O cinema morreu

Andei fazendo as contas, noite dessas.

Eu vejo filmes há 40 anos. São mais de 14 mil dias. E assim cheguei ao número de uns 8 mil filmes assistidos.

É na verdade uma estimativa muito conservadora, mas segura. Lembro de tempos em que chegava a assistir a três filmes por dia, eventualmente até mais. Mas também lembro de períodos em que assistia a pouca coisa, ou de semanas em que não via nada, por impossível. Muitas vezes revi filmes que já tinha visto, e não foi só Casablanca; tem um número de filme bobos aí que eu não gostaria de lembrar.

Assim, 8 mil é um número razoável, garantido para não chegar ao exagero. Há números mais assustadores que esse. Devo ter passado mais de 40 mil horas desta ainda curta vida diante da TV, o que inclui, além dos filmes, seriados, desenhos animados, telejornais e até — credo em cruz três vezes — novelas da Globo.

Não lembro da grande maioria dos filmes que vi. Espontaneamente, devo lembrar de algumas poucas centenas. Diante de títulos e sinopses, talvez lembre de uns poucos milhares. Mas certamente há filmes de que jamais vou lembrar, mesmo que sente para assistir novamente, principalmente aqueles que deixaram impressão apenas mediana. São os males do excesso, é verdade, mas para que me enganar: é principalmente um reflexo da idade. O tempo passa e joga o desimportante fora. É muito tempo desperdiçado, tempo em que poderia ter lido Finnegan’s Wake, por exemplo, ou encarado “Guerra e Paz” com mais seriedade e sem apelar para mais momentos de leitura dinâmica do que jamais admitiria, e que não admito agora. (Woody Allen: “Fiz um curso de leitura dinâmica e li ‘Guerra e Paz’ em vinte minutos. Tem a ver com a Rússia.”)

Devem ser essas horas assistindo a filmes que me fazem ter a impressão de que o cinema morreu.

Já há alguns anos deixei de ir regularmente ao cinema, um passatempo maravilhoso do século XX que os anos 2000 tornaram desnecessário, às vezes até desagradável. Meu sonho sempre foi ser um velho chato, e certamente estou conseguindo. Infelizmente, uma das primeiras vítimas dessa ancianidade foi um dos hábitos de que eu mais gostava em meus verdes anos. Em grande parte, claro, isso aconteceu porque cinemas se tornaram ambientes menos ricos para mim. Mas principalmente porque acho que não há muita coisa que valha a pena aparecendo nos cartazes.

Como linguagem, o cinema parece ter se consolidado há muito tempo, mais ou menos como um revólver é uma máquina perfeita há uns 100 anos, sem possibilidade de avanços estruturais. Excelentes, até mesmo brilhantes filmes se fazem aqui e ali, porque afinal de contas cinema é, principalmente, contar histórias (que o finado Godard não me veja falando isso). Na verdade, o número de bons filmes lançados a cada ano não é, hoje, menor que há 60 anos. Se assim parece para alguns é porque eles esquecem que, para cada “Intriga Internacional” lançado em 1959, foram feitos dezenas de The Oregon Trail, e mesmo uns Plan 9 From Outer Space. Quem fala que “os velhos tempos é que eram bons” é idiota ou não sabe o que fala; na melhor das hipóteses é alguém que não consegue se desprender de padrões definidos quando ainda conseguia aprender alguma coisa. O resultado é um número justo de filmes melhores que a maioria na época de ouro de Hollywood, ou da França ou da Itália.

Mas quase por definição, não conseguem alcançar as alturas a que o melhor dessas épocas conseguiu chegar, ao menos em relação ao seu tempo e ao que veio antes.

O problema real é que há muito tempo não se vê, ao menos de maneira consistente, uma grande ruptura, algo que leve o cinema um novo patamar. O último filme que me impressionou nesse aspecto foi Dogville, em que o Von Trier reduziu o cinema ao que ele pode ter de mais básico, uma experiência fascinante que, paradoxalmente, só era possível porque não havia mais barreiras a serem quebradas; fora isso, o que se vê são apenas construções bem ou mal feitas sobre uma estrutura já secular. É possível ver hoje “A Paixão de Joana d’Arc”, de Dreyer, e encontrar nele o mesmo senso de frescor estético que se teve quando ele foi exibido há 90 anos, entender exatamente o que faz dele um filme revolucionário; não se encontra mais isso por aí.

De certa forma, o último grande avanço tem a ver com o uso da tecnologia, e esse é talvez o maior indício de seu esgotamento. O CGI possibilitou o surgimento e consolidação dos filmes de super-heróis. Mas em pouco menos de 15 anos esse gênero se estratificou numa repetição constante de fórmulas e clichês, e ao menos para mim, hoje, acabam lembrando que o cinema oferece menos possibilidades de co-participação criativa do que os quadrinhos.

(Explicando: nos quadrinhos, grande parte da ação era criada pelo leitor. Entre um quadro e outro havia um vácuo que lhe possibilitava imaginar como o Batman ou o Superman ou o Homem Aranha tinha chegado ali. É isso que o cinema lhe entrega pronto, e a briga agora não é mais para lhe fazer ver o que você não tinha imaginado, mas lhe mostrar como isso foi feito de maneira como você não tinha imaginado. É a diferença entre o substantivo e o adjetivo.)

Cinema está cada vez mais chato, é essa a verdade.

De um lado, os blockbusters americanos repetem ad enjoum a fórmula do bombardeio insistente dos sentidos utilizando, para isso, as ferramentas possíveis: música repetitiva em tons menores e frequências estranhas, edição rápida, movimentos de câmera inovadores possibilitados pelos drones e ronins da vida, efeitos especiais cada vez mais próximos da perfeição. Do outro, outras cinematografias parecem tentar ainda realizar no cinema o equivalente a uma literatura que trata cada vez mais do minúsculo, que se esmera em investigar repetidamente as mesmas miudezas da vida porque a forma do grande romance clássico se esgotou ainda antes de Joyce.

Não é à toa que hoje se diz que a criatividade está na TV, nos seriados que os canais pagos exibem. Isso é apenas meia verdade: os seriados podem ser grandes exemplos de dramaturgia, mas a forma em si tem quase cem anos; não há realmente inovação, em nenhuma delas. Game of Thrones pode ser maravilhoso, mas o que há de revolucionário em relação aos seriados da Republic e às telenovelas, além do conhecimento, da tecnologia e das mudanças estéticas e narrativas acumulados paulatinamente ao longo dos tempos? O que é Mad Men além de uma novela bem gravada?

Eu sempre tive um orgulho bobo, como aqueles sujeitos que enchem o peito para dizer que conseguem comer 20 hambúrgueres, ou que podem mexer as orelhas: sempre fui capaz de dizer em que década um filme havia sido feito em menos de 3 segundos. Pela textura do filme, pela intensidade e espectro das cores, pela edição, pelos movimentos de câmera, pela música, ou pelas roupas, penteados e maquiagem. Mas isso não é mais possível, porque neste século parece que tudo isso foi uniformizado, e confesso que fui derrotado pelo século XXI, e agora vou ter que me contentar com alguma outra coisa, e estou pensando em me especializar em joguinhos de mesa de bar com palitos de fósforo.

De como Nero Wolfe resolveu um mistério e desmascarou o Kindle

Andei namorando a ideia de comprar um Kindle.

Parece uma ideia estranha, eu sei. Desde o início, encarei essa nova bugiganga com desconfiança. Mas o tempo passou, e nas redes da vida a oferta de coisas que eu até gostaria de ler, mas não o suficiente para comprar, fez com o pequeno trambolho parece uma compra interessante. Os preços estão razoáveis, tem muita coisa por aí, pois é, talvez valesse a pena.

Mas o namoro acabou de forma rude, quase misógina, diante de um livro de Rex Stout.

Eu nem sou lá um grande fã de Nero Wolfe, ao contrário do Alex Castro, por exemplo. Me parece essencialmente o típico whodunit inglês da velha dama indigna, com uma cobertura insossa de hardboiled americano personificado no Archie Goodwin que diz só beber leite. Até reconheço suas qualidades, e à medida que envelheço simpatizo cada vez mais com o gordo pernóstico. Mas eu gosto mesmo é de Dashiell Hammett, Raymond Chandler e Ross MacDonald — o Pai, o Filho e o Espírito Santo —, e ultimamente do Walter Mosley, além de uns tantos por aí, como James M. Cain, David Goodis e algum Chester Himes. Ainda assim, uma aventura de Nero Wolfe é um policial legítimo, que quase me lembra a grande literatura noir.

E esse é um amor antigo, muito antigo.

Desde muito cedo eu lia os livros da Colecção Vampiro. É uma das grandes heranças paternas. Me acostumei a palavras maravilhosas como “chui” e “sarilho”, a mulheres perigosas e sujeitos traiçoeiros. Como não podia deixar de ser, a Colecção Vampiro trazia principalmente autores de segunda, como Agatha Christie, Mickey Spillane, Erle Stanley Gardner, Frank Gruber, E. Phillips Oppenheim, Leslie Charteris, Ellery Queen, Fredric Brown, Lionel White, Lew Bruce, Anthony Berkeley. Mas também publicou virtualmente tudo o que se escreveu de decente em literatura policial

(Citei apenas os que lembro de ler por volta dos 10 anos. Mas um louco publicou um site maravilhoso com todas as capas da coleção.)

