Abelardo e Heloísa

Heloísa em Argenteuil, Abelardo em Saint-Denis, agora tudo o que podem fazer é se escrever cartas, as dele arrependidas e sensatas, as dela como esta:

Eu, infeliz e aflita entre todas as mulheres. Tu levantaste-me ainda mais alto só para aumentar a minha dor na queda. Enquando entregávamo-nos aos prazeres da luxúria, Deus fingiu não estar vendo, mas depois castigou-nos: e nem mesmo o nosso casamento abrandou a Sua cólera. O Maligno sabe até bem demais como usar uma mulher para arruinar um homem. Éramos dois, a pecar, mas só tu tiveste que pagar. Agora eu também sofro. Por tempo demais entreguei-me aos prazeres da carne e este é o justo castigo. Persegue-me a lembrança. Até durante a Missa, quando a oração deveria fazer-me sentir mais pura, as lembranças atormentam a minha mente, e em lugar de arrepender-me, tenho saudade daquilo que perdi. As pessoas louvam a minha castidade só porque não sabem que no fundo não passo de uma hipócrita. A minha habilidade em fingir consegue enganá-las, mas eu não me curei: penso em ti, te amo, te quero, te desejo, como antes, mais do que antes.

Heloísa freira em Argenteuil, Abelardo emasculado em Saint-Denis, incapaz de sentir o fogo que ainda queima a carne de sua Heloísa.

1979, o ano em que viramos gente

É curioso que já vá fazer 30 anos, mas 1979 foi o Ano Internacional da Criança.

A ONU tem dessas coisas, de vez em quando escolhe um ano e o dedica a um tema. Só foram acertar naquele ano, quando finalmente conseguiram algo que mobilizasse as pessoas. Mas tentaram muito até lá. Começaram em 1957 e de lá para cá houve anos importantes como o Ano Internacional do Arroz, em 1966 e novamente em 2004, e o Ano Internacional das Montanhas, em 2002.

Em 1979 eu não sabia de nada disso. Não sabia sequer que aquele também era o Ano Internacional de Solidariedade com o Povo da Namíbia, e acho que não havia muita gente mais que soubesse — talvez nem o povo da Namíbia, a quem deveríamos prestar nossa solidariedade inexistente. Não sabia que o secretário geral da ONU era Kurt Waldheim, de passado obscuro sob o signo da suástica nazista. Nada disso importa, no fundo, não a mim. O que interessa, mesmo, é que ainda hoje, quase 30 anos depois, lembro de tanta coisa que às vezes é até difícil admitir que já faça tanto tempo.

Ao contrário dos outros anos — quem em sã consciência pensaria comemorar 2006 como o Ano Nacional dos Desertos e da Desertificação? —, parecia que todos estavam comemorando. Mesmo um país como o Brasil, que naquele ano celebrava algo mais importante, a Anistia, parecia ver o Ano Internacional da Criança como algo único. Ou pelo menos assim parecia a quem, como eu, via na TV e nas revistas uma enxurrada de menções ao Ano, e a Declaração dos Direitos da Criança parecia estar em todo lugar. Declaração que vasculhei para tentar descobrir alguma coisa com que descolar algum dinheiro de meus pais; mas não que consegui mais que alguns argumentos vagabundos para eventuais manhas ineficazes.

As revistas em quadrinhos que eu comprava traziam o selo do Ano, comerciais de TV pretendiam amolecer os corações embrutecidos de adultos, que então deveriam se tornar suscetíveis àquela conversa boba de trazer de volta a criança que há em cada um de nós. Do ponto de vista de quem era criança em 1979, era como se de repente todo o mundo tivesse prestado atenção à nossa condição. Ser criança então parecia ser algo bom, e o mundo voltava seus olhos para nós. Parecia que éramos promovidos repentinamente, e de bibelôs incapazes nos transformávamos, finalmente, em gente pequena.

Para um menino criado no Porto da Barra a mensagem era destinada a gente como eu, que tinha casa, carro e motorista, e que merecia ter seu papel na sociedade reconhecido e valorizado. Sobrevalorizado, na verdade. O que quer dizer apenas que eu não entendia nada, e não sabia do drama das criancinhas africanas ou vietnamitas, não sabia que era a elas que se destinava a iniciativa da ONU. Sinceramente, e que me perdôem o meu coração insensível e cruel, o destino delas pouco me interessava; naquela hora outras coisas me chamavam a atenção, como completar a minha coleção de Playmobil do faroeste. As casinhas — saloon, drugstore — eram caras e eu nunca tive uma delas.

