Porto da Barra

Só agora, mais de quatro décadas depois, eu descubro que o meu amor único, ciumento, exclusivista, neurótico-psicótico, é praga de mãe.

Então eu digo que as velhinhas têm razão: praga de mãe pega, pega de verdade, e lhe condena aos seus desejos e lhe dá a régua e o compasso com o qual você vai medir o mundo nos dias bons e ruins que se seguirão depois.

Foi assim que saí do Espanhol, onde sofri a primeira das tantas derrotas na minha vida e me trouxeram a este mundo. Acho que àquela altura o Carnaval que a cidade tinha feito para me receber já tinha acabado, porque demorei para sair do hospital. No táxi que me levaria ao apartamento na 8 de Dezembro, minha mãe me ergueu e mostrou para mim aquela nesguinha de praia entre dois fortes portugueses: “Olha, Rafael, essa vai ser a sua praia”. Minha avó Celeste, assustada, mandou que ela tivesse cuidado comigo, mas minha mãe sabia com quem estava falando, e de quem estava falando, e do que estava falando. Naquele dia de fevereiro ela me deu a posse daquela praia. Ela ainda é minha.

Não importa quanto tempo eu fique longe. O Porto da Barra é um daqueles poucos lugares onde lembro quem é Rafael Galvão. É a praia que tive inteira: perto do forte de São Diogo quando eu ia com Romário — e Tony, e Mário, e Magno, e onde Romário me ensinou a nadar —, no meio quando ia com meu pai porque ali havia um bar, mas principalmente perto do forte de Santa Maria quando ia com minha mãe, e via os barcos chegando para me darem manjubinhas com as quais eu criaria brincadeiras dignas de “Tubarão” — e um dia até mesmo uma cabeça de tubarão. No quebra-mar de onde, quando a idade se fez adequada e um vislumbre de coragem apareceu, passei a mergulhar. Na areia onde catei vidros do mar e fiz os meus primeiros castelos e recebi as primeiras lições sobre a efemeridade da vida, numa das tantas ondas que me jogaram no fundo e de novo na superfície e de novo no fundo, num rocambolear que durante aquele átimo sempre parecia infinito.

O amor à praia do Porto da Barra me fez cego para as belezas eventuais de outras praias. O mar cristalino e morno de Maceió, as águas geladas de Ipanema, o azul único do Mediterrâneo e do Egeu? Tudo tão pequeno, meu Deus, tudo tão menor que aquela praia onde as ondas batem com a cadência de uma canção de Caymmi.

Talvez sejam elas, as ondas. Talvez mais que tudo, mais que a água verde e o cheiro de maresia: as ondas. O Porto tem a calma do espírito da Bahia, a certeza de que o tempo é seu, e de que ali você pode enganar a vida. A praia dos velhinhos que a amam quase tanto quanto eu, das crianças que aprendem ali a perder o medo das ondas, das moças que ali se fazem mais bonitas para os homens que amam, ou daqueles que podem vir a amar. A praia daqueles que, ao contrário de mim, a têm como amante certa, que ainda têm a certeza de que amanhã ela ainda estará lá.

Nunca pude deixar de imaginar que deve ser por isso que, no dia dois de fevereiro, as pessoas vão para uma praia tão mais feia, coitada, dar presentes que Iemanjá quase sempre recusa; porque elas sabem que o Porto da Barra lhes é interditada, é a praia de Oxum. A Oxum que, como Iemanjá, oferece o seu regaço aos seus filhos, e isso é o máximo que o Rio Vermelho pode oferecer; mas que também oferece a beleza, a cadência das suas ondas como quadris que se movem apenas para você, com você, e junto ao espelho ela traz a sua espada.

Pode reparar. Na maior parte das praias do mundo o barulho das ondas é um rimbombar incessante, bruto, um big bang sem começo nem fim que nocauteia os sentidos e se perde na vulgaridade da oferta excessiva. Nas madrugadas caladas de Aracaju escuto da minha varando o troar constante das praias da capital e da Barra dos Coqueiros — diferentes apenas no nome, porque são a mesma praia, não há diferença.

Mas as ondas que batem na praia do Porto da Barra falam com a delicadeza da mulher que ama sem condições, sussurram no seu ouvido, e você já não as ouve 50, 100 metros depois. Elas dizem a você que tudo podem lhe dar, mas apenas se você não se afastar; o Porto da Barra é a praia de Oxum.

Por tudo isso olho para aquelas pessoas que usam a minha praia, sem a decência de pedir a minha permissão, com a condescendência de um senhor feudal magnânimo. Eles não sabem, mas a praia é minha. Podem se deitar em seu colo de areia, podem receber o abraço confortante de suas águas verdes. Eu não ligo. Você não sabe, mas a praia é minha. E, lá no fundo, eu sei que ela sabe disso.

Salvador, em algum lugar do passado

Não sei muito sobre o filme abaixo. Encontrei em um grupo do Facebook, que tampouco sabia alguma coisa sobre ele.

O que sei é que ele mostra uma Salvador que ainda existe e que já não existe mais, mas da qual lembro perfeitamente: o Jardim de Alah com barracas de camping; a região do Iguatemi, ainda em sua primeira encarnação, ainda vazia; a Rodoviária então nova, e daqui a pouco substituída por outra em Águas Claras; o Dique, um parque que mais ou menos ainda existe às suas margens, camelôs no comércio vendendo antiguidades nas calçadas, o Plano Inclinado.

