A Farra do Boi

Em julho de 88, em Goiânia, uma catarinense contava, a mim e a um amigo, a sua versão da farra do boi, que na época tinha alcançado as manchetes de jornal graças à sua crueldade desorganizada.

(Era um congresso de estudantes, o momento político era de agitação, achavam que discutíamos o futuro do país ali e tudo em que eu e esse amigo pensávamos era em arranjar alguém com quem dormir naquela noite. Em Goiânia fazia frio.)

Ela mentia. Ainda lembro de sua voz, de seu sotaque e da sua expressão de ultraje, dizendo “Não, mas a minha farra do boi não tem nada disso!” Sua amiga, calada, apenas concordava com a cabeça.

Tudo bem. A gente mentia, também. Descaradamente. Bons velhos tempos, em que a verdade podia ser tão sutil e tão pouco importante, porque a gente ainda sabia o que realmente valia a pena.

Folha corrida

Meu nome é Rafael Galvão e tenho 32 anos. Nasci num sábado de carnaval em Salvador, o que faz de mim um baiano nato, porém renegado.

Segundo este teste, meus principais pecados são a gula e a luxúria — espero que não necessariamente nessa ordem. Segundo este outro, meu principal distúrbio psicológico é o narcisismo. Ambos os testes devem estar corretos. Sou um hedonista por vocação e por talento. Gosto de comer bem. E gosto de comer bem.

Escrevo porque gosto, porque sei e porque, afinal de contas, sou bem pago por isso — quando não levo calotes, bem entendido. É como ganho a vida; ou melhor, é como a vida me engana. O único outro modo como eu poderia defender com galhardia o leitinho das crianças, infelizmente, é imoral.

A única coisa de que realmente entendo são os Beatles; um amigo dizia que eu sabia a cor da cueca que Paul McCartney estava usando ao gravar Helter Skelter, e ele não deve estar muito longe da verdade.

Poucas questões filosóficas me importam.

Já fui patrão e empregado. Ser patrão é mais rentável.

Já fui pobre e já fui quase rico, em ciclos constantes e tediosamente repetitivos — e mais uma vez, garanto que ser rico é melhor.

Ex-comunista, filiei-me de bom grado ao PDF — Partido do Dinheiro Fácil; onde, aliás, militam clandestinamente comunistas, capitalistas, anarquistas, socialistas e todos os outros istas que se possa imaginar.

Minha vaidade só é suplantada pelo sorriso de minha filha.

Sou temperamental, idiossincrático e elitista.

Minha namorada diz que sou competitivo, minha irmã diz que sou metido e minha filha diz que sou lindo. Num mundo ideal, minha namorada diria que sou competente, minha irmã diria que sou brilhante e minha filha continuaria dizendo que sou lindo.

Rio de mim mesmo, mas honestamente prefiro rir dos outros.

Há homens mais bonitos que eu, mas tenho certeza de que, em compensação, são todos viados.

Vou morrer em Paris, a única cidade de que gosto mais que o Rio de Janeiro.

Meus filhos da puta

Tenho mania de gostar de alguns grandes filhos da puta.

Como bom baiano, por exemplo, gosto de ACM. Ele é tudo de ruim que dizem dele — e competente, visionário, e autor de grandes respostas.

Gosto também de Figueiredo. Pela honestidade intelectual — era um bronco e não tentava dar uma de grande homem de letras, como Adelita — e pelo fato de preferir cheiro de cavalo a cheiro de povo (no que me junto a ele de bom grado). Ninguém que goste tanto de cavalos pode ser má pessoa de todo.

Bill Clinton é um dos meus mestres. Não por ter sido presidente saindo de um buraco como o Arkansas; mas por ter protagonizado uma das cenas mais requintadas que o Salão Oval da Casa Branca já produziu. É preciso ser extremamente sofisticado para descobrir tão doces usos para um charuto.

Assis Chateaubriand, que beirava a monstruosidade, é outro dos meus ídolos. Um sujeito capaz de forçar Nelson Hungria a assinar a lei Teresoca, um sujeito que criou o império que criou, e que tinha a virulência verbal que ele possuía, só poderia entrar no meu panteão.

Talvez eles tenham qualidades que não tenho. Mas, como bronco e apaixonado por cavalos, desconfio que um dia posso chegar a presidente da República.

Percival

Em setembro de 1993 eu estava no Rio de Janeiro, mais preocupado com a praia sem sol no domingo seguinte, quando minha avó me mandou procurar um computador.

