Vida de cachorro

Do Amorous Propensities:

Dr. Melvyn Greenberg said: “An intact male dog has no pheromonal or odoriserous attraction towards a human female. The male dog has no inherent desire for sexual copulation with a human female.
(…)
He said a male dog cannot be changed to perform sexual intercourse with a human female. The dog would have to be masturbated, held under appropriate restraints and forced by a human to enter a female vagina. A minimum of six men would be required for such an exercise.

Resta dizer três coisas.

A primeira é que, em relação a esse tipo de uso de cães, não é exatamente o pênis que interessa.

A segunda é que na Inglaterra vitoriana, onde o homossexualismo masculino era crime — como bem sabia Oscar Wilde –, o lesbianismo era “liberado”. A razão era simples: a rainha Vitória não acreditava que duas mulheres pudessem fazer aquilo.

Terceira: alguém lembrou de avisar isso aos yorkshires das senhoras de Copacabana?

Quarta (eu não aprendi matemática no colégio): cachorros podem até não gostar de mulheres, mas que são fissurados numa perna, ah, isso são.

A 8 mil pés acima do nível do mar

Normalmente eu entro no avião, sento na minha poltrona e esqueço do mundo. Se tem alguma coisa para ler, eu leio. Se estou sentado à janela, olho para fora. Raramente abro o computador. Raramente durmo. Raramente converso com alguém. Não tenho muito interesse e, quando meu companheiro de viagem tem, não demora muito para que sua polidez seja desestimulada pelos meus monossílabos.

Mas ainda lembro da senhora que voltou de Aracaju comigo, para o Rio.

Era sua primeira viagem de avião. Não sabia como apertar o cinto de segurança, não sabia como chamar a aeromoça, não sabia nada. Eu a ajudei com o cinto e a ensinei a reclinar a poltrona. E talvez por isso, e pelo nervosismo, ela tenha resolvido que eu seria seu confidente durante aquelas próximas horas.

Ela era de Brejão, um povoado de um interior remoto chamado Brejo Santo ou Brejo Grande, não lembro. Tinha morado cerca de 20 anos no Rio, onde deixara uma filha.

Ela estava maravilhada; nunca tinha viajado de avião porque achava que era caro demais. Agora que ela sabia que o preço era acessível, só iria viajar assim. Contou toda a história de sua vida; naquela época ela, além da pensão do INSS, descolava um troco comprando terrenos e vendendo um pouco mais caro.

Era uma mulher interessantíssima, pela vitalidade e pela simplicidade — não aquela simplicidade acanhada, mas uma mulher que estabeleceu um pacto com a vida: ela sabia exatamente como é o mundo, mas não deixava que isso lhe incomodasse.

Ela me contou até o motivo de sua viagem: ia fazer uma operação de hemorróidas. Não sei em que isso poderia me interessar, mas tive que me controlar para não rir. Não era difícil, na verdade.

Aproveitei para iniciar aquela senhora nos meandros da contravenção. Ela ficou tão encantada com o lanche a bordo — é preciso ser um neófito para se encantar com a comida vagabunda que as empresas aéreas servem hoje em dia — que queria levar tudo, talheres e pratinhos, para casa.

Normalmente eu teria horror a isso. Mas naquela hora, não seria eu a contar a ela que isso não se faz.

Mamma África

No começo de 2000 uma matéria na Veja me deixou ao mesmo tempo fascinado, curioso e estupefato.

Ela contava que a Somália tinha, simplesmente, colapsado. Não havia mais Estado. O país tinha chegado à anarquia absoluta.

Nos últimos dez anos a Somália tinha sido sinônimo de fome e de caos; era mais ou menos o tempo que se passou desde que perdeu seu governo central.

A reportagem falava com pessimismo sobre sua situação. Nos últimos tempos pequenos enclaves de poder vinham se organizando dentro do seu território, onde clãs conseguiram se impor. A partir deles pequenas cidades-estado pouco a pouco iam se formando e se consolidando.

E era isso que me maravilhava, me espantava e me deixava com a sensação de que sou testemunha de tempos maravilhosos.

A África vem revelando tantas tragédias nos últimos anos que todo o mundo praticamente admite não saber se há uma solução possível. Aids, Ebola, guerra civil com requintes eventuais de canibalismo, tudo isso sai de lá. Mas a solução estava na cara de todos, e a reportagem não via isso.