As baianas que ainda não tinham sido contaminadas pelo vírus evangélico e ainda não vendiam “bolinhos de Jesus”; o monstrengo que conhecem por Prefeitura de Salvador ainda não existia; e as putas ainda faziam ponto nos bregas da Ladeira da Montanha, embaixo do Elevador Lacerda

Estão ali a Ribeira, a feira de São Joaquim, o Bonfim ainda sem o costume estranho de amarrar fitinhas em suas grades, o Humaitá e Mont Serrat.

O Parque da Cidade ainda tinha os tipis e os iglus estranhos em fibra de vidro que deveriam ser brinquedos infantis, mas eram utilizados basicamente como banheiro — assim como o labirinto e o castelo que não aparecem aí.

Estão ali também o Iate das gentes chiques, o Pelourinho de praxe antes da reforma de ACM, Santo Antônio, a Acalanto, a Arembepe longe dos meus domínios, Itapuã e Pedra do Sal, o Abaeté e a mais bela entrada de aeroporto do mundo. O Centro Administrativo, o Pestana que ainda se chamava Méridien visto ao longe, os hotéis de Ondina que ainda tinha as piscinas artificiais de água salgada — o Bahia Praia Hotel que nem sei se ainda está lá.

Ali também estão os sinais da destruição irreversível. Eis ali um casarão da Vitória funcionando como loja de material de demolição, abastecida pela destruição criminosa das mansões que ainda existiam naquela rua em grande número, mas sumiam a cada dia. Essas lojas floresceriam ao longo dos anos 80, até que não houvessem mais casarões a serem destruídos.

Acima de tudo ali está o Porto da Barra ainda com saveiros. São dois momentos distintos, um fim de tarde com a maré alta e um dia normal de praia. E quero acreditar que, em meio àquelas pessoas, eu estou bem ali.

O Jesus histórico

Sempre que vejo alguém falando do “Jesus Histórico”, tenho a certeza de estar diante de um quase picareta. Não existe Jesus histórico fora do Novo Testamento. As poucas menções contemporâneas, ou quase, feitas a Jesus que existem fora dos evangelhos, canônicos e apócrifos, e das tantas epístolas, atos e etc. são, no mínimo, questionáveis. No máximo fraudes, mesmo.

Talvez por isso tanta gente levante a possibilidade de que Jesus jamais existiu; que ele é uma espécie de Robin Hood, uma lenda formada a partir da combinação de várias pessoas diferentes, separadas no tempo e no espaço.

A Salon publicou uma pequena lista de razões pelas quais Jesus não deve ter existido. São válidas. Mas elas não provam que Jesus não existiu: apenas mostram que é impossível escrever algo honesto sobre o Jesus histórico.

A razão 1 — a inexistência de fontes seculares que comprovem a existência de Jesus — não quer dizer muita coisa. Não é porque não há citações das fontes oficiais que ele não existiu: a árvore cai na floresta mesmo que você não veja. Na verdade, seria até improvável haver tais citações naquele momento.

Pouca gente conhece o episódio de Zé Lourenço e o Caldeirão. Se mora fora do Nordeste, menos ainda. Ao contrário de eventos semelhantes como Canudos e o Contestado, o Caldeirão ficou pouco conhecido fora do Ceará. No entanto, foi a primeira vez em que o Estado brasileiro utilizou bombardeio aéreo contra sua própria  população civil.

Se esse nível de desconhecimento acontecia ainda em pleno século XX, não é difícil imaginar como os eventos trágicos, e relativamente comuns em uma província perdida num cudemundo do Império Romano, podiam não interessar aos historiadores romanos. A condenação de um pregador judeu qualquer simplesmente não era importante na época; como comparar às dezenas de seguidores de Spartacus crucificados ao longo da Via Ápia? Mesmo que a notícia chegasse aos centros de poder, seria vista como mais uma entre tantas crucificações de fanáticos religiosos. O estranhamento sobre a ausência de Jesus dos anais só é possível quando se dá a ele uma importância que só viria posteriormente. É mais ou menos como o Velvet Underground e sua influência bem tardia.

A segunda razão (os primeiros escritos do Novo Testamento desconhecem detalhes demais da vida de Jesus) é muito mais complexa, e contém a principal verdade desse texto: Jesus Cristo, mais que causa, é efeito do cristianismo.

Parece óbvio que a maior parte dos elementos que constituem a mitologia de Jesus — a imaculada conceição, a ressurreição, a fuga para o Egito, o hímen complacente de Maria — foram definidos aos poucos, com o passar do tempo, como forma de caracterizar o caráter divino de Jesus e adequar a narrativa ao zeitgeist místico de sua época. Ninguém mente mais, para si e para os outros, que religiosos.

Mas o principal argumento do artigo, a ausência dos aspectos biográficos de Jesus nas epístolas de Paulo como evidência de sua inexistência, é muito frágil. O problema é que o fato de os evangelhos sobreviventes só terem sido escritos algum tempo depois não impede que a história fosse contada desde antes de Jesus cair nas mãos de Pilatos. Além disso, é preciso lembrar que Paulo falava a comunidades cristãs, que presumivelmente já conheciam a história de Jesus. Paulo era um pregador e um doutrinador. Um livro de doutrina jurídica não costuma perder tempo explicando a canalhice de um Gilmar Mendes.