A recente abertura do mercado inundava o mercado de máquinas finalmente semelhantes ao que havia lá fora. Computadores, antes aquelas máquinas cheias de luzes e sons de seriados como Batman — e mais recentemente aquele bichinho com o qual você poderia causar a terceira guerra mundial, como no filme “Jogos de Guerra” — eram os mais novos objetos de desejo do país. Restava a mim procurar uma boa máquina pelo melhor preço.

É verdade que, de certa forma, minha relação com computadores já vinha de longa data. Em 1982 ou 1983 houve a primeira grande explosão da micro-informática no país. Em Aracaju, para onde eu tinha acabado de me mudar, uma loja chamada Micromundo oferecia o que havia de melhor no mercado; e durante um curto espaço de tempo meu xodó era um TK-85 da Prológica, que parecia um livro fechado, com teclas minúsculas de borracha, e que precisava de um gravador e de uma TV para funcionar. Não lembro do preço, mas parecia razoavelmente acessível — daí a preferência. Agora, se dinheiro não fosse problema eu sabia o que queria: um CP-500, um mondrongo absolutamente charmoso que vinha com um monitor próprio verde, de umas 7 polegadas. Aquilo, sim, era um computador de verdade.

Mas 10 anos haviam passado, e computadores não faziam parte de meus projetos de vida naquele momento. Na verdade, esqueci os computadores logo depois de vê-los pela primeira vez. Naquela primavera de 1993 uma máquina de escrever das comuns supria, com folga, as minhas necessidades. E eu tinha uma novinha, eletrônica, portátil, que começava a dominar completamente.

Acontece que presente de avó não se rejeita, muito menos um computador. Me restava pesquisar. E a pesquisa foi, naturalmente, muito menor do que deveria ser. Eu simplesmente pegava os cadernos de informática de O Globo e dava uma olhada nos anúncios. Não era nada animador. De repente eu me via às voltas com siglas inextricáveis como XT e AT, 386 e 486, ISA e VESA, laser, inkjet, RAM, scanner, winchester — ei, essa eu conhecia. Era aquela carabina americana usada pra matar tudo o que não prestava: bandido, bisão e índio. Eu sempre quis ter um rifle daqueles.

Que coisa. Quem imaginaria que computador tinha tanta placa? E tantos modelos diferentes? Eu pensava que computador era computador, caput. Precisava de mais? Aquilo me parecia mais incompreensível que a Santíssima Trindade.

Lição número 1 para quem compra o seu primeiro computador: por mais que você julgue saber, você nunca sabe nada.

Eu entendia tanto disso quanto entendo, hoje, de física quântica. E tinha a séria desconfiança de que aquelas palavras não passavam de um código terrível para esconder uma ofensa pesada à minha mãe, pobre mãe.

Com a ajuda de um tio, este pobre peregrino encontrou seu Moisés numa loja de uma galeria comercial na Visconde de Pirajá, em Ipanema. O nome da desgraçada era Luciana; a loja, Gigatronics. Foi ela quem me indicou a configuração ideal, que seria montada por ela mesma: um 386 DX 40, HD de 127 MB, 4 MB de RAM. E um monitor SyncMaster 3, e uma impressora Canon BJ-200. Foi o que eu comprei. Meu computador, segundo ela, já viria com o DOS e com o Windows instalados, absolutamente preparado para editoração eletrônica — a única aplicação que consegui descobrir para justificar a compra daquela coisa. A impressora, dizia ela, era a ideal para esse fim; novidade no país, imprimia em P&B e, somente ela, custaria 750 dólares. No total eu dançaria na bagatela de 2200 dólares — assim mesmo, dólares, em singelas notas de 100 com a cara feia de Benjamin Franklin sorrindo para mim, como se quisesse dar a entender que eu era um idiota. Afinal, aquilo tinha sido contrabandeado em dólares. Dava para comprar um ou dois Fuscas com aquele dinheiro. Era o dia 20 de setembro de 1993.

Saí da loja direto para o aeroporto, me achando o mais up-to-date dos up-to-dates. Eles foram gentis a ponto de me dar uma nota fiscal falsa, para que eu evitasse eventuais problemas com toda aquela muamba no aeroporto. Eu estava encantado. No avião, carregando comigo minha impressora, um sujeito perguntou se aquilo era uma impressora. Aquiesci. Ele perguntou se era uma jato-de-tinta. Orgulhoso, respondi que não: era uma bubble jet. De vez em quando, quando não consigo dormir à noite, fico pensando no sujeito e acho que ele ainda está rindo de mim.