Qualquer pessoa sabe que a grande tragédia da África foi o colonialismo. A Europa dominou várias regiões e estabeleceu divisões administrativas a seu bel-prazer, pouco importando a história e as etnias daquela região. Quando o modelo se esgotou e as colônias conseguiram sua independência, herdaram essas fronteiras e composições étnicas artificiais. Deu no que deu: hoje em Ruanda, por exemplo, tribos rivais se massacram mutuamente graças a essas divisões arbitrárias

Mas o mais importante, mesmo, é que os africanos herdaram uma cultura que não era a sua. Não se respeitou o processo de formação histórica daqueles povos, que saltou etapas e pulou da Idade da Pedra para um regime democrático que eles não criaram nem jamais conseguiram assimilar totalmente.

Ao descer ao fundo do poço, a Somália finalmente começava a arrumar a casa. Jogava para o alto toda a história da colonização e recomeçava do nada.

Era um processo fascinante, com muitos pontos em comum com a formação dos Estados nacionais europeus após a queda do império romano: fracionamento da unidade original, formação de pequenos Estados de poder reduzido. Acima de tudo era um processo que poderia restaurar as configurações prováveis das nações africanas, retomando o curso da história de um continente que culturalmente ainda tem muito de pré-histórico. As nações que se formariam teriam assim uma base consensual e, finalmente, legítima.

Essa evolução se estendeu por mais de 1000 anos na Europa, mas poderia se desenrolar em algumas décadas na Somália. Na sua desgraça, ela estava apontando o futuro.

E foi ao notar isso que percebi a maravilha destes tempos em que vivemos. A multiplicidade de um mundo que pode ser tudo, menos um só.

Skindô ou a morte da democracia

Eu não agüento mais ouvir os deslumbrados (adequadamente pagos para isso, é bem verdade) dizerem que o carnaval da Bahia é democrático.

O carnaval baiano não é democrático desde que o primeiro bloco estendeu uma corda separando seus foliões da massa ignara, estabelecendo uma hierarquia e roubando do povo sua invenção. E hoje, com a ditadura dos trios, esse mesmo povo é obrigado a pagar para pular — ou então se espremer no espaço que resta, se tornando causa e efeito da violência.

Aos poucos, o que resta do carnaval de rua do Rio — justamente o que sempre foi considerado o mais elitista — vai se tornando mais “democrático” que o baiano.

E, para quem gosta dessa festa, sempre resta o carnaval de Olinda.

Confusão teológica

Esta notícia me deixou pensando se, afinal de contas, eu não estava errado quando escrevi, há algum tempo, que católicos são menos infensos às diatribes oficiais da religião que os fiéis de igrejas protestantes.

Pensei muito. Acho que uns 30 segundos.

E continuo achando que sim. Os católicos americanos, por menos que queiram, no fundo são protestantes. E talvez os católicos brasileiros, no fundo, sejam pagãos selvagens incapazes de alcançar a Salvação.

A arrogância da ignorância

Ultimamente andei pensando em algumas coisas sobre a ignorância e a burrice, esses valores eternos e ubíquos.

A burrice em si não incomoda, porque independe da vontade de cada um. Pode ser politicamente incorreto, mas não tenho nenhum problema em achar alguém um burro incorrigível. Isso não faz alguém melhor que os outros, nem a mim melhor que alguém que acho burro (por conseqüência, alguém que me ache burro tem que fazer o mesmo…). Eu mesmo faço parte desse contingente miserável em muitos aspectos — muitos mais do que gostaria. Pelos mesmos motivos, admito prontamente que há excesso de ignorância no mundo.

Mas como diz Humbert, o esteta pedófilo de Nabokov, tenho muito orgulho do pouco que sei para ser humilde pelo muito que não sei. E talvez seja por isso que o que chamo de “arrogância da ignorância” consiga me tirar do sério.

É quando a ignorância se manifesta em todo o seu esplendor sulfúrico, quando se espalha como uma metástase. Ela tem orgulho do nada que é, e não admite contradição. É o pior da humanidade, é o que atrapalha o progresso, é o orgulho pelo prato de farinha que faz desprezar sem conhecer as porções harmoniosas da nouvelle cuisine.

Setembro de 2002: conversando sobre a loucura que tinha se apropriado do mercado financeiro — dólar nas alturas, risco Brasil lá em cima, inflação ameaçando estourar. A minha interlocutora era taxativa: isso é Lula, e quando aquele comunista se eleger vai ser pior.

Tentei argumentar que aquilo era só um movimento especulativo, que era apenas o mercado aproveitando uma chance de ganhar um trocado, que àquela altura não tinha nada a ver com medo do sapo barbudo — ou melhor, que Lula era apenas o motivo encontrado, e que aquilo iria acabar assim que o resultado da eleição saísse, fosse qual fosse.

Mas a ignorância, quando se assume em sua glória, basta em si própria e não dá ouvidos a nada. E então veio a carteirada: “Eu sou economista!”.

Pensei em lembrar que era uma economista burra, mas brigar para quê? Pelo menos a história me deu razão.