A terceira razão apresentada, a de que os livros do Novo Testamento não pretendem ser relatos em primeira mão, é mais um problema para os historiadores do que para a existência ou não do nazareno. Escritos décadas após a morte do sujeito e baseados na tradição oral de uma população majoritariamente analfabeta, ela acaba se misturando com a quarta, a de que os evangelhos se contradizem entre si, e que também é frágil. As diferenças entre eles, afinal, não são tão grandes assim, se devendo principalmente aos ruídos na transmissão oral. Se não fosse a existência de tantos evangelhos apócrifos seria até admirável que sejam tão semelhantes (não, é mentira: aparentemente uns basearam-se nos outros); mas o fato é que essa é a narrativa selecionada pela Igreja, em um tempo em que a própria ideia de historiografia era bem diferente.

E finalmente a quinta: o tal Jesus histórico. O fato é que quem escreve livros sobre isso poderia muito bem escrever sobre o Abominável Homem das Neves ou sobre o Eldorado ou sobre a Fonte da Juventude, daria no mesmo. Esses autores fazem, no mínimo, um grande exercício de imaginação e conjecturas para justificar o que certamente já é sua tese inicial, juntando fragmentos históricos reais para validar, de alguma forma, a sua própria ideia de Jesus. Por isso, de acordo com o livro que você ler, o Jesus resultante pode ser um rabino, um zelote, um fariseu, um pacifista — ele é essencialmente o Jesus que você constrói, seu alter ego.

Sempre tive a impressão de que Yeshua ben Yosef, se existiu, era pouco mais que um maluco pregando algum tipo de mensagem apocalíptica nas praças da Judeia. Tempos de ocupação política e militar como aqueles são extremamente propícios para isso, e ele não devia ser o único. Provavelmente não era o mais influente ou respeitado enquanto vivo: o fato de ele precisar da bênção de João Batista para se legitimar indica que aquele que transformaram em seu primo era a verdadeira grande liderança religiosa popular da época, naquele espaço específico. Além disso, Josefo fala muito mais de João do que de Jesus.

E em verdade, em verdade vos digo: por alguma razão o sujeito foi crucificado. E as pessoas acharam injusta a crucificação, e Jesus se tornou maior na morte do que tinha sido em vida, e o seu nome circulou de boa em boca, e catalisou um sentimento de mal-estar e de inquietação que as gentes viviam naqueles dias. E aos poucos a sua lenda foi se criando; e novos milagres foram inventados, e a sua mensagem foi se consolidando, adaptada aos tempos e aos públicos; e Saulo de Tarso entendeu que era preciso uma ruptura com a tradição judaica e pregou aos gentios, e elementos romanos foram agregados para que Ele se tornasse o Deus e o Filho de Deus. Amém.

O cachorro do Vinícius

Lembro bem de todos os cachorros que não tive. Primeiro foi um collie, como quase todo mundo que viu “Lassie” uma vez na vida. Depois, graças a “Joe, o Fugitivo”, um pastor alemão que só faltaria falar. Um brevíssimo idílio com os são bernardos durou os poucos meses até ver dois afghan hounds que moravam na Princesa Isabel, e desde então eu nunca mais quis saber de qualquer outro cachorro.

Mas antes vi um são bernardo de perto.

Era 1980, final do primeiro semestre. Eu morava em Itapuã, a uns 500 metros da casa de Vinícius de Moraes, que hoje é um hotel. Ia caminhando em direção ao centro do bairro, por uma das ruas de dentro, com o meu tio, duas crianças que não tinham muito o que fazer naquele dia. E então ali estava ele na varanda gradeada de outra casa, um pouco distante: deitado, indolente, muito maior do que eu imaginava. Ele nos viu e se levantou latindo, babando quinze litros de uma baba densa.

Nunca tinha visto um antes. Conhecia o cachorro, claro, não apenas porque tinha um livro com as raças de cães que eu jamais compraria, o “Livro de Ouro dos Cães”, mas porque mais ou menos naquela época tinha assistido a um episódio de Disneylândia que contava a história de Barry, o mais famoso de todos os são bernardos.

É uma lembrança desimportante, que ficou apenas pela coincidência de ter visto o primeiro exemplar da raça pouco depois de ver um filme sobre um deles. Até que neste feriado, lendo a biografia de Vinícius de Moraes por José Castelo, cheia de defeitos mas suficiente, descobri que quando foi morar em Itapuã ele comprou um são bernardo.

Vinícius tem uma certa história com minha família. Passou muito perto de levar um soco de meu pai, uns dez anos antes.

É uma história curta, simples. 1969: recém-casados, meus pais, Vinícius e alguns amigos estão num bar de uma Itapuã ainda meio selvagem. O poeta ainda não tinha se mudado definitivamente para lá nem casado com a Gesse Gessy.

Simpático, exuberante, galanteador e bêbado, embora já um tanto decrépito e prestes a dar início a uma fase estranha em sua vida, Vinícius resolve cantar “Minha Namorada” para minha mãe e lhe passa um bilhete.

Diante do constrangimento de minha mãe, meu pai começa a rir. E, rindo, fala para o poeta:

“Pare com isso, Vinícius. Porque se você continuar eu vou ter que lhe dar um murro, e vai ficar feio pra mim bater num velho como você.”

Tem coisas que a gente fala rindo mas o olhar da gente não sorri junto. A serenata parou, os bilhetes também. A noite seguiu tranquila e alegre, como eram as noites em que, dizem, Vinícius estava à mesa.

