Café com Leite

Eu gosto muito de café. Já escrevi sobre isso. E bebo mais café do que as pessoas normais.

Eu também gosto muito de leite. Cru e gelado, ou direto do peito da vaca — qualquer coisa que vem de peito é bom, mesmo. Quanto ao leite, nunca fervido ou com qualquer aditivo, como açúcar ou chocolate.

E gostando tanto de leite, e tanto de café, eu não posso misturar os dois. O simples cheiro de café com leite me dá náuseas, literalmente.

Eu nunca bebo café em casa. Eu nunca bebo leite fora de casa.

Essas idiossincarasias são estranhas.

O dia em que Paul McCartney perdeu seu swing

Um dia, muito tempo atrás, Paul McCartney dialogou com o futuro — e nesse diálogo foi um dos principais artífices da música que se seguiria.

Além disso, sem medo de errar, pode-se dizer que ele foi um dos melhores cantores da era de ouro do rock. Versátil como poucos, capaz de gravar na mesma sessão uma balada como Yesterday e um rock à la Little Richard como I’m Down. Sua voz não tinha a visceralidade de um Lennon, nem conseguia transmitir a emoção e verdade que ele passava; mas ia facilmente a extremos que poucos outros conseguiam.

Os anos passaram, muitos anos, e de uns tempos para cá ele vem se contentando em fazer música — muitas vezes muito boa, por sinal; seus últimos lançamentos não fazem vergonha a um ancião com mais de 40 discos nas costas (comentários sobre eles foram feitos aqui e aqui). Por outro lado, sua voz acabou há muitos anos; McCartney já não é capaz de chegar aos agudos que atingia nos anos 60, até mesmo nos 80; e para contornar esse problema, desenvolveu vícios que o tornam, em alguns momentos, quase brega.

Agora ele resolveu voltar lá para trás. Seu novo disco, Kisses on the Bottom, é uma coletânea de antigos standards americanos — a maioria relativamente desconhecida. Acompanha-o a banda de Diana Krall, responsável também pelo grosso dos arranjos. Pela primeira vez McCartney gravou um disco em que não toca nenhum instrumento (com uma única exceção, violão em The Inch Worm). Talvez isso contribua, em parte, para o fato de que na maioria das canções não há o seu toque, a sua marca. De modo geral, parece um disco de Diana Krall — principal arranjadora do disco e presente em virtualmente todas as faixas — com McCartney nos vocais.

É um erro. Talvez o mais incômodo em Kisses on the Bottom seja justamente isso, os vocais de McCartney.

Ele se aproxima das canções com um tom ao mesmo tempo reverente e autocondescendente; o resultado é apenas pretensioso. A intenção aparente de soar intimista e low key, então, soa caricatural. Sua abordagem das canções é completamente equivocada, deixando evidente sua incapacidade de alcançar as variadas nuances exigidas pelas canções. Isso fica mais claro em canções como Ac-cent-tchu-ate the Positive (duvida? Ouça a versão das Andrews Sisters).

A McCartney faltam tanto a versatilidade vocal e a riqueza tonal dos crooners d’antanho; mas acima de tudo lhe faltam as qualidades de intérprete que essas canções parecem exigir. Ele não tem aquele quê a mais que fazia Sinatra dar uma vida antes inimaginável a uma canção, ou o charme aparentemente preguiçoso de Dean Martin, ou ainda a sensação de casualidade que Bing Crosby imprimia ao que cantava — e, em todos esses casos, uma técnica perfeita. Interpretando velhos standards, McCartney é um mau intérprete, é só mais um cantor. Não é sequer dos melhores: é um cantor sem voz. Além disso, aparentemente o disco pretende ser minimalista; mas não se compara, por exemplo, ao que Fred Astaire fez em The Irving Berlin Songbook. É um minimalismo quase burocrático, o minimalismo batido do jazz aguado à la Diana Krall ou Harry Connick, Jr. que as pessoas ouvem hoje em dia.

Resumindo: o problema desse disco é que Paul McCartney não tem swing.

Em entrevistas ele diz ter evitado durante muito fazer esse disco porque não queria ser comparado a Rod Stewart, que andou perpetrando coisas parecidas nos últimos tempos. Ele devia ter mais medo de ser comparado com Ringo Starr. O que Ringo fez 42 anos atrás em seu primeiro disco solo, Sentimental Journey, McCartney fez agora. A diferença é que Ringo não se levava a sério, até porque não podia, e seu disco tem um tom moderno, ainda que paródico, que quase chega a dar alguma personalidade aos grandes clássicos que o baterista não teve vergonha de regravar.

McCartney, no entanto, está sempre tentando se manter à altura de sua história. Talvez por isso tenha tido o cuidado de evitar ao máximo os grandes clássicos do cancioneiro americano. Foi uma medida acertada. Se se aventurasse a interpretá-los, o resultado seria provavelmente trágico, evidenciando ainda mais suas limitações. Uma pista disso está em Bye Bye Blackbird. Sua interpretação aqui é, em uma palavra, tenebrosa. Cheque a versão de Doris Day — que dificilmente seria incluída entre as mais conhecidas — para ver como se pode cantar essa canção com simplicidade e alcançar resultados excelentes. Em vez disso, McCartney acrescenta floreios desnecessários e uma interpretação arfante a uma canção que deveria ser interpretada apenas com um banjo, um contrabaixo e uma washboard. (Pensando bem, cheque a versão de Ringo em Sentimental Journey. Até essa é melhor.)

Como você vai baixar o disco nas redes P2P da vida (afinal, a quem queremos enganar, não é?), dê preferência à versão deluxe, que inclui duas canções bônus. Entre elas uma regravação de Baby’s Request, a canção que fechava um dos álbuns mais subestimados dos Wings, Back To The Egg.

Baby’s Request simboliza tudo o que há de errado em Kisses on the Bottom. Em sua versão original era uma canção simples, despretensiosa, que pretendia apenas fechar com graça o disco. Era aquilo que sua letra dizia: uma música para tocar antes de empacotar os instrumentos, depois que todo o salão se esvaziou, uma canção boba para um casal apaixonado em fim de noite que reluta em deixar uma noite perfeita acabar. A nova versão, no entanto, tem outras aspirações; a musiquinha simples se tornou pretensiosa, a voz de McCartney, antes sedutora em sua simplicidade, agora tenta se alçar a maneirismos que já não é capaz de conseguir.