Havia outra série. Na verdade, ela não chega aos pés da Colecção Vampiro, mas foi tão ou mais importante para mim. Em 1981 a Abril lançou uma coleção chamada Mistério. Papel vagabundo, capas que jamais chegariam perto das da Colecção Vampiro, mas um elenco que, em meio a muita gente menor, incluía alguns bons autores. Foi nela que li pela primeira vez Ed McBain, Patrick Quentin, Ruth Rendell, Lawrence Block, Collin Wilcox, John Wainwright e John Ball, e principalmente Ross MacDonald.

Juntas, essas duas coleções definiram, em grande parte, o que entendo por prazer da leitura. Não é tão importante sequer o aspecto gráfico do livro — e talvez por isso objetos bonitos como os da CosacNaify me encantem um pouco menos do que deveriam. Mas o ato de pegar um livro, virar as páginas, tudo isso faz parte de um processo que ainda hoje ajuda a me definir como eu mesmo. Criaram também um amor indelével a sebos; eu gosto de livro, mas gosto mesmo é de livro barato.

E então chegamos a Nero Wolfe, tantos anos depois.

Como disse, eu estava namorando a ideia de um Kindle, para ver se conseguia me tornar um pouco menos ogro, um tiquinho mais moderno. Até que peguei um livro de Stout (“A Confraria do Medo”, para ser exato) e comecei a ler.

Um livro policial, desses que têm sido publicados no Brasil ultimamente, tem em média umas 250 páginas. Na verdade podia ter muito menos, mas as editoras arranjam uns artifícios para o volume ficar maior e justificar o ágio absurdo que cobram. Esse, especificamente, tem pouco mais de 350.

E foi então que percebi algo que, lá no fundo, eu sempre soube, apenas não sabia que sabia.

Umas 50 páginas antes do final do livro o coração começa a bater mais rápido, a ansiedade dispara. Você sabe que está chegando ao fim. Cada página virada aumenta a parte já lida e mostra que o final está cada vez mais próximo. Você sabe que o crime vai ser resolvido em breve, e agora cada detalhe é importante. Você vê que está chegando ao fim.

Você não tem isso num Kindle. Essa emoção de virar a página traduzida em algo palpável, no número cada vez menor de páginas. Imagino que o Kindle traga algo como “página 60 de 234”, mas não, isso não é a mesma coisa. Não muda a espessura de páginas que faltam, e que você sente sem olhar para elas. Muda só um número em algum lugar da tela, se é que muda.

O namoro acabou ali. Continuo ogro e velho, continuo preferindo o papel. O cheiro dos livros novos, inconfundível, e os cheiros dos livros velhos, particular e único como o cheiro de cada biblioteca onde eles ficaram; a emoção de se ver chegando ao clímax daquilo que lhe tomou umas horas preciosas em sua vida; não, o Kindle não vai me dar algo parecido. É como diz o Chico Buarque, é namorar uma mulher sem orifício, esse namoro não tem futuro.

Quando a CosacNaify fechou

Deve estar fazendo por esses dias dois anos que a CosacNaify fechou.

Na época, achei engraçadas as reações desoladas das pessoas, lamentando o final da editora e até fazendo parecer que ali terminava, também, a grande aventura editorial brasileira. Me lembraram imediatamente as pessoas que volta e meia lamentam o fechamento de um ou outro cinema de rua.

Acontece sempre, seguindo invariavelmente o mesmo roteiro: ninguém ia mais àquela joça, porque uns preferem os cinemas de shopping e outros, como eu, descobriram os prazeres torpes e baratos da pirataria numa TV de tamanho suficiente. Mas todos parecem querer que o cinema vazio continue ali enfeitando a cidade, como se por um passe de mágica e ainda que caindo aos pedaços, e agora choram como se perdessem um grande amigo; no caso, um amigo pobrinho que não viam há décadas e do qual mal lembravam o nome.

Se uma editora fecha não é apenas porque as contas não batem, porque normalmente já passaram desse estágio há tempos: mas porque a situação se tornou insustentável. Editoras — todas elas, sem exceção — são antes de tudo o resultado do trabalho de abnegados. De gente que ama livros, que se realiza na labuta editorial e quer compartilhar esse amor com outros. Gente esperta que quer dinheiro vai para o mercado de ações, vai vender tomate na feira; o mercado editorial é o reduto de dons Quixotes que têm uma visão própria, necessariamente elitista do mundo — mesmo quando esse elitismo se traduz virtuosamente na oferta de bens culturais melhores para as massas.

Nisso o papel do Charles Cosac, como o de qualquer outro editor, é invejável e necessário. Mas é preciso também lembrar que ele está longe de ser o único, ou mesmo tão importante assim.

Contei agora os livros da CosacNaify que tenho. Não chegam a dez, sem contar alguns que comprei para dar de presente e dos quais ainda lembro. A maior parte é Faulkner; a Cosac foi a sua melhor editora no Brasil, sem nenhuma sombra de dúvida, soltando edições impecáveis dos livros mais importantes do cachaceiro sulista. Eram bons a ponto de me fazer substituir algumas das antigas edições da Nova Fronteira que eu tinha.

Porque o cuidado da CosacNaify com o produto final era impressionante. Não apenas com a apresentação material, com o visual, as capas e contracapas, o papel e a tipologia — qualidades estéticas que, desconfio, eram o principal atrativo para as carpideiras de agora; um livro da Cosac na mesinha de centro chama mais a atenção dos visitantes incautos. O que realmenet interessa é outra coisa: um livro de Faulkner editado por ela não contém erros, traz a melhor tradução possível e uma revisão rigorosa. Não se pode pedir nada mais de uma editora.

Mas havia uma diferença gritante e fundamental entre a CosacNaify lançando uma nova edição de “Este Lado do Paraíso” com um cuidado editorial invejável, papel tão legal, capa dura com um projeto gráfico moderno e elegante, e Monteiro Lobato reinventando o mercado editorial brasileiro, ou Ênio Silveira ousando publicar Ulysses em português. Assim como há uma diferença entre a Martin Claret possibilitando o acesso a obras clássicas e Alfredo Machado investindo no mercado de massa. Nomes como José Olympio, Ênio Silveira têm uma importância infinitamente superior na formação de um mercado editorial brasileiro, pelo pioneirismo e, sim, pela ideologia que os motivava. Por legal que a CosacNaify fosse, seu legado não é realmente tão importante quanto a coleção “Cantadas Literárias” da Brasiliense nos anos 80.

E então lembrei dos anos 80, os bons anos 80 — na verdade anos de merda, mas o tempo passa e doira o passado, então a partir de hoje essa década miserável passa a ser “os bons anos 80”.

Naqueles bons anos 80, a editora que me apaixonava era a Companhia das Letras — pelo menos até o início dos 90, e eu certamente não estava sozinho nessa admiração. Acho que o impacto produzido por ela em seu tempo foi muito maior do que o da Cosac. O volume de boa literatura que a Companhia das Letras trouxe a partir do seu lançamento é impressionante. Não tenho nenhuma dúvida de que foi a editora mais importante desse tempo — mesmo lembrando que a Brasiliense oferecia à juventude da época um material inestimável, em muitos aspectos mais ousado. Depois a Companhia das Letras se tornaria uma editora grande, e isso acarretaria as escolhas comerciais necessárias que a colocam em outro patamar. Mas naquele momento, editando Edmund Wilson, John Cheever, Dorothy Parker, Georges Perec, uns tantos por aí, a editora do Luiz Schwarcz era invejável e fundamental para o cenário cultural do país.

Basta compará-la à CosacNaify para entender o óbvio: a Cosac era uma editora elitista demais. E não pretendia ser outra coisa. Isso nem longe a desmerece; ao contrário, se se deixar de lado o tanto que há de demagogia populista naquela tal de literatura para as massas, há que se reconhecer que uma editora como ela é necessária.

Havia algo de imensamente lúdico nos livros dela. Comprei “Zazie no Metrô” numa das tantas promoções porque gosto do filme do Malle mas nunca tinha lido o livro. Depois de ler, acho um livro superestimado; mas o conceito gráfico desenvolvido pela Cosac, com a estética dos cartazes de rua da época intercalando as páginas (que me forçaram a malabarismos razoáveis, já que eu jamais cortaria o papel para ver o material gráfico — que energúmeno seria capaz de algo tão monstruoso?) dão um valor ao livro que, cá entre nós, o enriquece e o valoriza. Não é fundamental; mas acrescenta algo ao mundo.

Havia rigor técnico, uma vontade de fazer o melhor produto possível, algo que deve ser sempre aplaudido. E digo isso mesmo admitindo que, por ver livros de outra forma, seu material não me fazia ter vontade de gastar dinheiro demais. Lançaram uma bela edição de “Bartleby, o Escrivão”, com uma abordagem de manuseio que extrapola o “mero” ato da leitura? OK, mas isso não me faria comprar um livro que já li e que poderia ser comprado por uma fração do preço cobrado pela nova edição. Era simples assim.

Por essas coisas, durante anos não me importei muito com a CosacNaify. Para piorar, o primeiro contato que tive com ela foi através de uma entrevista numa dessas revistas semanais, provavelmente a Época, aí pelo final dos anos 2000. Um perfil do Charles Cosac mostrava um sujeito elitista além do socialmente aceitável, com uma visão de cultura que, digamos assim, extrapolava a minha. A partir daquele momento, vi no sujeito um esteta rico, meio delirante que podia se abandonar aos seus devaneios; ele me parecia um daqueles playboys cariocas dos anos 50, que passavam as noites na Vogue gastando um dinheiro que não ganharam e se tornavam a matéria da lenda do Rio de Janeiro. Ou melhor, uma visão extemporânea e deslocada de Des Esseintes, ou um Jacinto de Tormes.

