúvas como o Márcio Rothstein Bacha pode falar com tanta autoridade sobre isso. Porque tampouco esquecemos a compra de votos pela reeleição, a mudança das regras em pleno vôo. (FHC e suas viúvas, certamente, jamais terão a mínima autoridade para falar em respeito à constituição ou em projeto de poder.) Também não esquecemos casos como o de Chico Lopes. Ou a farra que foi o que o Elio Gaspari chama, de maneira extremamente adequada, de “privataria”. As viúvas seguem assim mesmo. Não conseguem entender o que Lula mudou no país, investem contra o mensalão como se o governo FHC fosse uma ilha de ética neste país — o que não foi, eu posso garantir.

Há pouco tempo alguém lá nos estrangeiros elegeu Lula uma das pessoas mais influentes do século XXI. Tomara que não digam isso ao Márcio Rothstein Bacha, porque se ele já destila tanta raiva agora, só porque os botocudos reconhecem a importância de Lula, vai começar a botar espuma pela boca ao saber que o resto do mundo também pensa assim.

Meu presidente

Foi em Lula que votei pela primeira vez, e até hoje não votei em nenhum outro candidato a presidente.

Em 1989 — provavelmente 8 de novembro, mas não tenho certeza da data — nós que fazíamos a UJS puxamos uma das maiores passeatas de estudantes que Aracaju já viu — e o comício foi obrigado a parar para anunciar aos outros participantes que havíamos chegado, tamanha a barulheira que fizemos. Em 1989 eu pintei bandeiras, fiz caminhadas, panfletagens, boca de urna. Perdemos aquela eleição, infelizmente; e nós, que queríamos um novo Brasil, acabamos tendo que engolir um Brasil Novo.

Mas em 2002 nós conseguimos.

Ao longo dos últimos seis anos, assisti à oposição fazer de tudo para desacreditar o presidente que eles não conseguiram derrubar. Disseram que ele traiu seu projeto social — e ele criou o Bolsa Família e os programas de inclusão produtiva. Chamaram-no de bêbado — e a sobriedade com que conduziu o país impressionou a todos. Chamaram-no de despreparado — e com ele o Brasil passou a ter uma proeminência internacional que está matando Fernando Henrique Cardoso de inveja e despeito, aos pouquinhos. Chamaram-no de analfabeto — e ele criou o ProUni. Vi gente esculhambando cada área do governo de Lula: a economia, as políticas sociais, a política externa. E no entanto, nesses mesmos seis anos, o Brasil que eles nunca quiseram ver ou entender emergiu e iniciou um processo de consolidação. Queiram ou não os apóstolos do mercado que neste exato momento desaba, Lula criou um país melhor, mais sólido e, principalmente, mais justo.

Lula venceu. E a oposição jamais vai conseguir admitir que, do pedestal de sua arrogância, de sua escolaridade, perdeu para um pau-de-arara de Garanhuns, que mostrou que não era ela a mais preparada para dirigir um país do tamanho do Brasil. E por não entender isso, por discordar do projeto de país encabeçado por Lula, essa oposição se perdeu completamente, pregou o golpe às vésperas da eleição, apostou na mentira e no engodo, se recusou a admitir que o país estava melhorando.

Em fevereiro deste ano, nos fundos de um palanque onde o governador Marcelo Déda mostrava mais uma vez por que é um dos maiores, senão o maior, orador que eu já vi, e em que Lula inaugurava um viaduto em Aracaju e mandava o Judiciário meter o nariz em seus próprios assuntos, eu aproveitava para tirar fotos do presidente.

(Espaço para um pequeno parêntesis: quem acompanha um pouco da política nacional já deve ter prestado atenção em um prenúncio de crise institucional que está se formando, com o Judiciário e do Ministério Público ocupando gradativamente espaços que não lhe deveriam ser permitidos, aproveitando um vácuo deixado pelo Legislativo. A imprensa apóia, incentivada pela classe média, e sabe Deus qual será o resultado disso.)