Eu sei que tudo isso parece uma condenação absoluta do disco. Não é. Kisses on the Bottom é agradável, os arranjos são de extremo bom gosto, os músicos são de competência ímpar. E se você deixa de se preocupar com a voz de McCartney, ou sua interpretação de cantor de baile, se aceita sem problemas a sensação de dejà vu nas canções, Kisses on the Bottom se torna o tipo de disco que se pode colocar no CD player em uma noite com os amigos. Ou se no seu carro ou em sua casa está uma moça ou um moço que gosta desse tipo de música. É um disco útil. O problema é que utilidade é a última coisa que se deveria dizer de uma obra de arte.

Kisses on the Bottom tem outra grande qualidade, e essa é inquestionável. As duas canções escritas para este disco são surpreendentemente bem construídas, melodicamente sofisticadas, mostrando que McCartney afinal é um compositor em pleno controle de sua técnica. My Valentine é de uma elegância estonteante, sem perder a marca registrada de seu autor; Only Our Hearts é virtualmente indistinguível do que se fez de melhor nos anos 40. São, provavelmente, o melhor do disco.

Daqui a alguns anos, quando McCartney estiver morto e enterrado e vermes carnívoros não respeitarem suas vontades vegetarianas e devorarem suas carnes, Kisses on the Bottom vai ser lembrado dentro do conjunto da obra de Paul McCartney, talvez o maior artista pop da história. Vai ser visto com um acréscimo importante à obra impressionante de um sujeito que foi capaz de ajudar a mudar o mundo, que escreveu de rocks a balés, de oratórios a sinfonias. Mas enquanto isso não acontece, Kisses on the Bottom é só mais um disco feito para tocar em BG.

Quando eu era baiano

Quando eu era baiano, no Porto da Barra ainda havia butiques de frente para os tamarineiros e para o mar verde, e a vida era fresca e fácil.

Na praia uma pequena língua negra ainda corria em direção ao mar, perto do monumento a Tomé de Souza. E por isso diziam que aquela praia era poluída; devia ser, mesmo, mas que diferença isso fazia, a água da baía talvez levasse embora o esgoto. E se não levava, quem é que ia ligar para uma besteira dessas, deixar aquilo atrapalhar a sua algria? Era na Barra que formávamos amizades instantâneas e efêmeras, e isso é um bem valioso, uma língua negra de nada não ia atrapalhar algo assim.

Os barcos chegavam mais perto da praia, e dava para ir até eles nadando. Os pescadores chegavam com os peixes ainda se debatendo, e você podia brincar com os chicharros que eles lhe davam, piabinhas que em sua mão se transformavam em tubarões monstruosos, ou ainda com os pedacinhos de gelo seco que os vendedores de picolé Capelinha lhe davam depois do segundo ou terceiro picolé de tapioca, o gelo seco queimando a água salgada aos pés do Forte Santa Maria.

Ali perto ainda havia dois clubes, a AABB para fazer natação e a Associação Atlética, ali, no pé do Morro do Gavazza. Era a época da discothèque, da Maria Fumaça pegando fogo figurada e literalmente, e os meninos cabeludos dançavam “le Freak c’est chic — freak out!”, ou “one for you, one for me”, e as meninas não davam para eles e então eles arrastavam empregadas domésticas para os telhados dos edifícios como o Vendaval ali na esquina da Raul Drumond com a Pires Ferreira.

Mas para quem não tinha ainda idade para dançar na Associação ou para arrastar empregadinhas para o telhado, aquele era o tempo de apenas dois canais de TV, a TV Aratu com a Globo e a TV Itapoan com a Tupi. A TV Aratu entrava no ar aí pelas 8 da manhã com um jingle inesquecível: “Bom dia, bom dia, Bahia do meu coração / Que tenhas um dia tranquilo assim / Com a graça de Deus e o Senhor do Bonfim”; e a tarde era a hora de odiar a Tia Arilma com aquele programa chato feito para meninas que a Xuxa depois iria imitar, e por causa dela você ia para a rua, para a Barra que você explorava descalço, sem camisa e imundo, apostando corrida de bicicleta na descida da Oliveira Salazar (que não é mais Oliveira Salazar, tem outro nome agora) entre a Oito de Dezembro e a João Pondé, deixando Marquinhos Moreno de olho roxo na frente do Jaraguá, batendo e apanhando de Jailton — apanhando mais que batendo, infelizmente — ou indo comprar brinquedos baratos lá longe, na Brink Bem da Marquês de Caravelas.

Era a Barra onde Joel instalado numa garagem do Monterey com sua Pfaff costurava calças e camisas ao gosto do freguês, ainda que quase sempre com atraso. Joel que era pai do seu melhor amigo que lhe batia mais do que apanhava, e que levou vocês à Fonte Nova onde jogavam também o Galícia, o Catuense, o Leônico — Joel que agora está numa portinha do mesmo edifício, ao lado do vão de escada para onde você levava suas coisas sempre que fugia de casa. A Barra onde Dinho que morava no Jaraguá foi para a janela na noite em que faltou luz e gritou o que mais tarde seria uma inspiração sempre presente: “E viva a putaria!”; a Barra do cheiro único do Chico Bar, o mesmo cheiro há tantas décadas, a San Remo vendendo frutas e verduras ao lado.

Naquela época a Barra ia além dos seus limites geográficos. Se não fosse assim, como o circo iria até ela? E ele ia. Para aquela parte da Barra que chamam Água de Meninos — o Tihany, alguém lembra do Tihany em Água de Meninos? Alguém pode dizer que aquele é lugar de guerra e de tragédias, de fogo e de fuzis e de escravos vendo sua revolta acabar — mas é mentira, Água de Meninos é lugar de circo, circo com bicho, com tigre e com urso, circo para olhar boquiaberto o trapezista voar no vazio e o domador com chicote na mão mostrar ao leão de bocarra aberta quem é que manda ali.

É por isso que quando eu era baiano via filmes no Guarani, no Tamoio, no Bahia, no Liceu; todos eles ficavam nessa Barra onírica, uma Barra que incluía a praça Castro Alves, a rua Chile, os ônibus e livrarias da Praça da Sé, os rolos grossos de fumo no mercado das Sete Portas, o parquinho de seu Roque no Campo Grande, depois no Tororó, os doces da Nubar diante da sumaúma que você achava ser um baobá, o PlayCenter acampado onde um dia tinha sido o Campo da Graça, o ônibus com sua avó no terminal de Aquidabã, o cheiro insuportável de chocolate da Chadler no caminho para Monte Serrat. E por ser baiano, ainda, ia tomar sorvete de tapioca ou de baunilha na kombi da Primavera, bem em frente ao que tinha sido e voltaria a ser o Hotel da Bahia, ou sorvete de tangerina na Bambinella da Marques de Leão, mesma rua de comer pizza na Pizzaria Guanabara. Ou ia ao zoológico, lendo sempre um pedaço da carta de despedida de Getúlio Vargas, bem ao lado do colhereiro; e no caminho passava por alguma pichação de Faustino ou do Dr. Pênis — “Dr. Pênis é de esquerda”, “Dr. Pênis fez fimose”, ou ainda aquelas que não tinham identificação: “O rato roeu a calçola da graxeira”, “O velho peidou e saiu aguado”.