(Charles Cosac me lembrava um artista plástico que conheci algumas décadas atrás. Pintava quadros de nítida inspiração clássica, o tal pintor. Ticiano antes de Modigliani, Rafael antes de Bacon. Parecia viver no século XVIII. E em seu primeiro vernissage lá estava ele, envergando um trench coat e uma echarpe em pleno calor aracajuano — senhora, senhor, o calor de Aracaju sabe ser parecido com o carioca quando quer, acredite no que vos digo —, empunhando uma bengala desnecessária e tendo ao lado um menino, vestido como pajem renascentista, que oferecia ao transeunte incauto os seus cartões de visita, tirados de uma caixa de madeira.)

Brincadeira de rico para deleite de rico, era o que eu achava. Mas recentemente, essa entrevista do Charles Cosac me impressionou. Mais que isso, me fez mudar de opinião, e de maneira radical. Vi no Cosac um sujeito necessário, consciente do seu papel. Mais recentemente, depois de ver outra entrevista sua, desta vez à Folha de S. Paulo depois de assumir a direção da Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo, vi nele um sujeito que o capitalismo moderno tornou redundante e arcaico, infelizmente: o esteta elitista que, paradoxalmente, tem algo a contribuir para a sociedade. E é esse arcaísmo que o torna mais necessário.

(Vi também um sujeito que, depois de esculhambar o Dória e a mulher e aceitar um convite para trabalhar em sua gestão, se saiu de uma pergunta capciosa com astúcia, classe e educação, sem perder o respeito próprio.)

Não é o bastante para me fazer comprar seus livros. Uma edição barata mas correta de Moby Dick, para mim, ainda tem o mesmo valor real que a bela edição da CosacNaify. Eu envelheço e tento me atualizar, talvez um dia até compre um Kindle, mas não preciso e não quero mudar tanto assim. No entanto, é o suficiente para que eu veja a pequena multidão carpindo o fim do seu período como livreiro com um pouco mais de respeito do que tinha até então.

Ben-Hur

Eu realmente não sei por que insisto em cometer os mesmos erros, vez após vez.

Ben-Hur”, filme lançado em 2016 e devidamente esperado mim com, digamos, cautela, dava todos os sinais de ser uma pequena tragédia. E mesmo assim, mesmo intuindo o que me aguardava, eu assisti a ele.

Refilmagens são problemáticas quase por definição. O primeiro problema está no seu tempo. O significado e a importância histórica que um filme como, por exemplo, “Psicose” teve em 1960 jamais poderiam ser repetidos em 1999, quando o insano Gus Van Sant cometeu a imprudência de refilmar a obra de Hitchcock. Além disso, contar novamente uma história impõe riscos quase imponderáveis.

A coisa é mais grave quando se trata de um clássico absoluto. Como “Os Dez Mandamentos”, “Ben-Hur” está naquele panteão de épicos que definiram o gênero. Curiosamente, o próprio filme de Wyler é uma refilmagem. A primeira versão, de 1925, foi o filme mais caro feito até então e um sucesso absoluto. Mas tratava-se de um filme mudo e, considerando-se que ainda não havia DVD ou video on demand, provavelmente largamente esquecido trinta e poucos anos depois; no máximo visto apenas por cinéfilos em cineclubes obscuros e esfumaçados, se é que essa espécie degenerada já existia. Nessas condições, uma refilmagem podia fazer algum sentido. Você provavelmente não lembra de Ramon Novarro, o ator que fez Judá Ben-Hur naquela primeira versão (bem, talvez conheça a história do seu assassinato). Mas certamente sabe quem é Charlton Heston.

Deve haver algo de muito grave com as novas plateias, uma corrosão do quociente de inteligência e de discernimento crítico. É só assim que consigo explicar as decisões tomadas pelos produtores e roteiristas dessa refilmagem. Quando vi o trailer do filme, adivinhei pelo que ele deixava antever que seria mais uma idiotice do novo cinema de entretenimento. Eu achava que a única maneira de fazer uma refilmagem fazer sentido seria explorar a natureza homossexual possível na relação entre Judá ben Hur e Messala — ah, a cena do duelo das lanças túrgidas e latejantes… —, um favor que Gore Vidal fez questão de deixar nas lembranças de todo cinéfilo. Poderia, por exemplo, dar outra dimensão à relação de Judá com Quintus Arrius, por exemplo, mais ou menos como Antonino e Graco num filme melhor de um diretor de verdade.

Em parte eu estava errado. Havia outras possibilidades: aprofundar mais a questão da resistência à ocupação romana que serve de base para o filme, ou ainda investigar e dar mais nuances ao tratamento do cristianismo nascente.

De qualquer forma, eu podia ter seguido a minha intuição e evitado assistir a um filme que eu sabia que não poderia estar à altura do recordista de Oscars durante quase 40 anos.

Talvez o primeiro comentário a ser feito seja a respeito da mediocridade de todos os atores. Jack Huston e Toby Kebbel, até há pouco ilustres desconhecidos para mim e a partir de agora nomes a serem inscritos num caco de telha e jogados numa urna, interpretam sem nenhum brilho os personagens principais — uma tarefa especialmente inglória, talvez até injusta, para Huston, condenado a reprisar o papel que um dia coube a Charlton “Cold, Dead Hands” Heston. Rodrigo Santoro faz um Jesus insípido, menos por sua culpa do que pelo papel insignificante que lhe deram, e Morgan Freeman faz o seu arroz com feijão.

Desta vez, “Ben-Hur” começa antes do reencontro do protagonista adulto com Messala. Agora eles são irmãos adotivos, e Messala é apaixonado por Tirzah. Mas ele não é um rebotalho plebeu qualquer; seu avô foi um dos assassinos de Júlio César, porque no mundo cinematográfico de hoje todo mundo tem que ter algum pedigree (num filme quase tão repulsivo, o “Robin Hood” de Ridley Scott, transformaram o velho ladrão em filho do ghost writer da Carta Magna e leal ajudante de ordens dos barões). No entanto Messala é rejeitado pela mãe de Judá, e assim, qual um Julien Sorel de saiote, vai para a campanha da Germânia fazer sua fama e fortuna.

Em Jerusalém, Simonide (que no filme de 1961 só aparece bem depois) trabalha na casa dos Ben Hur e sua filha Ester se casa rapidinho com Judá. É estranho: todo mundo mora em Jerusalém, inclusive um certo marceneiro mais tarde dado a pregações, que você deve conhecer pelo nome de Jesus de Jerusalém (é, aquele mesmo, daquela música de Antônio Marcos: “Vem, irmão / Vamos seguir com fé / Tudo o que ensinou / O homem de Jerusalém”).

O filme até se esforça para dar um pouco mais de profundidade política ao contexto histórico e político da Judéia da época, e esse é o seu único ponto positivo. Mas sem muito sucesso: fica a impressão de que isso serve apenas para explicar de maneira nova o acontecimento que muda os rumos do filme. Originalmente, o atentado ao governador romano foi um acidente; agora é uma tentativa de assassinato por parte de um zelote protegido pelos Ben-Hur.

No filme original, ao salvar do afogamento um tribuno romano que o adota em retribuição, Judá ganha seu salvo-conduto para a vida, o que lhe possibilita empreender sua vingança contra Messala. Agora ele vai direto para Ilderim, que da maneira mais rocambolesca e implausível o deixa na boca da corrida de bigas que, neste como no outro, é o clímax do filme. Para isso Judá volta para Jerusalém e vê que na sua ausência as tragédias não pararam de se suceder: sua mãe e irmã pegaram lepra; e como desgraça nunca vem sozinha, a pior de todas: sua mulher virou cristã.

(Rides, hypocrite lecteur? Não, não riais: imaginai a senhora vossa patroa dando a louca e entrando para a Universal e dando todo o vosso dinheiro ao pastor Genoíldes e para desgraçar tudo vos chamando de “abençoado”. Não, não riais, que de certas coisas não se deve fazer troça.)

Em 1961, a cena da corrida era incomparável. Dirigida magistralmente, editada com brilhantismo, significava um passo adiante na estética dos filmes de ação. Ainda hoje é impressionante; mas neste filme ignóbil é apenas mais do mesmo que se vê em qualquer filme com orçamento mediano. Nitidamente inferior a qualquer filme dos Vingadores, por exemplo, é talvez o melhor indicativo da mediocridade rampante de uma obra que deveria ser evitada como se evitava um leproso.

E a partir daí a coisa desce à sarjeta mais baixa. Tirzah e Míriam (que aqui tem seu nome modernizado para Naomi, sabe Jeová a razão), antes curadas da lepra pessoalmente por Nosso Senhor Jesus de Jerusalém, agora são curadas pela chuva de água benta que cai quando Jesus dá seu último suspiro, como um batismo coletivo desses que a igreja faz por aí.