Mas este post, na verdade, não tem muito a ver com tudo isso que eu disse até agora; e eu só disse por desabafo, por estar cansado. Tem a ver com uma posição tomada que, mais uma vez, me deu orgulho do presidente que tenho, em quem votei e de cujo projeto indiretamente faço parte. Lula foi o primeiro presidente a dizer que é a favor da união civil de homossexuais, e a Igreja que se vire com isso.

Eu tenho orgulho de ter um presidente como Lula.

Sobre Marta Suplicy

Dia desses vi no YouTube o primeiro programa da campanha de reeleição de Marta Suplicy para prefeita, em 2004.

O programa abre com um belo comercial. Um goleiro defende pênaltis cobrados por uma fileira de jogadores. Defende quase tudo. Mas deixa uma bola passar, uma só, e então o locutor lembra: “Não é possível vencer todos os desafios ao mesmo tempo. Mas tudo que era possível fazer em quatro anos, Marta fez. E fez bem feito.”

Por alguma razão os estrategistas de Marta acharam que a medida mais importante a ser tomada no início da campanha era defensiva: blindar a candidata contra as críticas acerca do que não tinha sido realizado pela prefeita.

Não sei como estavam as pesquisas da época. Imagino que apontassem uma sensação geral de que Marta tinha feito alguma coisa, mas que isso ainda era pouco. Não sei. Mas a partir desse comercial, escolhido para abrir a campanha inteira e portanto de importância fundamental, fico imaginando as reuniões na produtora de Marta, as discussões sobre a necessidade de blindagem da candidata. “Vão bater na gente. Vão bater muito. Então vamos sair na frente e falar a verdade, dizer que não fizemos tudo, mas que com mais quatro anos poderemos fazer. Vamos ser humildes”.

Parece um raciocínio correto; pelo menos é lógico. A blindagem é uma ação correta e necessária, para qualquer candidato. Mas a abordagem e o momento utilizados pelo programa foram um erro grave.

O problema que o programa de Marta não entendeu e não respondeu é que ninguém se elege pelo que não fez. Esse é um dos pontos positivos da evolução do eleitor brasileiro, em grande parte auxiliada por bons programas eleitorais como, por exemplo, o de Duda Mendonça para Paulo Maluf — o mesmo Duda que fazia aquela campanha de Marta, embora tenha sido defenestrado mais tarde. Hoje o eleitor brasileiro tem melhor noção do que quer e não se deixa levar facilmente por salvadores da pátria como o Collor de 1989. Está mais realista e mais pragmático. Esse fenômeno se consolidou em 1996, quando posturas políticas perderam importância para o pragmatismo administrativo, pelo menos em eleições municipais (e federais também: em 2006 os eleitores votaram em Lula apesar da maior campanha contrária de mídia que já se viu no país, maior até que em 1989). 1996 foi o ano em que o eleitor brasileiro passou a julgar seus administradores pela capacidade de trabalho e pelos resultados apresentados, não por um discurso de princípios Isso quer dizer algo muito simples: que o que o sujeito quer saber é que o administrador nos quatro anos em que esteve à frente do Executivo.

Além disso, programa eleitoral não é para reconhecer defeitos, é para reforçar e lembrar as qualidades. Para os defeitos existe a imprensa. Nenhum programa vai mudar a imagem de um candidato, se ela for muito diferente da que o povo tem dele; mas é seu dever informar ao eleitor as razões pelas quais ele deve votar em alguém. Em seu primeiro programa, em vez de se desculpar pelo que não fez, Marta deveria ter mostrado o que fez. E ela fez bastante. Marta Suplicy pode ser antipática, esnobe, pernóstica (por outro lado eu a vi na ABAV do ano passado, no Rio, e a coroa dá um bom caldo) — mas foi uma excelente prefeita para a cidade de São Paulo. Se eu votasse em São Paulo, votaria em Marta Suplicy.