O Forte de São Pedro ainda tinha suas muralhas rebocadas e pintadas de branco, ainda era um forte português e não um prédio mutilado com pedras aparentes para gringo ver. As velhas ainda vendiam vermelha, pimenta, gengibre e camarão seco em banquinhas diante do Forte, bem em frente da Avenida Hilário, o cortiço onde moraria um de seus melhores amigos; e o Colón ainda ostentava a velhice digna de um marco urbano, quase ao lado de um Paes Mendonça que deixava antever um futuro do qual não participaria, nem ele, nem o do Chame-Chame. E era ali, na avenida Sete, que essa Bahia fazia as compras que precisava, na Fernandez, na Tio Corrêa, na Romelsa Radiolar, o tênis Motoca a gente comprava na Ladeira da Barroquinha, ou era na Ao Leão de Ouro?, a calça Lee a gente comprava na Sloper, era na Sloper?, e os brinquedos ia comprar na Lobrás, revólveres de espoleta que não existem mais. Ali perto, quase aos pés do Relógio de São Pedro, encanadores e seus maçaricos esperavam sua vez, como vinham fazendo há mais de um século, sem saber que o seu tempo estava acabando e os canos de ferro iam desaparecendo e levando com eles seus maçaricos.

São as lembranças que ficam da Barra, e nunca vão acabar: a pizzaria Guanabara, o seu tio vagabundo estudando no Pio X da Euclides da Cunha, o cachorro perdido que você quis criar no playground, a árvore da qual caiu para quebrar o braço e que já derrubaram — toma, filha da puta. A Barra onde Eloína passava com seu maiô branco — ah, Eloína, por que eu não tinha uns quinze anos a mais, e por que eu não sabia dizer no seu ouvido as coisas que você gostaria de ouvir? —, a Barra que servia de contraponto aos cortiços da Misericórdia onde hoje tem loja chique de Pierre Verger, do Terreiro de Jesus, do Pelourinho, da Barroquinha e da Saúde. A Barra que era tão diferente do Taboão, com a Banca do Renato, no Largo da Barra, vendendo revista e trocando dólar para os gringos, a primeira banca com telefone que vi na vida. Tudo isso está vivo em uma Barra que já morreu.

Naquela época ainda havia o Centro Comercial da Barra, um pequeno open mall que deu lugar a quê?, a uma loja, um hotel? Eu não sei, a tragédia das gentes foi acumulando sobre andar sobre andar até que das lojinhas bonitas, elegantes, só sobrou um prédio disforme e improvisado. O que sei é que, assim como o Centro Comercial, a Barra acabou. Eu disse que a vida era fresca e fácil, e era mesmo, mas isso foi quando aquele era o melhor lugar do mundo para se viver, antes dos gringos montarem pousadinhas para seus compatriotas levarem as putas baratas que passam pelas calçadas, antes da Barra cair na lama da qual parece que não vai mais se levantar, antes mesmo de eu deixar de ser baiano.

Mulungu, que chamam por outro nome

Não sei se isso acontece com você, mas de vez em quando eu esqueço os nomes de coisas simples.

Dia desses esqueci o nome de uma árvore. Eu sabia que em algum momento soube o nome da dita, lembrava que era um nome estrangeiro, acho que francês. E a ignorância do nome outrora conhecido passou a me incomodar e exasperar.

Me vinham dois nomes à cabeça. O primeiro era buganvília. Mas eu sabia que não era, sabia que buganvília era outra coisa, era uma plantinha vagabundinha dessas miudinhas, uma primavera. A árvore de que eu falava não, era uma árvore de tronco quase liso, frondosa, folhas esquisitinhas, flores vermelhas, que dava uns frutos que pareciam umas espadas largas com umas favas redondas, parecidas com moedas — quando essa árvore floria era uma beleza, e eu costumava ver tantas delas antigamente.

O outro nome que me vinha à memória era mulungu. Na verdade era uma árvore até que bem parecida, mas não era ela. Mas lembrei que durante muito tempo achei que aquele pequeno enigma desimportante era um mulungu, porque Monteiro Lobato falava dessas árvores em algum dos seus livros — os mulungus que floriam no sítio, algo assim.

Mas alguém tinha me corrigido com o tal nome gringo, exatamente esse nome que eu tinha conseguido esquecer.

(Não podiam ter me deixado na minha ignorância, chamando a árvore de mulungu? Se eu achasse que era um mulungu não tinha esquecido o seu nome. E que mal faria eu achar que a tal árvore era um mulungu, me diga? Isso ia mudar a vida de alguém? Não ia.)

Durante muitas semanas tentei descobrir que árvore era aquela. Não consegui. Aumentei minha cultura inútil, no entanto; aquelas folhas esquisitinhas, na minha busca infrutífera, descobri que eram bipinadas, com vários pares de folíolos. Só não descobri o diabo do nome da árvore que eu procurava.

Lembrei também que antigamente eu via mais dessas árvores pelas cidades, mas elas parecem cada vez mais raras. Hoje sei que minha impressão estava correta: não é só um caso de sair de moda, é uma necessidade objetiva, porque as raízes são e superficiais (o que faz delas árvores mais bonitas, por sinal), invasivas e pouco adequadas à infraestrutura urbana.

Muitos anos atrás, quando moramos em Itapuã, cada um de nós, crianças, ganhou uma das árvores do quintal. Eu tomei posse de um cajueiro que nunca deu caju, ao menos que eu lembre, e minha irmã ganhou uma dessas árvores.

Necessidade besta, essa de saber o nome das coisas. Mas sem isso eu não poderia reconstruir meu passado, e então vem a consciência aguda da importância de um nome; por que você acha que não se podia falar o nome de Deus? O Velho sabia a importância dos nomes próprios. Se algo não tem um nome todo seu, essa coisa não existe. Se ela não existe, meu passado também não — e isso coloca em risco, pelo menos de um ponto de vista bem metafísico, a minha própria existência.

Por isso saí perguntando a quem podia: que árvore é aquela? E ninguém sabia. Curioso: quando o homem vai deixando de ser nômade ele desaprende o nome de muitas das plantas que conhecia. Mas agora era demais, não é possível que sejamos tão urbanos ao ponto de esquecer o nome de uma árvore comum. Isso não pode ser admitido, em nenhuma hipótese. Porque, se se admitir uma coisa dessas, se isso deixar de incomodar, daqui a pouco a gente esquece o nome das coisas mais comuns. “Qual é mesmo o nome desse negócio preto aqui embaixo, Zé?” “Asfalto, Rafael-seu-idiota”.