Mas nada, nada, absolutamente nada pode lhe preparar para a cena final. Judá e Messala fazem as pazes, porque eles sempre se amaram, aquilo era só briguinha de irmão, e agora que o romano está perneta e seu orgulho foi para as galés, toda a raiva e ódio podem ser esquecidos: Ben Hur venceu e Messala só precisava ser humilhado e aleijado para virar gente. E o filme termina com aquela que é talvez a cena final mais abjeta de toda a história do cinema: Judá e Messala cavalgando juntos rumo ao futuro, dois garotos que deixaram o passado para lá e para os quais o futuro é belo e risonho.

Pela primeira vez em uma longa história de salas escuras e TVs de todo o tipo, um filme me deu vontade de chorar de raiva. Porque raras vezes vi tamanho desrespeito a uma obra como essa miséria que merece o opróbrio de toda e qualquer pessoa que goste de cinema ou de literatura, mesmo uma de segunda como a do governador Lewis Wallace. E à medida que os créditos subiam, minha mente se perdeu em vinganças imaginárias. Imaginei uma sequência em que aquela corja inteira morria no Coliseu, na boca dos leões ou no gládio de seguidores de Espártaco. É o único fim merecido para esses novos personagens.

Mas tenho que admitir: eu também mereci. Que isso me sirva de lição e de castigo eterno. Infelizmente não poderei desver, jamais, essa cena final. Mas eu sabia que nada de bom me esperava ali, e por meu próprio erro, pela minha própria inconsequência, pela minha recusa em ouvir o que Jesus de Jerusalém me dizia, decidi ver esse filme, como aquele garoto decide experimentar crack. A culpa é minha, só minha, e vou ter que conviver com ela até o final dos meus dias.

NCC-1701

Quem diz que cachorro velho não aprende truque novo não sabe o que está falando. Eu aprendi, por exemplo.

Parece estranho, mas depois de velho virei trekkie — quer dizer, mais ou menos, porque os últimos adjetivos que aceitei de bom grado foram beatlemaníaco e comunista. Mais impressionante ainda é virar trekkie depois de uma vida em que o Capitão Kirk e uma pedra perdida no Raso da Catarina tinham exatamente o mesmo significado para mim.

O fato é que nunca liguei para “Jornada nas Estrelas”, mesmo levando em conta o fato de que o seriado tem estado presente na minha vida desde os anos 70. Lembro de vê-lo passando na TV nessa época, e aquilo não me dizia nada. Mais tarde, a Bandeirantes o exibiu no início dos anos 80, e como ele já era legendário parei para ver um ou outro episódio, mas foi só. As coisas me pareciam velhas, toscas, os efeitos especiais pareciam rivalizar com os tokusatsus (tokusatsu não é uma palavra linda, linda?) que eu via quando criança; e àquela altura eu estava mais interessado nos filmes do Faixa Preta ou da Sessão Western. Para não dizer que Star Trek passou completamente em branco, nós aprendemos a fazer a saudação de Spock, “live long and prosper” — mas gostávamos mesmo era de imitar o vulcano e apertar o trapézio de quem fosse pego desprevenido até ele gritar de dor, porque machucar os amigos era das coisas mais agradáveis que podíamos fazer.

Não é tão fácil explicar por que, entre tantos seriados, eu me importava particularmente pouco com as aventuras da Federação Interestelar. Talvez o meu desprezo profundo por Star Wars e seu universo infantilóide se juntasse à estranheza que sempre senti diante daquele pessoal que se veste de Darth Vader e de Spock e sai por aí achando que é bonito — mais que isso, achando que é normal —, e ao fato de sempre ter preferido westerns a ficção científica; mas acho que a principal razão para essa antipatia, mesmo, era o fato que o programa era mais adulto que a média, ao menos para mim. Ir aonde ninguém fora levantava questões mais complexas do que as que os membros biônicos de Steve Austin resolviam. Eu não sabia na época, claro. Entendo agora.

Mas uns meses atrás, ao ver que a Netflix exibe o seriado, parei para assistir pelo menos a um episódio. E então veio a surpresa: eu, que ando entediado dessas coisas todas, dessas séries que se repetem indistintas, me apaixonei tardiamente por Star Trek, mais ou menos como David Copperfield, depois de muitos anos, finalmente enxerga em Agnes a mulher de sua vida.

Ao contrário dos roteiros rarefeitos e esquemáticos de Star Wars, em que ritmo e efeitos tentam ocupar sem sucesso o vazio de ideias, foi quase uma revelação descobrir o que milhares de pessoas sempre souberam: que “Jornada das Estrelas” vale não pelos efeitos toscos, mas pelas ideias que traz. Que o mais importante no seriado é a história que ele conta, as reflexões que ele suscita sobre a humanidade, e principalmente os ideais sobre os quais ele está baseado.

O humanismo universal inerente a Star Trek, a ideia de um futuro de igualdade e respeito (dizem que foi o primeiro seriado a dar um papel de frente a uma mulher negra, antes de Julia, e além disso tinha um personagem soviético no comando da nave em plena Guerra Fria, apenas alguns anos depois da crise dos mísseis em Cuba) eram atuais em seu tempo, e continuam válidos hoje. Mais que isso: meio século depois, são ainda mais necessários.

A mensagem de “Jornada nas Estrelas” era boa; aqueles eram anos em que, apesar de tudo, a humanidade ainda tinha alguma fé no seu futuro. Mas de lá para cá muita água passou sob a ponte de comando da Enterprise. Essa meta démodé de igualdade, compreensão e multiculturalismo parece estar sendo hoje suplantada pelo discurso identitário, cada vez mais sectário e hermético. A crescente afirmação de conceitos delirantes como apropriação cultural e quetais dá a impressão de que o ideal do mundo hoje é uma espécie de “separados, mas iguais” redivivo. Os tempos estão difíceis. Talvez por isso tenha sido em plenos anos 2010, mais de 50 anos depois de sua estreia, que o seriado passou a me interessar.

Mas não tanto assim. Trekkie ma non troppo, a verdade é que se estou fascinado agora com um seriado que sempre esteve por aí, meu nível de conversão não é tão grande assim, e não tenho nenhum interesse nos zilhões de spinoffs que ele gerou. Uma única exceção à regra: talvez por ser algo atual, assisti aos episódios disponíveis de Star Trek: Discovery.

Fico imaginando o que a série original faria com as novas técnicas de filmagem e efeitos especiais. Mas imagino também o que a nova versão faria com os argumentos originais. Porque ela é tão inferior, tadinha. Toda a profundidade do seriado parece ter sumido no ralo: do congraçamento universal que parecia ser o seu Graal, agora devemos acompanhar a saga individual dos tripulantes perfeitamente adequados aos padrões narrativos de Hollywood hoje em dia. Mais que isso, parece responder bem a tempos cada vez mais individualistas.

Junte a isso um fato meio engraçado — ou revelador: eu assisto a Star Trek dublado. É engraçado porque, embora seja fã absoluto da ideia da dublagem, filmes e seriados dublados me afligem. É quase intolerável. O que vejo, especialmente no YouTube, são basicamente viagens nostálgicas, para reencontrar vozes familiares como a de Carlos Vaccari, sons de uma infância que se foi há tempo demais. Mas “Jornada nas Estrelas” para mim só faz sentido dublada.

Essa é a segunda dublagem, a da VTI feita no início dos anos 90. Eu a considero melhor que original, da AIC, embora prefira, de longe, a abertura da AIC com a locução empostada de Antonio Celso à vozinha safada e canastrona do Capitão Kirk. Para começar, a voz de Spock é do Márcio Seixas.

***

A despeito de tudo isso, dessa conversão tardia, minha desconfiança em relação aos outros trekkies, à sua incapacidade de entender o mundo e a inconciliável diferença entre os seus valores e os meus, não estava de todo errada.

Ontem assisti ao 11º episódio da segunda temporada de Star Trek, Friday’s Child. A sinopse você encontra por aí, o que eu quero falar é de uma cena específica.

McCoy está tentando ajudar uma moça, de outra espécie, a parir. (A propósito, a moça é interpretada pela Julie Newmar.) Pelos costumes do seu povo, ela resiste a ser tocada por um homem. Depois que McCoy conquista o seu respeito lhe descendo uma chapuletada na cara — lembre-se, a série é dos anos 60 e tinha elevados ideais, mas a roteirista que escreveu esse episódio nasceu no finalzinho dos anos 30 —, a moça vê o doutor com outros olhos. Encanta-se com sua mão macia em um homem viril.

E então chegamos à tal cena, esta de que quero falar. A moça está sentada numa pedra, entrando em trabalho de parto. Ajoelhado ao seu lado, McCoy apalpa sua barriga, em busca do bebê. A câmera se aproxima e tira a mão de McCoy de foco. McCoy pergunta onde dói. Depois de dirigir um olhar de soslaio que só uma Mulher-Gato pode dar, a moça responde: “Dói… Aqui.” E a cena se encerra com McCoy arregalando os olhos. No áudio original ela ainda dá uma risadinha, o que sumiu na dublagem.

O detalhe assustador é que procurei por aí comentários sobre essa cena, mas sem nenhum sucesso. Nenhum dos fãs, que dissecam cada detalhe de cada episódio do seriado, que buscam o significado de cada frase boba dita, ninguém parece ter comentado isso — e eu sou de um tempo em que a internet parecia ser dominada por nerds que conheciam cada palavra do seriado. A cena é tão insignificante que sequer existe na internet, e por isso me vi obrigado a publicá-la no YouTube.