São essas coisas que conseguem, às vezes, me tirar do sério. É alguém insistindo comigo que os Beatles gravaram “Asa Branca”, que Lennon foi assassinado pela CIA, que ET’s foram avistados e abduziram algum maluco, coisas desse tipo. As pessoas têm o direito de ser ignorantes; todos somos, em maior ou menor grau. Mas porque têm direito a ter anéis não quer dizer que possam tomar todo o braço: e a ignorância deve continuar calada, quieta, se o contrário implica em querer contradizer a verdade.

Não reconheço direitos humanos para a ignorância. E não há sequer SUIPA para aquela ignorância que em seus recalques se revolta contra o que acha ser “demonstrações desnecessárias de sapiência”. Primeiro porque é preciso admitir que deve haver um padrão para as coisas, e esse não é o da ignorância. Segundo porque ela geralmente está errada, e vê erudição onde há só um pouco de informação. Acontece que seus padrões são muito baixos para diferenciarem Rubem Fonseca de Kant. Esquecem como é fácil tomar equivocadamente informação por cultura. E em seu complexo de inferioridade se revoltam contra isso, porque lhes falta inteligência para distinguir as coisas.

Carnaval, duas da manhã

Duas da manhã e eu tenho que procurar um lugar para comer.

Na lanchonete onde me sento os balconistas estão assistindo ao desfile da Viradouro. Passo a conversar com um deles sobre as usinas de açúcar em Sergipe, sua importância como berço de cidades, e fico conhecendo um novo verbo: “pejar”. É quando as usinas param sua produção, durante quase metade do ano.

E então aparece Dercy Gonçalves, de perna para cima.

Os outros balconistas se amontoam em frente à TV.

— Olha a calçola dela! Ela tá arreganhada! Ah, velha safada!

Um deles comenta:

— Mas mesmo velha, tem gente que ainda pega.

Imediatamente o outro acrescenta:

— Ele tá dizendo que ele pega.

— Pego mesmo! Se der mole na minha frente, eu pego mesmo!

A conversa continua. Quando me despeço, o valente me pede um cigarro.

— Ei, amigo, me arranja um desses pr’eu torar mais tarde.

(“Torar” é um verbo sergipano, provavelmente oriundo de estourar, que originalmente significava quebrar, mas que hoje serve para qualquer coisa. Pode ser comparado à gíria “detonar”. Um psicanalista faria a festa com o que essa palavra conta sobre a psique masculina nordestina.)

Eu dou o cigarro; e junto dou um conselho.

— Olha, cá para nós, é melhor torar a Dercy do que um cigarro.

E ele concorda, em meio a gargalhadas.

Bem vindo a Sergipe.

Tripudiando em vermelho e negro

A principal razão para eu gostar de futebol não é exatamente amor ao esporte.

É que o futebol e suas paixões exaltadas me permitem um dos mais gostosos esportes que conheço: debochar do perdedor.

Não basta vencer, tem que tripudiar.

Minha família é flamenguista. Há gerações torcemos pelo Flamengo, temos Zico tatuado em nossos corações. Mas uma irmã resolveu ser palmeirense. Não adianta lembrar a ela que não podemos nos rebaixar torcendo por um time cuja camisa tem cor de catarro, um time que covardemente mudou de nome durante a II Guerra, que ultimamente só pode se orgulhar de ter subido para a primeira divisão. Ela tomou essa decisão tresloucada, fazer o quê? A juventude tem o direito de cometer suas besteiras.

Resta me dedicar ao doce esporte de ser profundamente chato e irritante. Rir do Palmeiras como rio do Botafogo, do Vasco, do Fluminense. Rir como rio do desplante de torcedores do Sport quando insistem que foram campeões brasileiros porque o Flamengo se recusou a jogar com um time da segunda divisão em 1987. (Torcedores do Sport: não interessa o que vocês acham. O Vasco, o Fluminense e o Botafogo reconhecem o campeonato, e isso é o que importa.)

Tudo isso é chato? É, sim. É muito chato. Para muita gente é insuportável. Não ganho prêmios de popularidade por esse hábito deplorável.

Mas ultimamente esse esporte não anda compensando. A emoção que o Flamengo tem nos dado é a expectativa, as promessas e os despachos nas encruzilhadas para que consigamos sair da zona de rebaixamento. E, se me dedico a ser desagradável nas épocas de vacas gordas, ao menos admito que não há oportunidade melhor para me devolverem toda a encheção de saco na qual alegremente embarco sempre que o Flamengo ganha um jogo.

Posso ser chato, mas não sou injusto.

E posso ser justo, mas não sou burro: este post estava escrito há algum tempo, mas esperei o Flamengo voltar a ganhar um semi-título para publicá-lo.