Perguntei a todo mundo. E descobri que a ignorância acerca do nome de uma árvore comum independe de classe social ou de nível cultural: ninguém sabia. Alguns amigos, mais sofisticados, soltaram umas hipóteses: aquilo era um ipê. Mas ipê é árvore brasileira, e essa árvore se não me engano tinha nome estrangeiro e não era brasileira, era daquelas plantas exóticas que faziam o desgosto de Gilberto Freyre.

Eu desisti.

É feio desistir das coisas, principalmente de uma bobagem como essas. É um paradoxo: desistir de escalar o Everest não envergonha ninguém, por difícil que é; desistir de algo bobo é um atestado de incompetência à vigésima nona potência. Ao mesmo tempo, ressalta o atestado de incompetência passado por quem, em plena era do Google, não consegue descobrir o nome de uma árvore comum e vagabunda. Dane-se. Não me importava mais, não depois de tantas semanas sem conseguir descobrir o nome daquela árvore. E por ser bobagem eu me dou o direito de desistir do que quer que seja.

Aí, na fazenda de um amigo eu vi uma árvore dessas, recém-plantada. O coração bateu mais forte, se me permitem a licença poética. Ele havia de saber que caralho era aquilo, uma árvore tão comum.

E ele respondeu com aquela simplicidade que as pessoas que desconhecem a sua grande angústia existencial: “Tá falando do flamboyant aí da frente?”

A delonix regia. O flamboyant. Árvore vagabunda e comum, dessas que você encontra a três por quatro por aí; e no entanto bateu a minha memória. É, flamboyant — você conhece esse nome, eu conheço esse nome, e ele certamente jamais poderia ser dado a qualquer outra árvore. Se a ordem das coisas fosse invertida, nada isso teria acontecido. Se alguém me perguntasse que árvore é o flamboyant eu diria — é aquela árvore de tronco liso, folhinhas esquisitinhas, e que quando floresce é uma belezura.

Descobri que chamam também de pau-rosa. Eu gosto do nome. Pau-rosa é um nome meio erótico — “Vai sentar num pau-rosa” devia ser ofensa corrente neste país de tantas árvores. Mas isso não importa mais para mim. O fato é que eu não quero mais esquecer o nome do flamboyant. E por isso a partir de agora eu só vou chamá-lo de “mulungu, que os outros chamam flamboyant.”

Literatura, coisa supérflua

Roger Ebert, crítico americano de cinema, escreveu há alguns meses um post no seu blog no Chicago Sun-Times desancando uma adaptação literária de “O Grande Gatsby” para um vocabulário intermediário. Vale a pena ler.

E eu concordo com Ebert.

Essa é provavelmente uma das adaptações menos necessárias de que já tive notícia. Isso não é, claro, uma condenação a todas as adaptações. Li muitas na infância, e não acho que tenham me feito mal, nem me emburreceram. Como “O Conde de Monte Cristo” e “David Copperfield”, versões razoavelmente saneadas de clássicos antigos. No caso de “Copperfield”, por exemplo, é omitido o fato de que Steerforth seduz Emily e indiretamente a leva à prostituição. É por isso que não tenho queixas deles, porque não acho que precisasse saber disso aos oito anos.

Mas “O Conde de Monte Cristo” e “David Copperfield” são acima de tudo grandes histórias, que valem a pena conhecer. Depois de ver o comentário de Ebert passei os olhos na minha edição adaptada do livro de Dickens. Ainda é fascinante. A adaptação de Oswaldo Waddington mantém um bocado da ironia e do humor dickensianos. E, acima de tudo, mantém o espírito dos grandes tipos como Micawber e o meu preferido, Uriah Heep. Desde os oito anos de idade, quando vejo um hipócrita fingindo humildade, é a imagem untuosa, reptiliana de Heep que me vem à cabeça. E quantos Micawbers conheci na vida, gente que apesar de tudo admirei sinceramente.

Infelizmente esse não é o caso de “O Grande Gatsby”. O que Ebert acha é simples e corretíssimo: “O que importa no romance de Fitzgerald não é a história em si. É como a história é contada.” Ele tem razão ao lembrar que é a maneira como o velho cachaceiro conta um pequeno retrato da saga americana que faz o valor do livro, algo que acontece com basicamente toda a literatura moderna. Já faz tempo que o “grande romance” deixou de fazer sentido; de certa forma, ele foi esgotado no século XIX — “Em Busca do Tempo Perdido”, por exemplo, já é outra coisa, já não é Balzac. O que Ebert diz de “Gatsby” se aplica, quase sem exceções, a toda a literatura que veio depois dos modernistas.

Ou seja, a história de “O Grande Gatsby”, em si, não é tão importante que valha a pena ser resumida e reescrita em inglês medíocre para estrangeiros. Ao destruir a prosa de Fitzgerald, eles resumiram a obra a pouco mais que nada e tiram a sua razão de ser. Contada dessa forma simplória, “O Grande Gatsby” é pouco mais que a sinopse de um melodrama oitocentista. Reescrito, perde seu valor literário, e os estrangeiros fariam melhor lendo a tradução em sua língua; para o simples aprendizado da língua do bardo o Google oferece milhões de alternativas mais adequadas. Tampouco é adaptação necessária para crianças: Gatsby não conta uma história para elas, se não estão preparadas para ler o livro original. Elas ganhariam mais lendo “Harry Potter” ou “Crônicas de Nárnia”. (Li o livro pela primeira vez aos 13 anos. E o que me marcou mesmo foi a lista de atividades do jovem Gatsby que Carraway descobre no final. Aquilo me inspirou a fazer listas semelhantes pelos dois anos seguintes. Foi preciso reler o livro alguns anos mais tarde para entendê-lo de verdade e entrever o seu gênio; e, finalmente, castigar o original para ver a beleza da prosa de Fitzgerald, escritor de quem gosto muito mais que Hemingway, por exemplo.)

Mas isso lembra outra coisa, mais incômoda que uma adaptação que as pessoas podem simplesmente ignorar: o valor desproporcional que se parece dar à literatura e à ficção.

Isso vai além da mitificação da leitura em si. A impressão que tenho é que leitura é sobrevalorizada como poucas coisas na sociedade moderna. E o pior é que ler não é nada. A escrita é só o jeito que a humanidade encontrou de preservar e compartilhar conhecimento. Só isso. Mais nada. Uma mosca faz isso imprimindo informações no seu código genético. A gente faz isso nascendo com menos sinapses e utilizando meios externos de preservação do conhecimento.