Milhões e milhões de palavras foram escritas sobre “Jornada nas Estrelas”. Há milhares de pessoas espalhadas pelo mundo que se dedicaram a comentar cada episódio, elucubrar teorias sobre quase qualquer insignificância, desde que seja algo óbvio, desenhado. É coisa que os nerds entendem. Mas as sutilezas da sacanagem não parecem ser seu forte, e sem ninguém para explicá-la, aparentemente foram incapazes de perceber o conteúdo sexual dessa cena. Em um seriado que dá aos fãs horas e horas de comentários sobre os affairs do Capitão Kirk, isso é no mínimo digno de nota. No fim das contas, acho que eu tinha razão.

A Menina do Lado

Nos primeiros cinco minutos de filme, incluindo os créditos de abertura, o que chama a atenção são os vestígios de um mundo que não existe mais. Orelhões, fitas cassete, máquina de escrever, um Passat. Ao longo do filme, outras antiguidades vão aparecendo: Malt 90 em latas de folha de flandres, sacos de compras em papel pardo, resquícios de um mundo que existiu logo ali, mas já foi embora.

Esses artefatos arqueológicos de uma era que passou marcam a idade de “A Menina do Lado”. O filme é de 1987. Assisti a ele mais ou menos nessa época — não no cinema, mas em videocassete, outra relíquia que o tempo enterrou. Quase tanto quanto a história, me impressionou na época (e a muitos outros) a qualidade técnica do filme, superior à média do kinemanacional de então, a naturalidade de diálogos, a trilha sonora de Tom Jobim dando o clima mais que adequado ao filme.

“A Menina do Lado” conta a história de Mauro e Alice. Mauro é um jornalista enfurnado numa casa à beira da praia em Búzios para escrever um livro; Alice é uma garota que passa férias sozinha na casa da família, vizinha à alugada por Mauro. Mauro está beirando os 50 anos; Alice tem 14. Naquele ambiente isolado, livre das condicionantes do mundo cotidiano, longe das tantas coisas que nos ajudam a perceber a nós mesmos mais velhos ou mais jovens, nasce entre os dois uma paixão que se desenrola com a leveza de uma tarde sob o pôr do sol de Búzios. O espectador até esquece que, além de velho, Mauro é casado e seus filhos são mais velhos que Alice.

Então eu tinha aproximadamente a idade de Alice; revê-lo agora, quando estou mais perto da idade do Mauro do que daquela garota, deveria me dar uma visão diferente do filme: uma percepção recondicionada de “A Menina do Lado” como obra cinematográfica, claro, mas também da história que ele conta.

Mas o tempo não faz isso. Continuo achando o que achei então: o filme de Alberto Salvá é de uma delicadeza e de uma beleza enormes, algo incomum naqueles tempos em que a intelectualidade sudestina parecia inexoravelmente fascinada com o marginal, com a transgressão que a brutalidade do mundo atual parece ter tornado banais e quase pueris (apenas para efeito de comparação, vale a pena dar uma olhada em “Fulaninha”, de Davi Neves, filme da mesma época e com alguns traços em comum, mas mais preocupado em fazer um retrato pitoresco da Copacabana mítica da Prado Júnior). Mas talvez por entender melhor o que Alice significa para Mauro, hoje se torna impossível não achar que essa beleza e delicadeza eram ainda maiores em seu tempo.

O filme toma o cuidado de mostrar o nascimento da paixão em Mauro com delicadeza, evitando quaisquer paralelos possíveis com “Lolita”, a referência mais óbvia em se tratando de uma diferença tão grande de idade. Ao contrário de Humbert Humbert, em nenhum momento Mauro é apresentado como um predador obcecado, e aceita passivamente a evolução do relacionamento com Alice; diferente de Lolita, Alice não joga com o desejo de Mauro, e não está condenada a perder esse jogo como a jovem Dolores. O relacionamento entre Mauro e Alice não apresenta nada de doentio. Não que seja infenso aos problemas que a diferença de idade causa, ou que a própria situação não seja vista por ambos como complexa, mas as diferenças e a paixão são encaradas, acima de tudo, com naturalidade.

De certa forma, “A Menina do Lado” era um tanto anacrônico em seu tempo, e estava uns 15 anos atrasado. Na virada dos anos 60 para os 70 o tema parecia estar no ar: uma série de filmes abordou o mesmo tema, a paixão complicada entre gerações diferentes, como There’s a Girl in My Soup, com Peter Sellers e Goldie Hawn, Breeze, filme de estreia de Clint Eastwood, ou “Ensina-me a Querer”, que se não é clássico é pelo menos um filme cult há quatro décadas.

Ainda assim o filme despertou certa polêmica. Afinal, mesmo que se adote a postura leniente de que tudo é normal, o namoro entre um homem de 45 anos e uma garota de 14 é, no mínimo, incomum. Havia um nível diferente de tolerância, desde que respeitados alguns preceitos, mas os anos 80 não foram uma época de permissividade total. Isso fica claro na cena em que Adriano Reis, no papel de Lourenço — que aparece em cena logo depois de Mauro contar a Alice a história de Romeu e Julieta, história que tem como um de seus principais personagens um padre cujo nome não consigo lembrar agora —, se apavora com a notícia. No entanto, tenho a sensação de que, comparado às polêmicas de hoje, mais intensas, mais grosseiras e cada vez mais curtas, tudo foi bastante leve. Talvez porque naquele tempo a paixão de uma adolescente por um homem casado de meia-idade fosse insólita, até assustadora, mas não criminosa.

Mas o que mais me chamou a atenção agora não foi isso. É o fato de que essa polêmica hoje não existiria. Porque “A Menina do Lado” jamais seria feito em 2017.

Para ser válido e aceito hoje, “A Menina do Lado” teria que ser “Lolita”, talvez ainda mais condenatório, mais óbvio, mais categórico. Antes de crônica de um amor, deveria ser a denúncia de uma violência. Deveria ficar claro que aquela menina foi abusada, que não importa o seu consentimento ou sua iniciativa, não importa sequer a sua eventual maturidade.

Parece estar se consolidando uma noção geral de que a obra de arte não pode valer se não se adequa perfeitamente ao codex moral vigente. O mundus novus não aceitaria isso; o coroa necessariamente é malvado, deve saber e ater-se ao seu papel. Por outro lado a visão sobre a sexualidade de adolescentes é complicada e contraditória, defendendo uma liberdade cada vez maior dentro de um espectro de possibilidades cada vez menor. Diante de tudo isso, a nova ortodoxia não pode admitir que algo pré-definido como absolutamente monstruoso possa ser apresentado com um grau quase ofensivo de doçura e delicadeza.

Talvez o mundo esteja mais desiludido hoje, menos ingênuo. Talvez imagine, de saída, o que seriam Alice aos 40, Mauro aos 71. Talvez saiba que um amor assim jamais poderia dar certo, se por certo entende-se “duradouro”. Talvez tanta coisa, mas o que importa é que o calar de vozes e de experiências no campo artístico nos torna mais pobres. Não se trata da evolução dos costumes, de uma noção mais abrangente de tolerância e respeito: trata-se, ao contrário, do exagero normativista cada vez maior, do calar de vozes dissonantes e de um constante recurso à histeria como política.

Decididamente 2017 é um mundo diferente daquele de 1987. Um sinal disso é o fato de que há duas versões do filme no YouTube. Uma delas, a que tem mais republicações e visualizações, é uma versão mutilada e sanitizada: cortou as cenas de sexo e, o que é muito pior, a cena em que, num acesso de ciúmes, Mauro agride violentamente Alice. Como se o mundo, 30 anos mais velho, não fosse mais capaz de assistir àquelas cenas sem ter um ataque apoplético fulminante. Talvez não seja, mesmo.

De qualquer forma, é difícil condenar peremptoriamente esse mundo (desde que se releve aberrações como a recente onda de moralismo hipócrita, histérico e autoritário patrocinado por entidades como o MBL, que infelizmente pode ser explicada dentro de um contexto que os exageros do politicamente correto ajudaram a criar, ele também hipócrita, histérico e autoritário). É, afinal, um mundo com novos códigos — não melhores ou piores, mas diferentes, e sempre uma resposta ao seu próprio tempo. No entanto, é incômoda a sensação de que se está perdendo também a capacidade de enxergar o mundo fora do espelho — o que é estranho justamente numa sociedade que, mais rica do que nunca na história, acha que tem o direito absoluto a qualquer tipo de prazer, desde que em um mundo cada vez mais asséptico.

Rubem Fonseca, 8 anos depois

Eu não vou esquecer de quando li “O Cobrador” pela primeira vez. Tinha 19 anos e tinha dormido na casa de uma amiga. Acordei sem ninguém em casa, porque ao contrário de mim as pessoas tinham vergonha na cara e trabalhavam, e sem ter o que fazer abri o livro que tinha comprado no dia anterior.

Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo. Um cego pede esmolas sacudindo uma cuia de alumínio com moedas. Dou um pontapé na cuia dele, o barulhinho das moedas me irrita.

Aquilo era diferente de tudo o que eu conhecia. Era como se eu finalmente tivesse entendido Manuel Bandeira farto do lirismo comedido do lirismo bem comportado do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor. Sabia dele, claro, porque uns poucos anos antes, quando “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos” fora lançado, a máquina de divulgação da Companhia das Letras, à época uma editora fascinante, fez com que a notícia extrapolasse o meio literário, virando quase um evento social. Mas não o conhecia. E então, de repente, dou de cara com aquele sujeito bruto, seco, visceral.