Agora fico sabendo que pouco tempo depois Vinícius se mudou para a Bahia, casou com Gesse — e, de certa forma, com Toquinho —, construiu aquela casa em frente à qual eu passava todos os dias no caminho para a praia ou para a escola e arranjou o tal são bernardo. Deu-lhe o nome de Meu, como o papagaio de Ungaretti; mas num dia em que Ricardo Ramos foi lhe fazer uma visita rebatizou o pobre cão como Graciliano — porque, você sabe, era um são bernardo. Imundo, cheio de pulgas, o coitado passava seus dias na piscina, correndo do calor que faz na terra de Oxalá, até que Vinícius resolveu o problema instalando um condicionador de ar em sua casinhola.

Mas isso tinha sido uns 10 anos antes. Àquela altura ele sequer morava em Salvador. Agora tenho quase certeza de que aquele são bernardo que vi numa manhã em Itapuã, aquela visão rara, era o de Vinícius. Não era um cachorro comum em Salvador, e quais as chances de haver dois tão perto? Imaginei que quando se separou de Gesse ele deu o cão a algum amigo, talvez Calazans Neto, talvez Carlos Bastos, sei lá quem morava naquela casa.

***

Ler a biografia de Vinícius, principalmente a parte que cobre seus últimos dez anos, me deixou pensativo.

Como quase todo mundo, sempre achei fraca sua última fase, marcada pela parceria com Toquinho. Na verdade o problema não era ele, porque ali estão algumas de suas melhores letras. Era Toquinho: a música inofensiva que ele fazia, leve, boba e derivada, apesar de extremamente melódica, parecia insuficiente, quase antitética, para o poeta que foi um dos vértices da bossa nova e fez os afro-sambas com Baden Powell — uma antítese ainda mais evidente em tempos de Tropicália. Seus amigos, por sua vez, olhavam com estranheza a escolha de vida que ele fez: a palavra decadência é usada não poucas vezes em sua biografia. De grande poeta e letrista, Vinícius virou um velho macumbeiro excessivamente hedonista que parecia se apegar à juventude do parceiro, e dos estudantes que iam aos seus shows em diretórios acadêmicos, como Dorian Gray se agarrava ao seu retrato.

Mas hoje, mais velho, mais cansado, olhando para trás cada vez mais amiúde, vejo as coisas de maneira um pouco diferente. E nessas horas tenho inveja de Vinícius. Porque entendi o que ele era então: um sujeito que simplesmente decidiu se abandonar à vida — nem que para isso tenha abandonado também uma mulher grávida, mas o que é um cafajeste a mais ou a menos no mundo? — como tão poucos de nós jamais tivemos coragem.

Há muito tempo acho que no fundo só não se pode morrer entre os 30 e os 50 anos; aí é como se algo então tenha dado profundamente errado, porque é quando as pessoas finalmente vivem uma plenitude que nunca mais recuperarão. Morrer na adolescência é uma tragédia mas as pessoas morrem assim mesmo, às vezes vítimas da temeridade própria dos que ainda se acham imortais; depois dos 50 estamos todos na mesma roleta, e se é triste, é pelo menos aceitável. A própria tristeza vai diminuindo com o passar dos anos, e aos 90 o que o defunto ouviria, se ouvidos ainda tivesse, não seriam as expressões de dor e a mulher histérica se jogando ao seu caixão: seria um “descansou, coitado” melancólico e conformado.

Vinícius morreu aos 66 anos, uns poucos dias depois de eu ver seu são bernardo. Tinha vivido mais que a maior parte das pessoas viveria em 150. Mais que isso, se deu o direito de viver como bem lhe aprazia, e o preço que pagou em seus últimos anos, doente, foi mais que uma pechincha; tanta gente paga o mesmo preço e recebe bem menos.

Eu e quase todo mundo olhamos para trás e, mesmo quando temos a sorte de nos orgulhar do que fizemos, também sentimos aquela ponta de tristeza diante da miragem de tudo o que não fizemos, por impotência ou covardia. Por isso, agora tenho a impressão de que Vinícius sentia um pouco menos de tristeza que o resto de nós.

O que dizem ser sua decadência hoje chamo de ápice. E se a poesia, essa que os bobos escrevem com P maiúsculo, perdeu alguma coisa, paciência. Vinícius entendeu: nenhum poema jamais valeria uma noite de uísque, música, amigos e mulheres.

Ladeira da Montanha

A demolição de antigos casarões na Ladeira da Montanha, em Salvador, abalados pelas chuvas fortes que caíram recentemente, gerou revolta em muita gente. Aqui e ali pulularam — pululam ainda — protestos revoltados com o fato de o IPHAN ter autorizado, com rapidez que julgaram suspeita, a demolição dos prédios.

Basta uma olhada rápida para as casas demolidas para entender que não havia outra solução. Na foto ao lado é possível ver exatamente o que se perdeu: meras fachadas degradadas ao ponto da impossibilidade de recuperação, mantidas em pé apenas pela mão benevolente do Senhor do Bonfim. Mais grave, entretanto, é que não parecia haver nada ali que caracterizasse algum conjunto arquitetônico importante e necessário, nem que justificasse a repentina indignação de uma sociedade que evitava passar por aquela rua, principalmente à noite. Durante décadas, os prédios da Ladeira da Montanha cumpriram apenas o papel de oferecer sexo a preços módicos para trabalhadores de baixa renda; há anos, nem isso. O IPHAN agiu corretamente.