A partir do momento em que a tecnologia possibilita outras formas de transmissão de conhecimento, a escrita se torna apenas mais um deles. Só isso. Nada que justifique esse fetichismo.

A coisa se torna mais grave quando se fala de literatura. Literatura — mais especificamente ficção — não é necessária, e isso é algo que as pessoas parecem entender cada vez menos. O fato é que, para todo e qualquer efeito prático, ninguém precisa ler ficção, de qualquer tipo. Se você é advogado, do que precisa é de livros de doutrina escritos em português embolorado e da última versão do código de qualquer coisa. Se você é engenheiro, “O Velho e o Mar” dificilmente vai lhe ajudar a fazer o cálculo estrutural de um edifício de 20 andares. Literatura é produto supérfluo de uma civilização cujas elites descobriram há uns cinco mil anos que a escrita era o melhor meio de fixar e transmitir conhecimento e acumular poder. Literatura é coca-cola.

Mas milênios de existência e associação ao poder continuam a mitificá-la. O ato de ler se tornou um valor desejável há tanto tempo que passou a ser um daqueles valores presumidos, inquestionáveis. Ou seja: se eu leio, eu sou melhor que você. Não importa o que eu leio; importa o ato em si. E essa espécie de fetiche parece tanto maior quanto menos lê o fetichista. Ou seja, se eu disser que li 50 “Júlias”, “Sabrinas” ou “Biancas” ano passado, para muita gente vai parecer que li muito mais do que se disser que li apenas um, um tal de “A Montanha Mágica” de um alemão meio viado.

O que faz a ficção importante não é o ato de ler, em si. É o que você lê, e como isso enriquece sua vida. Assim como a literatura moderna diz respeito menos à trama do que à maneira como ela é contada. E ler por ler não quer dizer absolutamente nada. As pessoas dizem que estão lendo um cocozinho qualquer como se estivessem fazendo a hermenêutica de Finnnegan’s Wake; para quê? Isso não tem valor real. Não acrescenta nada. Não é melhor do que ver um bom filme ou ouvir um bom disco.

A melhor evidência da superfluidade da literatura é o fato de que desde o século passado não é sequer preciso ler um livro para saber com bom nível de detalhes o que ele conta. Muita gente que jamais leu “Moby Dick” sabe do que ele trata, sabe que sua primeira frase é “Call me Ishmael”, sabe quem é Ahab, sabe qual o caso que inspirou o livro, sabe como ele termina e sabe que pode ser visto como uma batalha do bem contra o mal, entre tantas outras coisas; sabe até quem fez o caixão que salva a vida de Ismael. Para muita gente isso é suficiente; e talvez seja assim que deve ser. Se a questão aqui é saber o básico da história, em vez de ler uma versão adaptada para “1600 palavras ou menos” é melhor ver o filme com Gregory Peck.

As pessoas, em seu apego a valores antigos, esquecem que o século XX inventou vários outros meios de transmissão do conhecimento, como o gramofone e o cinema. Obviamente eles não podem ter, por sua natureza, a riqueza que a literatura pode alcançar; mas quando se tiram os elementos que fazem essa riqueza, como fizeram com “O Grande Gatsby”, o que sobra é só a história, muitas vezes menor, e para isso esses novos meios são perfeitamente adequados.

Eu, pessoalmente, não levo muito em consideração sequer a idéia de que a gente começa a ler com coisas bobas e vai evoluindo aos poucos. A experiência mostra que muita gente que começa com coisas bobas para por aí, nas coisas bobas, e são muito felizes assim, obrigado. Assim como maconha não leva necessariamente a drogas mais pesadas, Harry Potter não leva necessariamente a James Joyce. É o hábito, o estímulo que fazem uma criança ler. E certamente, em idade adequada, a capacidade de discernir entre o que vale a pena e o que não vale. Por exemplo, minha filha lê e escreve em um nível superior à média das crianças de sua idade. Mas tenho minhas dúvidas de que isso se deva aos livros de Harry Potter que devorou aos oito anos; é mais provável que o fato de se ver às voltas com centenas de livros em casa, livros que ela via o pai lendo, assim como eu via o meu, tenha exercido o mesmo efeito, ou maior.

A essa altura da vida, essa conversa de literatura como um valor absoluto não me empolga mais.

Au revoir, les photogrammes

O André Setaro fez um post falando da experiência moribunda de ir ao cinema.

O saudosismo do Setaro é o meu (e o tal senhor que vendia fotogramas de filmes na Piedade — acho que lembro dele também; se não, lembro de um bem semelhante). Embora mais novo, e certamente menos hostil à televisão, sou outro que sinto essa decadência da experiência coletiva, e lamento por isso.

Um dos poucos filmes a que assisti no cinema durante o ano passado foi “Meia Noite em Paris”. Não é sempre que o Cinemark, esse grande carrinho de pipoca, exibe um Woody Allen assim, na lata; e os meses longos sem ir ao cinema cobravam sua tarifa à minha consciência.

O cinema cheirava a mofo, um cheiro mais forte do que o habitual. E o filme seria exibido com a imagem levemente desfocada.

A menina na poltrona ao meu lado mandava mensagens de texto para alguém. Enquanto ela ria retardadamente durante os trailers, tudo bem; mas fazer isso durante o filme é sinônimo não apenas de má educação, mas de falta de respeito absoluta e grau elevando de cretinice fisiológica. Eu me mostrava desconfortável, olhava feio, encarava, e a idiotinha não percebia. Tive que falar, com toda a doçura que mamãe me deu, que aquilo estava incomodando para que ela se controlasse.

Eu não entendo. Se é para prestar atenção a uma conversa qualquer em vez de ao que se desenrola na tela, por que ir ao cinema? Por que não ficar em casa? Por que não se jogar da ponte?

Mas essas são as novas gerações, e é com elas que temos que dividir as salas de exibição.

Eu me recuso a passar por isso, não tenho mais idade para essas coisas. Nem idade nem paciência. Antigamente, com TVs de 20 polegadas em formato 4:3, a gente tinha que se submeter a esses vexames para conseguir assistir à obra cinematográfica em sua plenitude — tem coisa mais bizarra que assistir a filmes originalmente em Cinemascope ou Vistavision numa tela pequena, quadradinha? Mas nada isso é necessário, agora. As novas TVs têm formato, tamanho e resolução suficientes para apresentar um filme como ele foi concebido, ou quase. E assim oferecem uma experiência melhor do que o cinema tem oferecido para mim; sem falar na possibilidade parar o filme e desmoralizar para sempre o velho e bom Hitchcock, que dizia que um filme deveria ter a duração da resistência da bexiga humana.