Faulkner jamais me daria novamente o choque que me deu em “O Som e a Fúria”, Dostoiévsky jamais repetiria a cena do assassinato das velhas usurárias por Raskólnikhov, ninguém pode imaginar a minha decepção ao ler “Dublinenses” depois de “Ulysses”, ou “Laranja da China” depois de “Brás, Bexiga e Barra Funda”.

Mas depois de “O Cobrador”, de “Feliz Ano Novo”, depois de conhecer boa parte dos livros dele publicados até então, li “Lúcia McCartney”, e de novo fiquei boquiaberto, sem reação que não fosse o deslumbre total. Ainda hoje “Lúcia McCartney” é, para mim, o melhor livro de contos escrito em língua portuguesa. A diversidade de temáticas e de abordagens, a verdade contida em cada um dos contos, a ambição literária que se podia ver nas palavras de um sujeito que sabia de onde sua prosa vinha, tudo aquilo me deixava embasbacado e impressionado.

Infelizmente foi mais ou menos nessa época, no começo dos anos 90, que essa magia devocional que já durava mais ou menos um ano se acabou. Um pouco depois de “Lúcia McCartney”: eu tinha esperado ansiosamente o lançamento de “Romance Negro”, mas já nas primeiras páginas uma frase me incomodou: “Seu corpo nu está me dizendo que é tudo verdade”. Corpos nus não dizem muito, dizem se têm frio ou calor ou vergonha ou medo, se estão excitados, e essa frase me soou tão falsa, tão artificial — especialmente nele, que escrevia brilhantemente a partir das verdades mais básicas, sem floreios, um Hemingway que deu certo — que foi como se, de repente, o meu deus infalível se mostrasse bêbado num fim de noite, olhado com desprezo pela moça que iria com ele para casa, um deus não tão infalível assim.

Mas aquele era um bom livro e isso era apenas uma bobagem menor que podia ser deixada para lá. Depois a coisa piorou, porque “O Selvagem da Ópera” era um livro tão destoante, e uma sequência de livros medianos (“Histórias de Amor” ou “O Buraco na Parede”) ou ruins (“O Doente Molière” é vergonhoso, “Diário de um Fescenino” não é muito melhor) transformou minha devoção em agnosticismo.

Curiosamente, à medida que sua obra ia decrescendo em qualidade, um fenômeno não tão curioso se consolidava: Rubem Fonseca parece ser protegido por uma certa camaradagem literária carioca, como se seus pares tentassem protegê-lo do mundo mau lá fora em respeito à sua obra pregressa, monumental. Basta olhar os jornais: não importa quão ruim seja um livro seu, sempre vai haver uma crítica favorável, no mínimo condescendente, em algum grande veículo de comunicação. Exemplos tantos de uma boa vontade generalizada, uma prontidão em inserir o livro no “estilo”, no “universo” de Rubem Fonseca. Vai ser fácil encontrar neles aquela vontade de ser amigo, de chamá-lo Zé Rubem, identificar aquela admiração necessariamente complacente que devia ser proibida numa reportagem sobre qualquer pessoa.

Daí se pode imaginar o prazer com que li “Secreções, Excreções e Desatinos”, um livro “conceitual” como o Sgt. Pepper’s. Mas foi alegria efêmera, porque a ele se seguiram livros menores — eventualmente interessantes, como “Pequenas Criaturas”, mas nunca grandes. Ele mudou de editora (perdendo as capas lindas, tão lindas de Hélio de Almeida) e lançou “O Seminarista”, livro tão tosco que chegava a ter erros de continuidade.

Eu não tinha mais interesse em Rubem Fonseca. Em 2011 vi que ele tinha lançado dois novos livros, “José” e “Axilas e Outras Histórias Indecorosas”. Deixei para comprar depois. O depois veio e passou, e de tanto deixar eu esqueci. De lá para cá, durante muitos anos ele não me mandou mais notícias, não falou mais comigo.

***

E daí que depois de alguns anos sem saber de Rubem Fonseca, sem sequer reler seus livros, fui procurar sua biografia e descobri que desde “O Seminarista” ele tinha lançado mais cinco títulos. Deus habitava meu coração nesse dia, segunda-feira passada, e comprei os cinco de uma vez. Chegaram mais rápido que de costume. Li-os todos em umas seis, sete horas.

Comecei pelo último livro de que me lembrava, “José”. Tive uma surpresa agradável: em vez de uma novela, tratava-se de um pequeno livro de memórias que, apesar do tom meio desconjuntado, do apego excessivo ao seu próprio estilo pouco adequado a reminiscências, acaba apresentando uma doçura da velhice, quase intimidade, ainda mais insuspeita em um sujeito cujo mundo literário é no mínimo singular.

“Axilas e Outras Histórias Indecorosas” é mais um livro de contos. O primeiro, “Sapatos”, é muito bom, evocando os idos tempos dos anos 60 e 70, em que por trás do seu estilo havia uma visão ética de mundo e uma indignação que mais tarde se perderiam. O resto é uma sucessão de às vezes pouco, às vezes nada bem-sucedidos contos que, no fim das contas, parecem apenas variações da mesma história. É como se Rubem Fonseca escrevesse com má vontade, com pressa, até impaciência. Parte de situações bobas que não consegue resolver adequadamente, apelando sempre para uma solução que agora deixa de ser necessária para ser apenas fácil.

A mania de fazer pequenas explanações pseudo-enciclopédicas sobre um tema qualquer, cultura de Google que hoje faz ainda menos sentido do que na época em que fornecia esteio para romances inteiros, como as facas de “A Grande Arte” ou os sapos de “Bufo & Spallanzani” ou ainda Bábel em “Vastas Emoções”, agora transplantada para um formato que os dispensa, hoje não é mais que uma caricatura, um cacoete literário que soa constrangedor à medida que se empilha em cada conto — às vezes, é a sua própria essência.

Mais impressionante ainda, por alguma razão “Axilas” mereceu uma tese acadêmica, de Alana Vizentin. Não li, não posso falar nada — mas não li porque não acho que esse livro mereça qualquer coisa além de um contraponto numa mesa de bar, e porque acho que já faz algum tempo que a academia brasileira, por razões internas de sobrevivência e auto-justificação, enveredou por descaminhos bizarros. O que importa é que o fato de alguém se dignar a escrever uma dissertação sobre livro tão medíocre apenas confirma aquela impressão de que, mais do que qualquer outro escritor brasileiro em qualquer tempo, mais até que Guimarães Rosa ou Dalton Trevisan, Rubem Fonseca é o alvo carinhoso de uma condescendência quase suspeita da crítica, que transforma a sua autorrepetição crescentemente pior em estilo, unidade, densidade.

Mas o livro traz, para um velho leitor de Rubem Fonseca como eu, o reencontro com um estilo, e é essa sensação a única coisa que faz sua leitura valer a pena. Um ou outro conto parece quase alçar voo, quase chegar ao padrão a que o escritor acostumou seus leitores. Mas o resto é uma sucessão de peças escritas com displicência que, mais e mais, se assemelham a cópias malfeitas de algo que já foi bom.

“Amálgama”, o livro seguinte, vem com pedigree. Diz um adesivo canalhamente colado à capa que o livro ganhou o Prêmio Jabuti. Alguém deve ter ganho um bom dinheiro para dar esse prêmio, porque “Amálgama” é um livro pior que “Axilas”, por sua vez medíocre. A orelha do livro tenta dar à obra um significado maior do que aquela a que ela pode almejar. O que eu não sabia, quando li “Secreções, Excreções e Desatinos”, é que ali Rubem Fonseca tinha descoberto uma fórmula para salvar seus livros cada vez mais fracos, mais descuidados: aglutine os contos sob um tema geral e o conjunto talvez esconda o fato de que eles são ruins. Funcionou em “Pequenas Criaturas”, um pouco menos em “Ela e Outras Histórias”, mas não pode salvar “Amálgama”.

A angústia existencial dos personagens de Fonseca agora se resolve, quase invariavelmente, com o assassinato. Essa sempre foi uma constante na sua obra, mas agora, de tão repetido, e em situações tão simplórias, o recurso perde significado. Personagens cada vez mais mal resolvidos, mais implausíveis, delineados de maneira tão descuidada, parecem matar apenas porque matar é fácil, ou porque esse é o final que se espera de uma história de Rubem Fonseca. Não há mais criatividade ou pujança: a literatura de Rubem Fonseca hoje se resume à aplicação quase mecânica de seus trejeitos e fórmulas sobre uma situação qualquer, sempre fácil.

Esta resenha de Luís Augusto Fischer me parece adequada. “38 contos, todos fracos, vários muito ruins, um ou outro de dar dó” é algo que define, e com uma grande dose de compaixão, “Histórias Curtas”.

E então vem “Calibre 22”, o mais recente livro. O primeiro conto traz uma ironia verdadeira e uma atualidade temática que parece indicar que o velho Rubem, apoiador do golpe de 64 e roteirista do IPES, pelo menos transformou sua visão de mundo em literatura de verdade, sintonizada com seu tempo. É só ilusão, no entanto: a ele se seguem contos e mais contos que repetem as mesmas anedotas mal estruturadas, mal escritas. Até mesmo Mandrake (que já tinha sido muito maltratado em “Mandrake: A Bíblia e a Bengala”), personagem recorrente desde os anos 60, se torna apenas mais um nome, alguém sem história, sem razão de ser. O conto que ele protagoniza, e que dá título ao livro, é tão vazio que faz pensar por que Rubem Fonseca colocou o que é seu personagem mais conhecido para protagonizá-lo, porque podia colocar qualquer um.