Digo isso com certa dor no coração. Muitos anos atrás, quando eu chegava a Salvador pela rodoviária, podia pegar dois ônibus para a casa de minha avó, em Nazaré. O R1 e o R2 faziam essencialmente o mesmo trajeto, mas em sentidos diferentes. O R1 era o mais rápido; mas eu preferia o R2, que primeiro passava pelo Comércio e pela Ladeira da Montanha. O caminho era mais longo, mas era mais bonito: eu, como qualquer baiano, sou cioso da parte que me cabe na herança cultural dos lupanares da cidade. Era melhor se fosse no cair da tarde: o pôr do sol visto da Ladeira da Montanha, entre as torres da Conceição da Praia, é um dos mais belos em uma cidade que os tem em demasia.

Em vez de carpir o enterro tardio dos cadáveres putrefatos de antigos bregas abandonados há eras, deveriam estar discutindo o destino que se vai dar àquela área. A Prefeitura ainda não se pronunciou sobre o futuro da Ladeira da Montanha, provavelmente porque foi pega de surpresa pela urgência de tomar uma atitude evitada por muitos anos. Acho que o lugar poderia se transformar num bom espaço de convivência, com apelo turístico e cultural. Daria um dos mais belos mirantes de Salvador, sem nenhuma dúvida. É um lugar adequado para uma grande praça com equipamentos de lazer, restaurantes e armadilhas para turistas. Podiam até fazer uns bares para que, com o passar do tempo, a Ladeira da Montanha voltasse a cumprir o papel social que cumpriu durante décadas: garantir um espaço razoavelmente seguro para o exercício da boa e mais antiga profissão do mundo. Turistas pagam em dólar.

Infelizmente o histórico da Prefeitura não é dos melhores e afeta as expectativas que possamos ter. Embora tenha realizado uma das mais importantes intervenções urbanas em Salvador dos últimos tempos, a transformação do trecho da avenida Sete de Setembro entre o Porto e o Farol da Barra em um grande calçadão de uso misto, o prefeito ACM Neto tem uma concepção de cidade ultrapassada e nociva: ele fala sem ruborizar em demolir casarões irrecuperáveis no Centro Histórico para transformá-los em estacionamentos, enquanto o mundo civilizado trabalha para banir automóveis dos centros das cidades. Não será ACM Neto o prefeito a transformar Salvador em uma cidade moderna, que tente harmonizar seu passado e seu futuro.

Isso é ainda mais triste porque Salvador tem uma cota alta demais de Alaricos urbanos. Mario Kertész, por exemplo, construiu no Paço Municipal aquela aberração estética que responde pelo nome de Palácio Tomé de Souza, ironicamente no local onde existiram a antiga Biblioteca e a Imprensa Oficial, demolidos por ACM (avô do atual prefeito) nos anos 70; os Magalhães gostam de derrubar coisas. Em defesa de Kertész apenas o fato de que aquele monstrengo deveria ser temporário; no entanto, aquela desgraça está lá há quase 30 anos.

Mas Salvador é uma cidade que pelas dimensões e variedade do seu patrimônio histórico ainda pode ter esperanças. E talvez a Paris do século XIX possa servir de exemplo para o que fazer.

Ao voltar do exílio em 1848, Napoleão III já trazia debaixo do braço o mapa dos futuros bulevares de Paris. Sua ideia era renovar completamente a cidade, construindo grandes avenidas que rasgassem a cidade de cima a baixo, recriando a estrutura urbana e adequando a capital aos novos tempos e tecnologias, eintegrando-a e expurgando os tantos e tantos cortiços que se espalhavam por uma cidade que tinha crescido assustadora e desordenadamente. Para isso ele nomeou o barão Haussmann chefe do departamento do Sena, uma espécie de super-prefeito de Paris.

A renovação de Paris no Segundo Império jamais seria igualada. A área da cidade subiu de 3500 para 8 mil hectares; mas acima de tudo, Haussmann transformou Paris numa cidade moderna, mais limpa, capaz de absorver o crescimento constante das décadas que se seguiriam.

É impossível saber o que se perdeu. Lugares históricos, lieus de mémoire, as provas materiais da Revolução de 1848; quase dois mil anos de camadas e camadas de evolução de uma cidade. A Paris que emergiu do Haussmanismo continha ainda muitos elementos da cidade antiga, mas era uma cidade diferente. É essa a Paris que conhecemos. Não parece ter se saído mal.

(A nota irônica em tudo isso é que os objetivos de Napoleão III não eram apenas modernizadores e sanitizadores. Com a nova ordenação urbana de Paris ele pretendia também facilitar a repressão às explosões sociais que aconteciam a três por quatro na cidade. Parisienses sempre tiveram uma queda por barricadas e paralelepípedos. Mas foram esses novos bulevares que cerca de 70 anos depois viram os panzers alemães deslizarem suavemente em sua tomada de Paris.)

Um dos problemas que o mimimi daqueles que protestam cegamente contra a demolição das ruínas da Ladeira Montanha acaba mostrando é que eles parecem não entender que a cidade é um organismo vivo, que precisa evoluir. Não deve fazer isso às custas cegas do seu passado e da sua história, e uma solução radical como a de Haussman não seria aplicável hoje. Mas não deve sobrevalorizar o que é só velho, e por isso um pouco desse espírito deveria ser levado em conta. A cidade às vezes tem que fazer escolhas. O grande problema é que simplesmente não é preciso fazer uma escolha difícil neste caso da Ladeira da Montanha.