A decisão de evitar ir ao cinema vai me poupar de coisas tão ruins. As gentes ao meu lado fazendo barulhos desagradáveis. Projecionistas incompetentes. Os ruídos de pipoca sendo mastigada. Os risos de boca cheia. Os barulhos de sacos de plástico — jujubas, as inevitáveis jujubas — sendo rasgados. As conversinhas bobas de gente sem noção. Adeus. Adeus. Nada disso vai fazer falta.

***

Mas isso implica a deterioração da experiência coletiva. É um sinal ruim de um mundo novo normalmente admirável: o isolamento, a ausência de uma sensação difusa mas reconfortante de pertencimento.

Fico imaginando como era viver 30 e 70 anos atrás, pelo menos no que diz respeito ao cinema.

Há 70 anos ver um filme era experiência relativamente incomum — uma, duas vezes por semana, no máximo. Os filmes ficavam em cartaz durante meses, às vezes anos. Havia circuitos inteiros de primeira e de segunda exibições. Cada grande estúdio produzia uns 50 filmes por ano, e havia espaço para tudo isso. E havia os pequenos, que faziam outro tipo de filme.

Talvez as gerações mais novas não consigam entender o que isso significava. Mas a relação com a obra cinematográfica era diferente. Muitas vezes, se você não via um filme que, por alguma razão, não alcançava muito sucesso de bilheteria, nunca mais teria uma chance de vê-lo. Não havia TV, TV a cabo, DVD. E por isso os grandes sucessos eram reprisados periodicamente. Os filmes da Disney cumpriam um ciclo de cerca de 7 anos. Cheguei a ver “…E o Vento Levou” em cartaz em 1982, um ano antes de estrear na TV.

30 anos atrás — e essa época eu peguei — já havia filmes na TV. Você podia assistir a uns dois longas por dia, talvez três; e ainda tinha acesso a novidades como telenovelas e seriados. Mas o espaço para filmes novos ainda era restrito, eles demoravam a chegar às TVs, e fora delas não havia alternativas. Por isso os filmes ainda ficavam meses em cartaz — alguém lembra dos anúncios nos jornais?, miniaturas dos cartazes em preto e branco e os dizeres: “9a semana de sucesso!” Eu lembro. Lembro de muita coisa.

Ir ao cinema era bom, e era uma experiência rica. Meninos debilóides mastigando de boca aberta e teclando mensagens em seus celulares acabaram com isso.

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Também lembro que faço parte da geração que descobriu o cinema na televisão. Antes do DVD, antes mesmo do videocassete, o que existia era a TV. Foi nela que assisti a dezenas dos filmes que hoje considero entre os melhores da história. E vem daí a minha devoção a um certo crítico de cinema.

Costumamos falar de grandes críticos como Moniz Viana, Paulo Emilio Sales Gomes, Francisco Luiz de Almeida Salles. Mas há um que nem sempre é lembrado: Paulo Perdigão.

O problema é que, de todos eles, para mim Perdigão foi certamente o mais influente. Não pelo que escreveu — acho que nunca li nada dele, e sei basicamente que fez parte da geração brilhante do Correio da Manhã e é o autor de um livro sobre “Os Brutos Também Amam” –, mas pelo que nos fez assistir.

Perdigão era o responsável pela programação cinematográfica da TV Globo. Era ele quem decidia que filmes seriam exibidos. E por isso a Globo sempre tinha um horário na semana para os grandes clássicos.

Nos anos 70 era talvez mais fácil, porque os filmes demoravam muitos anos para chegar à TV, até esgotar o circuito cinematográfico, e então se trabalhava com o estoque das décadas anteriores. E nos anos 80 ainda havia uma lei curiosa, que obrigava as TVs a exibirem pelo menos um filme legendado por semana, para atender aos deficientes auditivos. O SBT exibia lixo, claro (foi assim que assisti a boa parte de “El Neurosurgeano Loco“, um filme mais que trash, piorado ainda mais pelas circunstâncias: era americano, dublado em espanhol e com legendas em português. Juro por Deus.) Mas o Perdigão aproveitava esse horário para exibir clássicos de altíssima qualidade. Era a sessão Cineclube. E onde mais você veria “Em Cada Coração Um Pecado” num domingo à noite, com a melhor atuação da carreira de Ronald Reagan (“Where’s the rest of me?!“)? Ou “Paixão dos Fortes”?

Perdigão ensinou, a mim e à minha geração, a ver cinema. E isso faz dele um dos maiores, se não o maior, crítico do país, pelo menos em sua função social.

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Tudo isso para lembrar a mim mesmo, e talvez me convencer, de que cinema não é tão necessário assim.

Essa gente que bota gosto ruim no nosso amor

Assim que vim morar em Sergipe, no começo dos anos 80, um comercial da Telebrás falava de Canindé do São Francisco — cidade onde hoje está a Usina Hidrelétrica de Xingó. O município sergipano mais distante da capital, situado no alto sertão, na esquina com a Bahia e Alagoas, finalmente ganhava acesso à telefonia, pouco mais de 100 anos depois de sua invenção. Esse era o nível do desenvolvimento da região.

Passaram-se dez anos e então, aí pelo começo dos anos 90, eu costumava ir regularmente à cidade, passar fins de semana na fazenda de um amigo. Aprendi a reconhecer a região e a caatinga. Mas depois fui embora de Sergipe, não vi mais Canindé, não vi mais caatinga e nem essas coisas de sertão.

Passei pela cidade novamente no começo de 2004, e mencionei o fato neste blog para fazer um agradecimento extemporâneo. Aquele sertão que eu conhecia razoavelmente continuava basicamente o mesmo, apenas com as melhorias naturais do tempo. Ao longo das estradas que hoje compõem a Rota do Sertão, e cortam boa parte do sertão sergipano, as paisagens urbanas se mantinham mais ou menos as mesmas de 1992. Cidade após cidade, a mesma miséria, a mesma sensação de fim de mundo. Claro que naqueles 11, 12 anos a região tinha crescido. Mas era um crescimento inercial, o crescimento natural e mínimo de todo lugar abandonado por Deus. Lembro de estar parado num povoado de Canindé e observar um homem forte passando na rua. Era o meio do dia. Fiquei impressionado ao perceber o que a falta de oportunidades fazia com aquelas pessoas: gente que pela constituição física estava acostumada ao trabalho duro, mas condenada a vagar pelo meio do povoado por falta do que fazer.

Agora vejo um artigo da jornalista Eliane Cantanhêde falando da ascensão do Brasil à posição de sexta potência econômica do mundo. Falando mal, obviamente: ela se pergunta que desenvolvimento é esse, se a pobreza está em todo lugar, e usa o Nordeste como exemplo da miséria que esses governos incompetentes não conseguiram resolver.