Foi apenas em Aracaju que descobri que minha via-crúcis tinha apenas começado. Eu ainda precisava de um estabilizador. Comprei. E agora precisava de uma tomada trifásica com fio terra. E depois precisava disso. E daquilo.

Lição número 2 para quem compra o seu primeiro computador: você sempre precisa de mais alguma coisa.

Na verdade eu não sabia nada sobre computadores. Sempre pensei que era só ligar o bicho, escrever e gravar com um título qualquer, como “Matéria para O Que de 27/10/91” ou “Outdoor de julho para Rádio Atalaia”.

Não era nada disso. E eu demoraria muito para aprender, se não fosse a ajuda de um vizinho, Maurício. Foi ele quem descobriu que o DOS não estava completamente instalado, e que de Windows aquilo não tinha nem o cheiro.

Lição número 3 para quem compra seu primeiro computador: o vendedor vai enrolar você.

Eu já conhecia esse Maurício havia tempo. Mas foi o computador que nos aproximou. Ele tinha um 286, e os programas que me arranjou — meus primeiros passos na pirataria, confessados agora porque o crime já prescreveu — eram condizentes com a velocidade do seu computador. Ele me conseguiu o DOS e alguns programas monocromáticos para DOS, jogos que ocupavam quando muito 10 Kb, um editor de textos chamado Carta Certa que me fez perder muito material importante, coisas desse tipo. E com material como esse, eu jamais poderia utilizar o potencial da minha impressora.

A partir daí fui instalando outras coisas. Consegui o Windows 3.1 com uma amiga (ela depois seria deputada federal e autora de um projeto de lei acerca de direitos autorais, mas naturalmente também dava suas pirateadas), depois o Corel Draw 4, o PageMaker 4 — eu estava no jogo. E fui aprendendo tudo aos poucos. Aprendi até a me virar com o famoso sistema de arquivos “8.3”, que lhe obrigava a condensar um título desejável como “Relatório de Vendas do Quarto Trimestre” em um código como “RELVEN43.WRI”.

Obviamente escolhi o caminho mais difícil. Uma pessoa com um pouco de juízo e inteligência faz um curso e aprende o bê-a-bá. Idiotas fazem o que eu fiz: comprava todas as revistas de informática que encontrava pela frente. A PC World americana, por exemplo, virou minha bíblia pessoal. É provavelmente a revista que mais me lembra esses tempos heróicos, e certamente a base de todo o meu conhecimento em informática. Em pouco tempo eu já sabia tudo sobre o mercado de computadores, sobre a concorrência feroz entre a Intel e a AMD e absolutamente nada sobre como fazer um blend no Corel Draw!.

Esse é um momento importante na vida daquele que começa a sentir orgulho em ser chamado de micreiro. É quando o computador pega o coitado pela goela e o vicia completamente. Ele já sabe um pouco, acha que sabe muito, e começa a mexer no autoexec.bat, no config.sys. Começa a achar que seu computador é lento demais, que o novo 486 DX2-66 é que é um computador de verdade. Quer aquele programa que saiu agora e no qual não consegue ver nenhuma utilidade pessoal. O computador deixa de ser o meio para agilizar as coisas e passa a ser o fim absoluto. No mínimo é o fim das noites de sono. Pode também ser o fim de um namoro ou casamento, se o caso for muito grave.

O neófito então começa a falar de computadores para todo mundo. Computadores são necessários em todos os lugares, por menos aparente que essa necessidade seja. Seus amigos precisam de um, eles é que não sabem ainda. O novo disco do Nação Zumbi é maravilhoso, mas saiu uma nova placa de vídeo que torna seu PC uma bala. Coitado; ele canta, todo o tempo, as maravilhas da era da informática. Vira idéia fixa. E ele, como todo evangelista, vira um chato.

Triste sina essa, compartilhada alegremente por mim. Aquele computador, que recebeu o nome de Percival, ficou comigo durante 3 anos. Sofreu muito nas minhas mãos, e eu nas dele. Sua placa de vídeo jamais saiu de 640×480 em 256 cores, e eu nunca soube se isso se devia a ela vir quebrada ou a não terem me dado os drivers corretos. No final, ele estava dando mais do que podia, heróico como um bom cavalo, rodando programas pesados como o então recém-lançado Netscape e o Corel Draw.