Baianos têm orgulho do seu elevador Lacerda (enquanto, logo ali ao lado, deixam o belo Elevador do Taboão agonizar; só vão lembrar dele, pelo visto, quando finalmente desmoronar). Um anúncio antológico da Bahiatursa o descreve como parte da alma da cidade: “Cidade Baixa, Cidade Alta e um elevador no meio. Só podia ser coisa de baiano.” Vendo essa falsa polêmica sobre o “casario da Ladeira da Montanha”, fico pensando que, se esse pessoal que hoje se esvai em chororô ignorante e ludita estivesse vivo em 1930, Salvador não teria o elevador que conhecemos hoje; em vez disso teríamos o antigo, como projetado por Antonio de Lacerda no início dos anos 1870, porque a cidade não tem o direito de se erguer de suas próprias cinzas.

Lágrimas na chuva

Eu vi o CEP passar de 5 para 8 números.

Vi os telefones passarem de 7 para 8 números.

Vi câmeras de 35mm substituídas pelas digitais e estas começarem a desaparecer.

Vi os cinemas de rua desaparecendo um a um.

Vi o videocassete nascer para ser morto pelo DVD, e este pela internet.

Eu vi os orelhões de ficha darem lugar aos de cartão, e estou vendo estes morrendo.

Vi os cursos de datilografia florescerem, mas agora eles não existem mais.

Vi os jornais ganharem cor, e agora eles encaram seu fim.

Vi o vinil desaparecer ante o CD, e este superado pelo mp3.

Vi surgir o PC, para dar lugar ao notebook e então ao smartphone.

Eu vi as lâmpadas incandescentes substituídas pelas fluorescentes e estou vendo-as dar lugar às de LED.

Vi o celular surgir e passar de 7 para 8 números, e estou vendo passar para 9.

Eu vi surgir a TV em cores, e a TV por assinatura, e o YouTube e o Netflix destruindo-as aos poucos.

V i o fax nascer e morrer.

Vi as rádios FM surgirem, e vi a Noruega anunciar a sua morte.

Vi o bip dar lugar ao pager, e este dar lugar ao WhatsApp.

Eu vi coisas em que você não acreditaria. E todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva.

Roy Batty, você não sabe de nada, inocente.

Alsace-Lorraine

É uma de minhas imagens mentais favoritas, e torço para que tenha sido verdadeira: sempre imaginei Hitler subindo a Champs-Élysées com olhar impassível mas o coração acelerado, desdenhando das expressões de choro e medo dos franceses que o viam desfilar. Eu o imagino descendo do carro no fim do bulevar, atravessando a Étoile pela rua, por cima, mãos para trás como sempre andava, e parando diante dessa placa. Primeiro olhou em volta e viu os nomes dos soldados, imaginando se no meio daqueles tantos sobrenomes alemães não havia o antepassado de algum conhecido seu, de um marechal talvez. Pensou em como tinha sido fácil chegar ali e como nada mais poderia impedir a realização plena do seu destino. Deu mais uma olhada em direção à Concorde e se permitiu um sorriso discreto; seu coração se encheu de alegria e gratidão, e então olhou para essa placa por longos segundos, e murmurou baixinho, tão baixinho que Albert Speer não pôde ouvir: “Vielen Dank, Französisch.”

 

Nomes

Nadia Lippi, Carlos Zara, Ney Sant’Anna, Laerte Morrone, Claudio Corrêa e Castro, Gilberto Martinho, Yara Côrtes, Paulo Figueiredo, Armando Bogus, Sura Berditchevsky, Lady Francisco, Zilka Salaberry, Jacira Sampaio, Julio César, Rosana Garcia, Nestor de Montemar, Rosita Thomaz Lopes, Denise Dumont, Roberto Faissal, Chica Xavier, Maria Claudia, Claudio Marzo, Eloiza Mafalda, Neuza Amaral, Lucia Alves, Silvia Salgado, Rosamaria Murtinho, Felipe Carone, Renata Fronzi, Reinaldo Gonzaga, Cleyde Blota, Myrian Pires, Miriam Persia, Solange Theodoro, Suzana Faini, Monah Delacy, Angelina Muniz, Paulo Guarnieri, Heraldo Galvão, Nivea Maria, Thais de Andrade, João Paulo Adour, Sonia Regina, Ruth de Souza, Mario Cardoso, Lauro Corona, Norma Blum, Glauce Graieb, Oswaldo Loureiro, Isis Koschdoski, Élida L’Astorina, Heloísa Millet, Fabio Massimo, Celia Biar, Castro Gonzaga, Milton Moraes, Suely Franco, Adriano Reys, Roberto Pirilo, Priscila Camargo, Djenane Machado, Marcelo Picchi, Arthur Costa Filho, Elza Gomes, Henriqueta Brieba, Roberto Bonfim, Fátima Freire, Ana Ariel, Mauricio do Valle, Eduardo Tornaghi, Karin Rodrigues, José Augusto Branco, Luiz Armando Queiroz, Eva Todor, Maria Fernanda, Beatriz Segall, Dionísio Azevedo, Carlos Kroeber, Ivan Candido, Dina Sfat, Lidia Brondi, Jonas Mello, Joana Fonn, Perry Salles, Lucia Alves, Átila Iório, Tereza Raquel, Fernando Torres, Claudio Cavalcanti, Alcione Mazzeo, Sueli Franco, Tereza Sodré, Lucélia Santos, Reginaldo Faria, Mauro Mendonça, Angela Leal, José Lewgoy, Tonia Carrero, Raul Cortez, Carlos Eduardo Dolabella, Tamara Taxman.