É um padrão de comportamento típico de certos setores da imprensa: a notícia é boa, não traz nada negativo, mas há que fazer um pequeno esforço e ver como se pode falar mal; com jeitinho sempre se descobre que é possível fazer um comentário desagradável, e se a gente procurar vai ver que o país continua a mesma merda de antes, na verdade até pior. Jornalistas de oposição — e o termo é usado aqui propositalmente — parecem ter complexo de viralata, e se o copo não estiver completamente cheio tem que estar totalmente vazio.

De qualquer forma, eu não sei o quanto a Cantanhêde conhece o Nordeste, para falar assim com propriedade da evolução da região. Mas ao usá-lo como exemplo para questionar a qualidade e mesmo a veracidade do desenvolvimento brasileiro, ela mostra desconhecer, se não a realidade, a história recente do torrão natal do ex-presidente Lula.

O artigo da Cantanhêde me fez lembrar que passei por Canindé e por aquele povoado novamente há umas duas semanas. E para isso precisei atravessar outras cidades — aquelas mesmas que até cerca de oito anos atrás pareciam paradas no tempo.

Eu não impressiono com muita coisa, porque já me acostumei a fingir que a idade me dá o direito de ter uma atitude blasé diante da vida. Mas eu fiquei bobo, genuinamente embasbacado. Em menos de sete anos construiu-se um mundo completamente diferente. As cidades cresceram absurdamente, a ponto de algumas delas se tornarem praticamente irreconhecíveis para mim. Os sinais de desenvolvimento se espalham por elas: lojas de material agropecuário, redes locais de lojas de móveis — o comércio floresceu de uma maneira que me deixou de boca aberta. É outro lugar. O que antigamente eram variedades indistintas do fim do mundo, hoje são lugares possíveis de se morar. Além disso um detalhe curioso: assentamentos de Sem-Terra — Sergipe tem um dos melhores programas de reforma agrária do país, se não o melhor — estão dando origem a novas cidades.

Muito desse desenvolvimento se deve à ação do governo de Sergipe, que inverteu o mecanismo político ao intervir diretamente nos municípios e levando para o interior um tipo de desenvolvimento que, até pouco tempo atrás, estava restrito à capital. Mas o principal elemento de transformação do sertão foi o Bolsa Família, o Luz para Todos, os investimentos federais.

Ver as cidades do Alto Sertão sergipano me lembrou que costumamos — eu inclusive — falar do Bolsa Família e de outros programas do Governo Federal a partir de um ponto de vista urbano. Se isso não é um erro, agora estou convencido de que é insuficiente. Por mais benefícios que o BF tenha trazido para as cidades médias e grandes, não é nada que se compare ao efeito redentor alcançado nos lugares mais miseráveis como o sertão. É imensurável, mas estapafurdiamente óbvio.

É por isso que é tão estranho o parágrafo final da Cantanhêde:

O que está em pauta não é (só) o ritmo da economia e o complexo equilíbrio entre crescimento mais baixo e inflação debochada, mas principalmente a qualidade do desenvolvimento. Há que se discutir por que, para que e para quem o Brasil assume ares de potência.

Então, dona Cantanhêde, deixa eu explicar uma coisinha para a senhora: o que fez a diferença nesses anos — e agora, depois de ver o que aconteceu com o sertão nesses últimos anos, tenho mais certeza do que nunca — foi justamente a qualidade do desenvolvimento promovido pelos governos Lula e Dilma Rousseff. Não há novidade nisso, mas jornalistas de oposição como a senhora parecem se recusar a entender, não importa quantas vezes isso lhes seja repetido e demonstrado. Foi justamente porque a qualidade do desenvolvimento mudou que nossa economia conseguiu aguentar os trancos da crise econômica mundial e ultrapassar a inglesa. É, aquela mesma que por sua vez continua recitando o ideário que a senhora acha bonito.

O artigo da Eliane Cantanhêde me lembrou algo mais legitimamente nordestino do que suas impressões: um trecho de “Karolina com K”, uma das obras primas de Luiz Gonzaga. Mais especificamente o trecho em que Karolina, doidinha para ir embora do forró e ficar sozinha com o seu sanfoneiro, vê o pessoal indo atrás deles e comenta: “Olha, Gonzaga! Puxa mesmo que a cabrueira vem aí atrás, parece que eles tão querendo botar gosto ruim no nosso amor!”

Karolina não sabe, mas a cabrueira continua agoniada, botando gosto ruim nas coisas que não consegue compreender nem aceitar.

Por que o Brasil não vai ganhar a Copa de 2014

O Brasil conquistou o tricampeonato mundial em 1970. Só conseguiu ser tetra em 1994, 24 anos depois.

A Itália conquistou o tricampeonato mundial em 1982. Só conseguiu ser tetra em 2006, 24 anos depois.

A Alemanha conquistou o tricampeonato mundial em 1990.

A verdade não está lá fora

O History Channel era uma das razões pelas quais assino TV. A outra, provavelmente, é o TCM. O resto — programas como o do Anthony Bourdain e os peitos da Nigella Lawson, um ou outro filme mais novinho, Charlie Sheen nas reprises de Two and a Half Men — é brinde que vem de graça.

Mas isso foi há algum tempo. Sobrou o TCM. Porque um canal que deveria se dedicar à história (e que já exibiu excelentes programas, como uma bela série sobre Roma) passou a me brindar com programas que ultrapassam com várias cabeças de vantagem a idiotice: “Alienígenas do Passado”, “MonsterQuest”, “Caçadores de OVNIs”.

Isso faz com que eu perca tempo me perguntando: por que será que em pleno século XXI, este em que deveríamos estar usando roupas prateadas e veraneando na Lua, ainda há gente que acredita em monstro do lago Ness? Por que qualquer luzinha estranha no céu é uma nave espacial? Por que toda hora que um cachorro sarnento e pelado aparece morto surge também um idiota para dizer que é o Chupa-Cabras? Por que alguém, em plena era de satélites cobrindo cada centímetro quadrado da Terra, acha que um bicho do tamanho do Abominável Homem das Neves poderia continuar existindo sem ser visto por quase ninguém?

Eu não sei as respostas para isso e duvido que alguém saiba — ou, pelo menos, que alguém possa responder a essas perguntas com um mínimo de civilidade e sem uns três palavrões bem ofensivos. De qualquer forma, essas coisas me incomodam, sim, mas não são o pior.

São os programas sobre ufologia que realmente me tiram do sério.

Não se trata de negar a possibilidade de vida inteligente fora da Terra. É até improvável que ela não exista (embora Carl Sagan, em seu “Cosmos”, tenha calculado que vida inteligente pudesse existir em uns 10 planetas, se tanto; é um cálculo muito conservador, talvez, mas mais próximo da realidade que as federações intergalácticas dos filmes de ficção científica). O problema é outro: é acreditar que eles venham sistematicamente para cá, para este planetinha simpático, a despeito de todas as impossibilidades.