Rubem Fonseca se transformou em um pastiche de si mesmo, e talvez a melhor imagem para ilustrar essa transformação seja o fato de que, neste livro, “O Cobrador” se transformou em “O Matador de Corretores”, quase uma paródia triste e senil de sua obra. A coisa se torna tão séria que, embora as críticas favoráveis continuem pululando como sapinhos numa lagoa, apreciações corretas do verdadeiro valor de cada livro se tornam mais frequentes. Como esta, de Sergio Rodrigues, que beira o desrespeito — ainda que justo.

São quatro livros de contos publicados em seis anos. É impossível deixar de desejar que Rubem Fonseca tivesse evitado publicar tudo aquilo que escreve, que tivesse elaborado melhor seus contos, separado o joio tão abundante do trigo cada vez mais escasso, porque o resultado seria melhor. Ao longo desses quatro livros, alguns contos apresentados como medíocres ou francamente ruins poderiam ter dado origem a algo realmente bom. Mas a pressa que se depreende de sua escrita parece ser existencial. Não interessa mais a qualidade. O que Rubem Fonseca quer é continuar publicando, porque apesar do que ele diz, a literatura ainda faz sentido, e é isso que nos mantém vivos. Mesmo que nos mate aos poucos.

Sebos e livrarias

Uma livreira da 7 de Setembro, há uns bons anos, reclamou comigo que a internet estava matando os sebos do Rio. Eram os livros didáticos, paradidáticos e de referência que os sustentavam, desde sempre, mas o Google e quetais estavam acabando com a utilidade dessas publicações. Ela via seus livros empoeirarem ainda mais nas prateleiras sem que ninguém mexesse neles, e antevia o dia em que, como outros antes dela naquela mesma rua, teria que fechar as portas.

Não percebi na hora, mas devia haver ali um recado disfarçado para mim, de que não seriam pessoas como eu, que fuçavam suas lojas atrás de algum livro valioso vendido a preço de banana, ou buscavam os saldões expostos na entrada em busca de algo que prestasse, também ao mesmo preço, que os salvaria.

De lá para cá, pelo que ando vendo, as coisas pioraram muito. Um a um, os sebos que eu conhecia vão fechando. Seu mercado encolhe a cada dia. Quando fecha um sebo famoso, como o São José da Primeiro de Março, o mundo vem abaixo; mas a verdade é que os primeiros a fechar foram aqueles com menor conhecimento dos objetos que vendiam, justamente os que me permitiam encontrar aquelas pequenas pérolas por preços risíveis, aqueles que mal sabiam a diferença entre velho e clássico, e que achavam que capa dura era sinal inequívoco de qualidade. Os poucos que resistem parecem se especializar em nichos mais restritos e com maior margem de lucro, como edições raras. Mas mesmos esses sofrem a concorrência avassaladora da internet. Há uns anos, atrás de um livro autografado por Jorge Amado para dar de presente à minha então namorada, sequer procurei nos poucos sebos daqui; sabia que não o encontraria. Em vez disso, corri para o Mercado Livre.

A Estante Virtual e a própria Amazon são pequenos paliativos para os sebos e, se salvarão alguns, não poderão salvar o mercado que paradoxalmente ajudam a destruir. Mas a internet fez mais mal às livrarias. Um artigo publicado no New York Times lembrou que livrarias estão se tornando pouco mais que showrooms onde você vai olhar os livros que pretende comprar mais barato online. O fenômeno é mais claro nos Estados Unidos; aqui, como a diferença de preços ainda é relativamente pequena, o estrago é um pouco menor — mas é inexorável, ninguém se iluda.

Minha infância foi marcada pelas livrarias Civilização Brasileira, em Salvador. Minha adolescência foi marcada pelas livrarias Civilização Brasileira, em Salvador, e pela Didática de Aracaju — onde eu tinha eternas coleções, sempre renovadas, de promissórias algumas vezes vencidas (o que, curiosamente, nunca os impediu de continuar a me vender fiado). Foi na Didática que li, em pé, todo o “Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída” — um bom livro para se ler aos 12 anos, como eu li. Foi lá que encomendei, um a um, os volumes da “Comédia Humana”. Foi ela que teve a coragem de vender a edição portuguesa de “Os Versículos Satânicos” pouco depois da fatwa de Khomeini. Era lá que, vez em quando, Marivaldo me avisava que um livro que poderia me interessar havia chegado.

A Civilização Brasileira tem outra história. Ela é uma das principais lembranças de infância; cresci com livros que traziam nas guardas o seu selo. Foi numa das Civilizações Brasileiras da Avenida Sete, por exemplo, que meu pai me mostrou que, sabendo procurar, era possível achar livros mais baratos — no caso, os cinco volumes da “História da Literatura Brasileira” de Sylvio Romero, diante de mim enquanto escrevo isto porque adoro a maneira como ele esculhamba Machado de Assis.

Mais tarde, na adolescência, era lá que eu via livros mais refinados e caros que jamais encontraria em Aracaju — livros de fotografias da Bahia antiga, uns tantos livros importados; foi lá que descobri Pierre Verger. Até hoje, a Civilização Brasileira, por provinciana que eventualmente fosse, me lembra essa sofisticação e variedade que me encantavam sempre que eu voltava a Salvador. Foram as Civilização Brasileira do centro da cidade que, ao longo dos anos 80, percorri em busca de livros sobre os Beatles — foi na rua da Ajuda que comprei meu primeiro livro sobre a banda, o de Geoffrey Stokes, e lembro da ansiedade ao carregar aquele volume enorme, embalado em papel celofane vermelho, até a casa de minha avó na Saúde.

Mas então vieram as grandes redes para engolir as pequenas livrarias, aquelas que floresceram enquanto as cidades pertenceram às pessoas. Conglomerados como a Saraiva fizeram com que as livrarias locais perdessem condições de competir. Agregaram outros serviços, ampliaram o escopo de produtos à venda. Numa Saraiva você compra o livro da moda enquanto toma um café superfaturado, e se for um completo idiota — o que pode lhe poupar muitos dissabores na vida, é preciso reconhecer — pode até se imaginar no Café de Flore; mas não acho que, nesse caso, você vá estar interessado nisso.

A Didática não existe mais. Fechou de repente, eu nem morava mais em Aracaju. A Civilização Brasileira, por sua vez, morreu de maneira mais lenta e mais degradante.

Foi um choque quando, há alguns anos, vi que ao menos a loja da Civilização Brasileira do shopping Iguatemi tinha sido remodelada para ficar igual às Sicilianos da vida. Era óbvio que se tratava de uma tentativa de mimetizar-se no inimigo. Mas para mim aquilo era apenas uma mostra de desespero e de maus augúrios para um futuro cada vez mais duvidoso.

Acima de tudo, ela tinha encerrado seus últimos vestígios de identidade própria. Porque o que faz mais falta nas livrarias antigas é isso: sua personalidade. Uma livraria era diferente da outra, e não apenas pela escolha dos livros que oferecia em suas estantes. A partir daquele momento, a Civilização Brasileira era apenas uma Siciliano com estoque mais pobre. E um pedaço da minha infância morria ali.

Claro, nem tudo na vida é preto e branco. Filmes como “Mens@gem Pra Você” encamparam a luta romântica e quixotesca das pequenas livrarias, carpindo a pequena e charmosa livrariazinha do bairro que é engolida pelas grandes redes. Acontece que a resistência de um modo de vida suplantado pelo novo devorador de inocências é agradável aos olhos, mas inegavelmente também tem muito de pieguice boba. Assim como os cinemas de rua, as pequenas livrarias sucumbem porque as pessoas encontram melhor relação custo/benefício em outros lugares. Por mais agradáveis que sejam, por mais simbólicas e mais importantes em termos urbanos que sejam as lojinhas da esquina, a verdade é que elas desaparecem porque alguém faz o que ela faz de maneira mais eficiente.

Esses conglomerados se adaptaram ao novo mundo, e não sei se se pode realmente lamentar esse fato. Mas isso não me tira o direito de chorar as minhas livrarias. Raramente compro alguma obra nos mercados de livro que frequento. Saraivas são lugares de passeio para mim, um olhar as novidades, um café de vez em quando — mas livros, mesmo, só de vez em quando, e só por impulso. E faço isso, em parte, por desagravo ao mundo que elas tiraram de mim.

Resta um consolo, apenas. As redes não estavam sozinhas na cadeia alimentar e a história ainda não havia terminado. A internet viria vindicar as pequenas livrarias, porque Deus é cruel e canalha, mas é justo. E enquanto tomo um café na Kopenhagen quase em frente à Saraiva do shopping, olho para ela com a paciência fria dos sabem o que é o verdadeiro ódio, e um só pensamento na cabeça: “Sua hora há de chegar.”

Os burgueses do porto de Calais

Lendo aqui que na Coreia do Norte fotos de soldados são proibidas.

Ditadura, gritam. Opressão. Queremos liberdade para eles. Como é ruim viver num país assim, onde não se pode tirar uma simples foto. Morte ao gordinho maluco.

E aí lembrei de um pequeno episódio no porto de Calais.