Contradições

Lembrança 1 de adolescência: a música de Summmer of ’42 indicando o início do Supercine nos sábados dos anos 80.

Lembrança 2 de adolescência: farras e putarias e corridas e farras e conversas e putarias e o corujão e será que vamos fazer a revolução este ano e o China e farras e vamos fundar um grêmio no Santos Dumont e putarias nos sábados dos anos 80.

Alguém está lembrando errado.

No tempo das diligências

Hoje estou cansado e vou passar a noite em casa. Vou aproveitar para beber uma garrafa de vinho, ler pelo menos uma das revistinhas antigas da Disney que baixei ultimamente e assistir a algum filme. “Sartoris” fica para depois.

Queria mesmo era ver um western. Nos últimos dias meu interesse pelo gênero se reacendeu, apesar de tragédias recentes como The Lone Ranger. Sempre foi um dos meus gêneros favoritos, como já disse algumas vezes neste blog, mas depois que finalmente assisti a Heaven’s Gate, o filme de Michael Cimino que destruiu a United Artists e que é o maior caso de filme-malfeito-que-poderia-ser-grande da história, a vontade de ver faroestes ainda desconhecidos parece ter recrudescido. Também a de rever alguns grandes filmes, e talvez hoje reveja “Consciências Mortas”.

O western sempre fez parte da minha vida. Era um gênero tão comum na TV dos anos 70, comecinho dos 80. Acho que já tinha sido mais; anos antes havia um número aparentemente infinito de seriados de bangue-bangue exibidos toda semana, quase todo dia. Mas já não peguei “Bat Masterson”, “O Homem de Virgínia” ou “Chaparral”, não que eu lembre. De qualquer forma, o western ainda era parte importante do imaginário das crianças, e brincávamos de mocinho e bandido e eu tive sucessões de revólveres de espoleta — que aparentemente fizeram de mim um serial killer com 357 mortes nas costas. Pensando bem, talvez reveja “Da Terra Nascem os Homens”, um filme gigantesco de William Wyler que poderia estar sem problemas em qualquer lista de dez melhores westerns da história.

Se havia menos seriados sendo exibidos, para garantir sua programação a TV aproveitava o acervo de mais de meio século de cinema falado. Isso significava que se apoiava, principalmente, na produção americana dos anos 50 — talvez a última grande década do cinema hollywoodiano, e certamente a última grande década do studio system. E boa parte da produção dos anos 50 era, oras, composta de westerns. Acho que podia ver novamente “Um Certo Capitão Lockhart”, porque cowboy mais típico que James Stewart, para mim, só John Wayne.

Se a Sessão da Tarde hoje é motivo de deboche, naqueles dias exibia bons filmes com regularidade. Filmes em preto e branco ainda eram comuns, nem todo mundo tinha TV em cores (trívia: as TVs em preto e branco só deixaram de ser fabricadas em 1997), e a média da grade de programação era muito superior ao que se tem hoje. Por exemplo, vi “Uma Aventura na África” na Sessão da Tarde, além de tudo o que Chaplin fez de importante. Logicamente, nessa época era virtualmente impossível evitar a exposição aos bangue-bangues. A maior parte das pessoas não ligava para eles, claro, e estava mais preocupada com dramas contemporâneos; outras, que sempre gostaram de cavalos e de estourar coisas, se apaixonavam. Ainda hoje, a ideia do cowboy errante com um rifle em sua sela, um cobertor na garupa do cavalo e um cantil ao lado dos alforjes é uma das principais imagens da aventura para mim. Mesmo assim talvez veja “Josey Wales — O Fora da Lei”, um pouco diferente desse arquétipo, mas um filme brilhante, talvez o mais subestimado de Clint Eastwood, e dialoga maravilhosamente com o seu tempo.

O fato é que rever westerns me faz voltar a um blog que, nos últimos meses, se tornou uma verdadeira referência para mim: o Westerncinemania.

O Westerncinemania, se não o melhor, é um dos melhores espaços na web brasileira sobre westerns. Levado adiante pelo Darci Fonseca, é um grande repositório de informação sobre westerns, conhecidos ou não. O conhecimento do Darci sobre westerns é enciclopédico; e o blog parece ter formado uma comunidade de apreciadores e fanáticos que discutem o gênero com propriedade e conhecimento impressionantes. É um dos poucos lugares onde vi, por exemplo, a apreciação equilibrada de um filme superestimado como Johnny Guitar. Seu penúltimo post, sobre o belíssimo “O Preço de um Homem”, é um bom exemplo do que o blog tem a oferecer. “O Preço de Um Homem” tem um Robert Ryan brilhante no papel de vilão. Pode ser esse.

Como eu disse, uma garrafa de vinho e um western. A noite está ganha.

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Devo fazer parte da última geração que cresceu assistindo a filmes de faroeste. Esse pessoal mais novo deve ter visto alguns, fãs de cinema veem uns clássicos aqui e ali, John Ford e Howard Hawks; mas seu interesse é o cinema, não é o Velho Oeste. A minha geração, não: ela tinha na fronteira um referencial não apenas estético, mas ético também. Víamos faroestes o tempo todo, na Sessão da Tarde, no Bangue Bangue à Italiana, Sessão Western. Bons e ruins, claro; mas eram tantos filmes exibidos que, mesmo com o bocado de fitas ruins que faziam a base da programação, provavelmente vi a maior parte dos grandes clássicos do western ali, na TV.