Imagine o tanto de trabalho e recursos necessários para mandar uma nave espacial através de um sem-número de dobras espaciais até esta bolinha azul. Por que alguém viria para cá, olharia escondido para nós como um voyeur excessivamente tímido e voltaria para o buraco de onde saiu é algo que me foge à compreensão. Mas eu tenho uma pista.

Sempre desconfiei que ufologia é basicamente uma espécie de deísmo atualizado para a era atômica — e é por isso que ETs sempre parecem com a gente, têm cabeça, tronco e membros. Assim como obrigamos Deus a nos criar à Sua semelhança, criamos ETs parecidos conosco; ultimamente Deus anda fora de moda, então arranja-se outra coisa inexplicável em que ter fé. Essas nossas criações, por definição, precisam ser maiores do que nós, algo que fuja à nossa compreensão e que tenha poderes mágicos — e quer mágica maior que andar por aí em velocidade superior à da luz, feito um neutrino despirocado?

Essa não é a única semelhança entre ufologia e outros tipos de fé. Não importa, por exemplo, que visitas de extra-terrestres sejam uma implausibilidade física. É justamente nessas horas que a malucada apela para a fé, para a ignorância: “Claro que é possível a uns ETs com cara de fuinha viajar 300 milhões de anos-luz para nos saudar com um ‘Klaatu barada nikto’ nas fuças. É que eles têm tecnologia que a gente não conhece.” Ou para o fuxico puro e simples: “Não, eu nunca vi um ET, mas um primo do amigo de meu cunhado foi abduzido.”

É exatamente como dizer que Deus existe porque existe, e fim de papo. É o tipo de argumento que, como qualquer teoria de conspiração, se baseia na ignorância.

A essência da fé mais burra e a da ufologia são as mesmas. É a idéia de que necessariamente existe algo acima da nossa capacidade de compreensão, algo no qual acreditamos apesar da falta de provas. Ou seja, Deus e ET são a mesma pessoa; a diferença é que antigamente Deus era mais batuta, mandava um povo inteiro andar quarenta anos no deserto para ver um terreno; hoje, no máximo telefona para lá. Por outro lado, antigamente jogava fogo, sal e enxofre em uns cusdemundo como Sodoma e Gomorra, coisa vagabunda com que um Deus que se respeite não deveria perder tempo; hoje, a gente vive sob a ameaça d’Ele invadir a Terra em astronaves gigantescas criadas em CGI e destruir o mundo inteiro.

E aqui está a pista para entender por que tanta gente acredita nessa estultície: porque isso nos dá a impressão de importância, remetendo a um tempo em que achávamos que éramos o centro do universo. Se não somos mais a criação predileta de Deus, vamos procurar alguém que nos valorize e respeite como merecemos.

Esse pessoal dos discos voadores só não parece perceber o quanto esse tipo de bobagem, e especialmente os indícios que eles alegam serem provas de suas teorias lisérgicas, são obscurantistas e anti-humanistas. Negam acima de tudo a capacidade de imaginação e de realização do ser humano — para eles, um egípcio de 4 mil anos atrás não poderia construir uma pirâmide; uns incas de merda (aquele povo incompetente que levou um cacete memorável de Pizarro) jamais poderiam construir Macchu Picchu.

A desumanidade desse pessoal é tão grande que eles parecem duvidar que o ser humano sequer pudesse criar a idéia de Deus — os deuses, dizia o Von Daniken, eram astronautas. É a síndrome do “not invented here” adaptada ao homem. Ou ao menos um grave exemplo de baixa autoestima existencial.

É verdade que a situação já foi pior, durante aquele período da história humana que cheirava a patchuli e em que se acreditava que adentrávamos a era de Aquário (Deus do céu, isto é a era de Aquário?). Essas idéias, por mais mirabolantes, por mais ilógicas, se mostravam adequadas àquela nova consciência telúrica, àquela coisa cósmica meio odara em que tudo era tudo e nada era nada — e você ainda tinha que mastigar 50 vezes cada garfada de arroz integral. O tempo passou, o sândalo saiu de moda, nos acostumamos à tecnologia, à fissão do átomo, ao Concorde e aos ônibus espaciais, e então passamos a pensar menos nessas coisas.

Mas vaso ruim não quebra e eles continuam por aí. É difícil para mim entender a razão, mas há milhares de ufólogos no Brasil. Há até associações que juntam esse pessoal. Tem gente que se ressente da existência de crentes? Eu me ressinto da existência de ufólogos — e diabo, ninguém nota a ironia contraditória nesse nome? Porque ufologia é obscurantismo disfarçado de pseudo-ciência.

Para piorar, ufólogos tendem a acreditar em conspirações malucas. Eles realmente acreditam que os governos sabem que somos visitados cotidianamente por ETs vindos de quadrantes aos quais nem a Enterprise chegou, e escondem isso de nós. Se não vemos ETs por aí não é porque eles não estão na Terra, mas porque há um grande complô do governo, qualquer governo, para esconder a verdade.

E isso é o que mais me impressiona: a idéia de complô, de uma grande conspiração orquestrada pelos governos para nos manter na ignorância. Para mim é ainda mais difícil acreditar que o SNI e sua sucessora Abin tenham competência para esconder esse tipo de fato da população do que acreditar na existência de ETs congelados como picanha num açougue. O que prova a imbecilidade desse pessoal é a crença na hipótese absurda de que esses governos, que sequer conseguem esconder as trapalhadas cotidianas que cometem, poderiam guardar um segredo de tamanha grandeza. Na verdade, a Nasa sequer consegue guardar as amostras espaciais que possui; como conseguiria guardar segredos como picolés de ETs, que escapam mais fácil, é coisa que me foge à compreensão.

O fato é que o governo sequer esconde de mim a existência da Ana Maria Braga; por que iria esconder a existência de um disco voador é coisa que, sinceramente, jamais vou conseguir entender.

Jesus Manero

Eu sei que tem gente por aí, gente desocupada que redundantemente não tem o que fazer, que diz que não levo religião a sério.

Na verdade eu levo. Levo tanto que até hoje tento descobrir como é que o puto do Moisés atravessou o Mar Vermelho. Se parar para pensar numa bobagem dessas não é levar a sério, eu não sei mais o que é.

Quem não leva essa merda a sério é o pessoal do Jesus Manero — o site mais abençoado da internet. O mané aqui nem sabia que essa pérola existia. Agora estou rindo há horas enquanto passo o arquivo do site em revista.