3 anos, para um computador, é muito tempo, claro. Mas Percival, com seus GPFs, com seus ataques de Athens e Daniella, dois virii idiotas, com sua incapacidade de lidar com textos grandes, agüentou a labuta diária com galhardia e perseverança, apesar de duas trocas de HD.

Aos poucos, o velho e bom Percival foi se tornando cada vez mais importante. Ele deixava de ser um instrumento de trabalho para se tornar o melhor meio de lazer que eu conhecia. A minha experiência diante de um computador passou a ser muito mais rica do que seria diante de qualquer outra máquina. Numa máquina de escrever eu jamais poderia jogar Civilization, por exemplo.

Lição número 4 para quem compra o primeiro computador: computadores criam novas necessidades.

Em 1995 eu já podia me considerar o que chamam de usuário avançado. Quebrava bem o galho. Noites e noites foram varadas na frente dessa máquina de fazer loucos. Um pouco depois comprei meu primeiro modem, e comecei a acessar BBS’s a 2400 Kbps. E depois comecei a acessar a Internet em um modem Boca 28.800 Kps, completando para sempre a minha dependência do computador. Mas isso já é outra história.

Muito tempo depois (3 anos, eu já disse) comprei outro computador. Abandonei o Windows 3.11 e entrei no mundo do Windows 95. E aí termina a minha história de amor com o computador. Porque a máquina em si, no final das contas, perdeu quase toda a sua importância, valendo alguma coisa apenas se conectado a uma linha telefônica. E aqueles pequenos rituais de ajustar o computador passaram a se tornar cada vez menos necessários com os novos sistemas operacionais.

Deixei de comprar a PC World há muito tempo. De vez em quando passo no seu site, mas raramente vejo algo interessante. Percival foi aposentado, e com a discrição de sempre (afinal, não se pode esperar estardalhaço de um 386 em plena época dos Pentium IV) foi ocupar seu lugar num cantinho qualquer do quarto, esquartejado. Ele ficou ali por muito e muito tempo, sem utilidade, esperando o dia em que o Deus dos Computadores (provavelmente uma versão melhorada do DeepBlue) viesse buscá-lo para o seu último descanso.

Como converter um comunista

Setembro de 1993, e eu na passarela sobre a avenida Chile, que liga as sedes da Petrobras e do BNDES, apenas olhando as notícias nas bancas de jornal.

E então, de repente, assim como Saulo de Tarso na estrada de Damasco, eu vi.

O sujeito passou rapidamente, de um prédio a outro. Vestia um terno impecavelmente cortado, e falava apressado ao celular, numa época em que celulares ainda eram artigos de alto luxo. Sua atitude era a de alguém que sabe que está ganhando muito dinheiro, e não pode perder um minuto para ganhar ainda mais.

Naquele momento, o mundo perdia um comunista. Eu vi o que o capitalismo podia me oferecer. E gostei do que vi.

Marlon Brando

No Monicômio há (ou haverá) uma sessão/seção chamada “Quando eu crescer quero ser igual a…”.

Pois quando crescer eu quero ser Marlon Brando.

É, o sujeito é o meu ídolo. Não apenas porque é um dos maiores, senão o maior, ator da história de Hollywood; nem porque sempre foi de uma integridade política sólida; nem porque tem uma beleza masculina impressionante; nem porque a essa altura esqueceu boa parte dos nomes de todas as atrizes que comeu; nem porque ficou podre de rico; nem porque é o feliz dono de uma ilha no Taiti.

É por todas essas razões juntas, e pelo fato de ter mandado o mundo tomar conta de suas vidas e se mudado para a sua Teti’aroa.

O Brando que realmente admiro não é o Kowalski de A Streetcar Named Desire. É, sim, o velho gordo cercado por um harém em sua ilha, o velho que cobra fortunas para fazer filmes (3 milhões por dez minutinhos em Superman, em 77), o sujeito que simplesmente está andando para o mundo. Não é um desdém de derrotado, como todos nós somos. É o desdém de quem conseguiu tudo o que quis na vida, de quem genuinamente descobriu o segredo da própria felicidade.

Brando é o máximo.

1989 A.PC. (Antes de Paulo Coelho)

Diálogo no inverno do ano da graça de Collor versus Lula:

Ela: Você gosta de ler?

Ele: Ahn… Não.

Ela: Que pena.

Ele: …

Ela: Eu leio muito. Pessoas que não lêm são menos inteligentes.

Ele: Acho que somos. E o que você lê?

Ela: Sidney Sheldon, Harold Robbins. “Se Houver Amanhã” é o meu livro preferido.