É fascinante a maneira como os americanos, através do cinema e do faroeste, criaram para si mesmos um mito fundador que os países europeus só conseguiram depois de muitos séculos de história. O pistoleiro se tornou o cavaleiro andante; a prostituta, a donzela em perigo; o vaqueiro, o fiel vassalo. Deturpando e mitificando sua própria história, apagando seus crimes e embelezando suas pequenas tragédias, os Estados Unidos criaram um corpo de memórias em umas poucas décadas que lhes deu dignidade, respeitabilidade e um profundo senso de identidade.

A história americana é a história da busca do oeste, desde quando esse oeste era o Kentucky. Mas foi ao roubar ao México uma faixa de terra considerável — Arizona, Novo México, Califórnia — que os Estados Unidos se tornaram o que são hoje. Aquela foi a primeira guerra imperialista americana, uma guerra sem nenhuma justificativa ética ou moral além da cobiça e da necessidade de expansão territorial. Vergonhosa até mesmo para os americanos — nomes como Abraham Lincoln, então deputado em início de carreira, e Horace Greeley se pronunciaram contra ela —, a guerra tornou o “destino manifesto” uma realidade e transformou os EUA numa potência territorial.

E foi ali que se desenrolaram as últimas guerras contra os índios. O cinema se encarregou de mitificar e colocar para sempre na história tribos das Grandes Planícies como Apaches, Sioux, Cheyennes, Comanches, em menor medida os Navajos. Foram essas tribos que barraram a expansão espanhola na América no Norte, que atrapalharam durante décadas a expansão americana, e sua importância jamais poderia ser subestimada. Mas apesar da mitificação hollywoodiana, a grande guerra americana contra os índios se deu no leste. Chocktaw, Shawnee, Creek, Cherokee, Seminole, Chickasaw — tribos menos conhecidas mas vilipendiadas de uma maneira que, exemplificada na Grande Trilha de Lágrimas, deveria envergonhar cada americano, como o tratamento dado aos nossos guaranis caiovás deveria envergonhar os brasileiros.

No meu caso, o amor aos westerns acabou degringolando em uma curiosidade estranha sobre o processo histórico de conquista. Ainda são, para mim, os melhores capítulos da história americana (além de Jamestown com seus casos de canibalismo com a fleuma inglesa e, um pouco menos mas mais importante, Plymouth). Minha antipatia ao que representa a América não se estende à história de sua fundação, mesmo os tantos momentos vergonhosos como o Tratado de Guadalupe. A maneira como, em menos de um século, tomaram conta de praticamente todo um continente é impressionante e, dentro de seu contexto, ao menos parcialmente invejável.

Os comanches são talvez meus personagens favoritos. De tribo vagabunda e humilhada por milênios, em menos de 100 anos se tornaram a nação mais poderosa das Grandes Planícies americanas. Foram eles, junto com os apaches, que barraram a expansão espanhola na América do Norte, e apenas a invenção do revólver de ação dupla possibilitou aos americanos vencer definitivamente a guerra contra eles e os sioux. E tudo isso por causa de uma nova tecnologia: o cavalo.

A chegada do cavalo não teve tanto impacto, por exemplo, no leste americano. É compreensível: numa região com vegetação densa, o bicho não faz tanta diferença. Mas em uma pradaria quase infinita, ele coloca tudo em um nível diferente. Ao dominar o cavalo como pouquíssimas outras tribos, os comanches adquiriram um poder que a maioria dos outros índios americanos jamais sonharia em ter.

Hoje em dia é feio, em muitos círculos, falar qualquer coisa positiva dos colonos americanos que se aventuraram rumo ao oeste. A maneira como seu país roubou terras valiosas aos mexicanos e praticou um dos mais vergonhosos casos de genocídio contra os índios se sobrepõe a qualquer de suas qualidades, e a isso junta-se um processo de “beatificação” do índio, que passa a ser visto, de maneira excessivamente maniqueísta, apenas como o bom selvagem de Rousseau vítima de brancos odiosos.

Mas o fato é que a americana é uma história bela. Uma história que, apesar de tudo, é também a das pessoas que abandonaram tudo em busca de uma vida melhor. E que sofreram, e muito. Essa história é fácil de entender — e infelizmente, mais fácil ainda de mitificar erroneamente. Crescemos com esses estereótipos falsos: do cowboy galante (mal sabíamos que no Oeste se matava mesmo era na tocaia e atirando pelas costas), do índio morto em guerra aberta, do valor pessoal diante dos grandes interesses econômicos. Mas mesmo que tudo isso seja falso, há também o outro lado: o do cotidiano criado por gente que, apesar de branca e de fazer parte de um dos mais canalhas processos históricos, tinha também o seu valor pessoal. A história acaba sendo obra de gente que, apesar de branca, era corajosa e arriscava, ali, não apenas suas posses, mas também suas vidas.

O western conta um pedaço dessa história. Deturpa tudo, repito. Mas como cinema, como entretenimento, é absolutamente fantástico. Para algumas pessoas, o western é a própria definição do cinema, porque é apenas nele que pode existir em sua plenitude. E quem pensa assim tem toda a razão.