Naquele tempo ainda se usavam máquinas fotográficas. Puxei a minha para tirar umas fotos do lugar; era uma área comum, ao ar livre, eu sequer estava no centro de operações do porto. Então uma lourinha de uniforme vistoso veio correndo até mim.

Eu certamente não percebia que portos são, ao menos em tese, unidades militares. Muito menos que um paraíba com uma câmera na mão pode ser na verdade um espião perigoso a soldo dos soviéticos, homem de artes e talentos saídos diretamente de um livro de John Le Carré. Perigosíssimo, eu. Um paraíba tão insidioso que, em vez de usar câmeras em canetas ou em botões de camisa ou implantadas na íris, tentava dar uma de turista desavisado com uma câmera furreca. Afinal de contas, quem seria tão idiota para tirar fotos de um lugar feio como aquele? Pensando nisso agora, com a serenidade e a clareza que o passar dos anos às vezes nos dão, eu devia me sentir lisonjeado: na verdade, eles me tomaram por muito, muito mais do que eu poderia ser.

Porque o que eu sabia era outra coisa: que fora ali que D’Artagnan embarcara em direção a Londres para encontrar o Duque de Buckingham e frustrar um plano de Richelieu. Fora ali em que ele tinha mostrado com quantos ferros se faz um buraco no bucho de uns pobres guardas e embarcara com destino à grande inimiga de sua pátria. Tudo bem, o lugar onde D’Artagnan mostrou que era o guarda real mais batuta da Lutécia não devia parecer muito com aquilo que eu via; mais de 350 anos haviam se passado. Mas para mim Calais é e sempre será, antes de qualquer coisa, um cenário para D’Artagnan mostrar sua bravura e lealdade à rainha.

Mas a guarda lourinha estava se lixando para o mosqueteiro, Darta quem?

Ela era bonitinha, britanicamente bonitinha. Com aquela simpatia inglesa, me disse que era proibido tirar fotos ali. Bem simpática, a moça, tentando fazer o seu trabalho com o máximo de civilidade possível, acostumada provavelmente a reprimir, todos os dias, centenas de turistas desavisados como eu, tarefa ainda mais doce porque feita na terra dos outros. Simpática, de fato.

Mas eu sou baiano e para mim simpatia é quase amor. Ainda tentei jogar uma conversa qualquer, Hello, my name is John Holmes; mas ali não havia conversa possível. Sorrindo ainda, um sorriso que deve ter se desvanecido em tédio assim que me virou as costas, ela se afastou como quem não entende a cordialidade brasileira. Deve ser o clima, tadinha, o frio e a falta de sol fazem isso com as pessoas.

Tomara que o Google Earth tenha tirado o emprego daquela moça.

***

Foi naquele ano que vi pela primeira vez os “Burgueses de Calais”, de Rodin, nos jardins de Victoria Tower, ali pelos fundos do parlamento londrino. Eu não sou daqueles fãs alucinados de Rodin, mas aquela escultura que evocava justamente um lugar que eu tinha acabado de conhecer ficou na minha cabeça. Imaginei a guardinha inglesa enchendo o saco daqueles pobres burgueses, Sorry, no pictures, sires.

Uns anos depois voltei ao mesmo local, procurando meus companheiros de infortúnio, e os burgueses tinham desaparecido.

Eram os tempos posteriores à crise de 2008, aquela que diziam ser a mais grave de todos os tempos, tempos de desespero e medo do futuro. A ausência dos burgueses foi, para mim, a maior prova de que a crise era mesmo grave, marolinha coisa nenhuma. A crise tinha destruído os burgueses de Calais, eles deviam ter se mudado para Dagenham, deviam estar sobrevivendo do que ainda restava do welfare state inglês, tentando trocar cupons por um pint de Guinness num pub qualquer.

Mas tudo isso eram apenas suposições. Eu tinha uma única certeza: em nenhum momento duvidei que foi aquela guardinha inglesa que tirou os coitados dali.

De lá para cá os burgueses voltaram. Da última vez que andei por lá, os danados estavam no mesmo lugar de antes, com as mesmas cordas no pescoço, em sacrifício não mais a Eduardo III, mas ao deus Mercado. Eu devia saber que nessas crises do capitalismo quem sempre se ferra de verdade são os pobres. E que nesses momentos sempre aparece uma guardinha inglesa para dizer: Sorry, no pictures.

Hitler no Brasil

Uma senhora de grande imaginação chamada Simoni Renée Guerreiro Dias revelou — certamente com grande perigo para sua própria integridade física — um segredo que forças ocultas tentam esconder de nós reles há mais de 70 anos, junto com a existência de ETs congelados nos porões de Washington. Vi agora no National Enquirer History.com que a dita senhora lançou no início do ano um livro em que afirma que Adolf Hitler morreu no Brasil, aos 95 anos.

O History, citando um autor russo chamado Dimitri Boryslev, diz que Stálin estava “convencido de que Hitler havia escapado. Ele suspeitava de um pacto entre o tirano alemão e as potências ocidentais, que teriam poupado sua vida em troca de conhecimentos de tecnologia bélica.” O que é tão óbvio que chega a ser vergonhoso duvidar: todos sabemos que, perto de Hitler, Von Braun era um estudante de terceiro ano primário.

Segundo a tese, foi assim: um submarino veio para a América do Sul deixando os refugiados — como Mengele e Eichmann — em vários países, mais ou menos como uma van parando de ponto em ponto com o sujeito pendurado na porta gritando; “Rio de Janeiro! Puerto Stroessner! Buenos Aires! Aceitamos vale-transporte e tique-refeição!” “Comboio do Holocausto” seria um bom nome para esse submarino da esperança. Ou, se alguém me perdoa a ironia, “Exodus”.

Sem ler o livro, o que posso intuir é que deve ser especificamente aí que entra a tese da senhora Dias. Segundo ela, assim que deu com os costados no Brasil, Hitler se transformou em um tal de Adolf Leipzig e foi morar em Nossa Senhora do Livramento, em Mato Grosso, como prova a foto ao lado.

Eventuais discrepâncias em sua aparência devem ser relevadas. Leve em consideração a passagem do tempo, a diferença de clima: há um mundo de diferença entre a temperatura amena de Obersalzberg e os 89 graus Celsius do inverno mato-grossense, e deve ter sido isso que fez o Führer repensar sua vida, colocar em xeque seus valores e emergir como uma pessoa melhor, provando que nem todo pau que nasce torto morre torto, que todo mundo no fundo é bom, e que a gente deve continuar a acreditar na humanidade.

Porque vir ao Brasil fez bem a Hitler, e a foto prova isso. Antes racista convicto, aqui se atracou a uma negona de responsa que deve ter ensinado a ele coisas que aquela lambisgoia da Eva Braun, com sua rigidez alemã, jamais poderia; e dizia em seu ouvido “ai, Dodô… ai, Dodô…” Seu nome, segundo o Daily Express, era Cutinga; ninguém pode ser amargo se se deita com uma Cutinga.

Antes antitabagista fanático, aqui se rendeu ao cigarrinho — como não sei de quando é a foto, não posso dizer se é Clássicos, Belmont ou Derby; mas o fato de estar na mão esquerda significa que, além de tudo, Hitler se tornou canhoto, o que prova a sua capacidade inacreditável de mistificação. Os trópicos aumentaram suas orelhas e ele provavelmente terminava a noite com uma cachacinha na bodega, não sem antes derramar o pouquinho do santo para abrir os caminhos.

E aí a gente não pode deixar de admitir que Araripe Júnior tinha razão quando falava na tal “obnubilação tropical”:

Agora, responda-se francamente: nessa constante surmenage, quando os corpos, atrelados a uma imaginação superexcitada, a todo o instante gravitam para o leito, há estilo que resista, há correção que se mantenha?

Mas por mais que eu goste da tese da senhora Dias, por mais que a admire pela coragem quase insana, a verdade é que tenho outra teoria. Está mais para “Meninos do Brasil” que para desesperos de fuga num pinga-pinga submarino. Além disso, estou plenamente convencido de que minha tese faz mais sentido na atualidade, e ajuda a explicar o mundo em que vivo.

Todos sabemos que a ciência alemã era uma das mais avançadas do mundo aquele momento. Todos sabemos também que Hitler era chegado numas macumbagens, numas coisas de ocultismo.

Graças a uma farta documentação fotográfica, hoje posso afirmar que, com a ajuda de seus cientistas e de seus magos, descobridores da conexão graálica entre ciência e sobrenatural, Hitler digitalizou completamente a sua mente, tornando-a imortal. Mandou queimarem seu corpo para todos acharem que ele estava morto: aquele churrasquinho de chucrute que os soviéticos encontraram era mesmo de Adolf. Mas a sua essência estava mais viva do que nunca, certamente mais viva que os judeus torrados em Auschwitz.

Hitler não fez isso à toa. Antes de todo mundo, ele percebeu para onde o mundo seguia. Anteviu o mundo hiperconectado do século XXI. Hoje, Hitler está completamente interligado à rede elétrica mundial e à internet, se multiplicando a cada clique numa página do MBL e a cada acendimento de uma lâmpada; e basta olhar em volta de você, basta ver o que as pessoas andam dizendo e pensando para entender que a minha tese este correta: só isso pode explicar o mundo em que vivemos.

Hitler hoje é uma tomada, é milhares de tomadas, talvez milhões, e está mais ativo do que nunca.