Ele: …

E nessas horas, o que se pode fazer além de recorrer a Baudelaire?

“Pour toi, bizarre amant, quel est donc mon mérite?”
— Sois charmant et tais-toi! Mon coeur, que tout irrite,
Excepté la candeur de l’antique animal (…).

Retorno a Zohar

Final de uma tarde de verão em 1979, Salvador. Eu estava no playground do edifício brincando com meus dois melhores amigos, Jailton e Pedrinho. Tínhamos arranjado alguns pedaços de pau, e algumas caixas de papelão das quais fizemos escudos. Brincávamos de batalha medieval; sou de um tempo em que as referências do passado, como cruzadas e cowboys, eram mais fortes que as do futuro nas brincadeiras infantis.

O edifício fica numa espécie de vale, porque de um lado está a escarpa da Ladeira da Barra, e do outro a 8 de Dezembro, outra grande ladeira. Além disso há prédios altos em volta.

E então, no meio da brincadeira, alguém notou algo estranho, que passava rápido e silencioso no céu. Quando olhamos para cima vimos um espetáculo inédito, e assustador. Um show de luzes vermelhas e azuis, informes, passou rápido e sumiu, em menos de um segundo, atrás do prédio que ficava em frente.

Eu era um garoto urbano. Nada relativo ao progresso, à civilização, me era estranho. Os cachorros dos lugares onde morei já não corriam atrás de carros. Nunca brinquei de pião ou de bola de gude quando era menino. Nunca me emocionei ao ver o mar pela primeira vez.

Mas aquilo era diferente. Era um disco voador, só podia ser um disco voador. Não era um avião — eu já tinha visto tantos, já tinha viajado em alguns. No mínimo, aviões faziam barulho.

Aquilo era um disco voador.

Jailton, Pedrinho e eu ficamos aterrorizados. Minha mãe havia ido comprar pão, e na volta viu um Jailton que, de bem pretinho, estava cinza de medo. Pedrinho também estava apavorado. Quanto a mim… Eu poucas vezes havia sentido um terror tão grande. Nada neste mundo – e, dadas as circunstâncias, em qualquer outro — me faria subir aquela escada. Eu tinha certeza de que havia um ET no vão embaixo dela. Esperei mamãe para subir com ela. Tinha certeza de que ela botaria aqueles homenzinhos verdes e maus para correr.

Os anos passaram. Minhas conclusões sobre o que eu tinha visto foram mudando com o tempo até que cheguei a uma conclusão preguiçosa de que aquilo era algo perfeitamente explicável, um balão meteorológico ou um avião (apesar da falta de som), ou qualquer coisa do tipo. Mas nunca tive certeza absoluta; era apenas uma conclusão racional, do tipo “discos voadores não existem, ponto”.

Exatos 20 anos depois, eu estava na varanda do meu apartamento em Fortaleza, de madrugada, ninando minha filha. De repente minha ex-mulher olhou apavorada para o céu atrás de mim: “O que é aquilo?” Rapidamente me virei. E então eu vi.

Havia demorado duas décadas, mas meu disco voador havia voltado.

Pensei claramente algo em um átimo, imensurável de tão rápido. E naquele momento eu gostaria de ser outro, de não ser este ser humano cansado e lógico que acha que entende as coisas e que pode explicar tudo.

Eu gostaria de ter pensado que guerreiros do planeta Zohar haviam voltado para me buscar, duas décadas depois de terem sido impedidos naquele dia pela presença indômita de minha mãe. Que ali estavam pesquisadores waldosianos que me abduziriam e fariam experimentos genéticos inomináveis comigo. Que iriam me levar para Kandor e me exibir como um espécime de uma raça inferior, imperfeita e estranha, preciosidade de um planeta tão distante. Ou que, fascinados com minha perfeição genética, sábios yukiahans iriam me levar para revitalizar sua raça, devolver a eles atributos ancestrais que a evolução lhes havia tirado.

Gostaria de ter pensado qualquer coisa assim, que mostrasse que a criança de 8 anos ainda estava ali.

Mas naquele momento eu só pensei em uma coisa: “Pronto. Agora vou saber que porra é essa”. E então eu soube.

Era um avião.

Um simples, um prosaico Boeing, voando baixo por entre nuvens também baixas. Aviões têm luzes azuis e vermelhas que piscam intermitentemente. Por causa das partículas de água contidas nas nuvens, a luz se dispersa e dilui, e o resultado é um objeto disforme e assombroso. Não é tão comum; em duas décadas só vi algo assim duas vezes.