Aquele comercial era cabível e provavelmente necessário em um outro momento da campanha, não naquele. Ali, passava uma mensagem clara, ruim e falsa: “Desculpe, povo de São Paulo, por ter sido uma prefeita incompetente, mas mesmo assim eu lhe peço uma nova chance”.

As falhas do programa de Marta não pararam por aí. Erraram no enquadramento das falas da moça. Pelo menos naquele primeiro programa, insistiram em um plano aberto, que mostrava Marta praticamente de corpo inteiro se movimentando diante de um cenário bonito, ainda que frio. Visualmente era muito agradável; mas reforçava o distanciamento de uma mulher que, afinal de contas, era ligada a uma família tradicional de São Paulo — e que nunca foi exatamente populista. Marta devia ter sido apresentada de maneira mais próxima, mais íntima.

O discurso dela também era equivocado. Marta usa boa parte de seu tempo — além de se justificar — para agradecer pela honra que lhe foi dada pelo povo de São Paulo ao lhe deixar ser prefeita. Ela confessa que “gostou” de ser prefeita. Diz que não deu para fazer tudo o que pretendia, e que precisa de mais quatro anos para fazer tudo o que “gostaria” de fazer.

Não é por nada, mas se Marta gostou de ser prefeita, é problema dela. Porque Maluf também gostou, Pitta também gostou, Mario Covas também gostou. Qualquer sujeito sabe que ser prefeito é bom, porque se não fosse eles não gastavam milhões em suas campanhas. Ao povo não interessa do que Marta gosta ou não. Interessa é se ela é competente para desempenhar a função de prefeita. Quando ela passa boa parte do seu tempo dizendo que gostou de ser prefeita e está honrada por isso, perde de vista o seu papel de líder e de administradora competente.

Se isso foi feito para reforçar uma humildade que Marta não aparenta, foi o remédio errado. Pelo contrário, o resultado é ainda mais personalista do que parece.

O pior é que os erros continuaram. O resto do programa de Marta foi dedicada a um de seus projetos, o CEU. Só ao CEU.

A curva de audiência de programas eleitorais pode ser resumida em uma parábola invertida. São muito assistidos no início do horário eleitoral gratuito, caem significativamente aí pela segunda, terceira semana e sobem novamente durante a reta final de uma campanha. Praticamente ninguém assiste a todos os programas.

Ao desperdiçar seu primeiro programa com um samba de uma nota só, Marta parece ter passado a idéia de que não tinha feito um governo eficiente, passando uma mensagem contraditória e reforçando o aspecto negativo daqueles pedidos de desculpas. Fazia parecer que só tinha aquele projeto para mostrar. É possível que o eleitor que só viu aquele programa tenha ficado sem noção do volume de obras de Marta. E tenha preferido Serra.

Não vi outros programas de Marta. Não sei como se desenrolaram. Não sei o que melhorou ou o que piorou. Mas se o resto da campanha foi parecido com esse primeiro programa, ele foi, com certeza, o primeiro passo de Marta Suplicy em direção à derrota.

(Pequeno update antes de publicar o texto: ouvi um dos novos jingles de Marta, “Viva Marta”. Não gostei. O jingle pede para o paulistano lembrar do tempo em que chegava cedo em casa, em que a cidade era tranqüila, em que nego chegava em casa e via a criançada brincando feliz na rua. O jingle deve estar se referindo ao final do século XIX. Certamente não foram os tempos de Marta como prefeita. “Minha velha São Paulo com nova atitude”? Marta não ficou tanto tempo à frente da Prefeitura para definir uam era, como o jingle pretende. Além disso, nenhum eleitor com QI acima de 15 vai creditar a qualquer candidato — Marta, Alckmin ou Kassab — a responsabilidade imediata pelo caos paulistano. Mas pode achar que Marta está tentando enganá-lo. Sei não, mas já começaram errado.)