Durante a maior parte daqueles 20 anos, tive a certeza de que aquele disco voador era um fenômeno humano perfeitamente compreensível, provavelmente um avião, mesmo. Mas, lá no fundo, havia a esperança de que fosse realmente uma nave interplanetária de um planeta distante, trazendo pesquisadores para entender melhor esta raça de que faço parte.

Ali o adulto cético e racional obtinha a sua vitória definitiva e incontestável, e a sombra da criança de 8 anos se esvanecia para sempre. A falta de imaginação venceu.

Esprit d'escalier

Mal acordo e me ligam do meu banco. Um desses funcionários de call center, com a cartilha diante dos olhos, tenta me convencer a ingressar num desses planos de capitalização, ou seja lá como chamam esses esquemas de 171 legalizados.

Declino da oferta e tento desligar, mas ele insiste. Continuo dizendo que não, mas ele insiste. Pergunto se por acaso viu meu saldo humilhante para ter o desplante de me oferecer algo assim, mas ele insiste — agora com novos argumentos: “o que você faria com 25 mil reais?” Repito que não quero, e já perdi as contas de quantos “nãos” disse. Finalmente ele aceita desligar o telefone sem que eu tenha que ser mal-educado.

Os franceses têm uma expressão para aquela boa frase que só vem à sua cabeça depois que tudo acabou. Chamam de esprit d’escalier, espírito de escada. É a resposta espirituosa que só aparece quando você já está saindo.

E só na escada é que fui pensar no que faria com os 25 mil reais: “Amigo, com esse dinheiro eu contrataria uns 10 pistoleiros para acabar com todos os funcionários chatos de telemarketing do país”.

Karate Kid

Assisti na TV, há algum tempo, a Karate Kid II, um filme extremamente bobo e de que não gosto nem um pouco.

Mas como até nas piores ostras pode-se encontrar uma pérola, perto do final há uma cena interessante. A mocinha do filme, apaixonada pelo Karate Kid, e sabendo que ele vai embora, resolve fazer a cerimônia do chá para ele. No filme essa cerimônia é descrita como uma coisa que se faz quando um casal se apaixona, o que é uma deturpação deslavada. Mas tudo bem, isso não importa.

A cerimônia do chá é um belíssimo ritual, como é quase tudo que diz respeito às relações pessoais de qualquer tipo no Japão, pontuado pela rigidez de procedimentos e respeito às tradições e convenções.

Aí comecei a viajar. O filme é da era Reagan. Se você acha que o governo Bush é retrógrado é porque não pegou esse tempo; o de Bush é só mais burro e mais inescrupuloso. Os anos 80, nos EUA, viram uma espécie de reação puritana à revolução sexual de 20 anos antes. Por exemplo, eles tinham a mania de distribuir evangelhos em motéis (sempre imaginei a grande utilidade desses livrinhos para um sujeito como o Marlon Brando de “O Último Tango em Paris”, mas não conte isso a eles). Havia uma campanha pela castidade a qualquer preço, “don’t get aroused“, essas coisas.

E então comecei a pensar que, afinal de contas, Karate Kid podia não ser um filme tão ruim assim. Olha que lindo, que típico de sua época: a substituição do velho, sujo e vil sexo extra-marital por um ritual puro, rígido e sublime que tem maior significado espiritual do que a mera troca de fluidos corporais e eventuais palavras obscenas, essa coisa do Diabo. Karate Kid usava uma metáfora interessante para definir a moral de sua época.

De repente o filme tinha mais profundidade do que a carinha de bebê de Ralph Macchio fazia supor.

Mas aí, encerrada a cerimônia do chá, vem o gesto simbólico e clichê: ela solta os cabelos, num sorriso convidativo e purificado pelo compromisso assumido pelos gestos sincronizados dos dois.

Ah, não. É sacanagem. Não dá para ser feliz desse jeito.

Menos ainda porque exatamente quando o Ralph Macchio, que consegue a proeza de ser mais bobo do que eu, entende o recado e se anima a provar que apesar de todas as aparências ele ainda tem um tiquinho de testosterona naquele corpo raquítico, cai uma tempestade e eles têm que ir embora.

De promessa de metáfora até inteligente de sua época o filme volta ao seu amontoado de clichês, e eu volto à sensação de que fui feito de bobo.

Eu juro: nunca mais penso quando estiver vendo um filme.