Pode parecer saudosismo bobo, mas nunca mais houve um Ano Internacional como aquele. Dois anos depois foi a vez de se comemorar o Ano Internacional do Deficiente Físico, e houve algumas tentativas de dar a ele algo da importância de dois anos antes. Mas o mundo gosta mais de crianças que de aleijados, porque crianças parecem, para alguns, o símbolo máximo da renovação, uma promessa ainda não cumprida. Essas pessoas que idolatram os párvulos parecem esquecer que Hitler também foi criança, e que Klara Pölzl teria feito um grande favor ao mundo se, ao ver que tinha um pão no forno, se tivesse entregado aos cuidados de uma fazedora de anjos.

Talvez seja. Mas eu, teimoso como todas elas me dizem, continuo achando que nunca mais houve um ano como aquele. E quem quiser provar que eu estou errado tem uma boa chance ano que vem, e pode comemorar, alegremente, o Ano Internacional da Heliofísica.

O dia em que Sergipe quase se tornou uma potência camaroneira

O texto abaixo é um pedaço da coluna desta semana de um jornalista e imortal sergipano, Luiz Eduardo Costa.

Em 1964 chegou a Sergipe um americano que se dizia poderoso empresário do setor pesqueiro. Ele havia constatado que Sergipe possuía uma das maiores reservas camaroneiras do mundo. O crustáceo estava ali mesmo na costa sergipana. Era preciso apenas que alguém se dispusesse a pescá-lo. E isso ele queria fazer, trazendo para ficar baseados em Aracaju os barcos da sua imensa frota. O gringo falava pessimamente o português, mas era sempre entrevistado na Rádio Liberdade pelo repórter Silva Lima, que no seu calamitoso inglês portuário conseguia traduzir para a opinião pública as intenções do megapescador yankee.

Logo hospedado com todas as honras na suíte presidencial do Hotel Palace, o americano ampliou contatos, procurou a Federação das Indústrias, o Banco do Brasil, e ao governo manifestou a sua única reivindicação: queria que os velhos trapiches do Lima em Aracaju, e outros na Barra dos Coqueiros, fossem adquiridos pelo governo do Estado e transferidos para a sua multinacional pescadora.

Enquanto isso, começou a fazer compras no comércio, de roupas principalmente. Tornou-se alvo das atenções, das deferências na acanhada província que festejava alguém chegando assim, tão disposto a investir e a gerar empregos, explorando aquela enorme e insuspeitada riqueza. Alguns, com aquela ânsia puxasaquista que dominava a época, começaram a atribuir a vinda do empresário norte-americano ao novo clima existente no Brasil, com a vitória da “revolução democrática e redentora de 31 de março que livrou o Brasil do comunismo ateu que ameaçava a pátria, a família e a propriedade”.

Organizou-se uma visita às praias da Barra dos Coqueiros, onde o americano demonstraria o potencial que, breve, tornaria Sergipe a “terra do camarão”.

No dia da visita lá estavam as autoridades civis, militares e eclesiásticas, como era de praxe nessas circunstâncias assim tão especiais. O americano, cercado por muita gente embevecida com tanta competência camaroneira, abaixou-se, apanhou um punhado de areia molhada da praia e proclama: “Aqui está, é camarrrraaão purrro”.

Todos retornaram confiantes na nossa capacidade para capturar e exportar camarões. Mas houve um pequeno contratempo: o repórter Silva Lima, mais uma vez entrevistando o americano, perguntou-lhe o que seria feito com os peixes que viriam nas imensas redes de arrasto puxadas pelos barcos camaroneiros, e ouviu a resposta em inglês que logo traduziu: “Todo o peixe será doado às pessoas pobres”. No outro dia, a Associação dos Criadores de Sergipe publicava nota nos jornais advertindo para a crise que inevitavelmente desabaria sobre a pecuária sergipana, diante daquela imensa oferta de peixe a custo zero.

O empresário dos camarões, enquanto isso, tentava depositar no Banco do Brasil um cheque visado de um banco americano, mas insistia em receber adiantado uma parcela. Naquele tempo as comunicações eram precárias e ninguém conseguia uma ligação rápida com o Rio de Janeiro. Um funcionário do banco, já desconfiado, insistiu muito e conseguiu a confirmação de que aquele cheque a ser descontado era simplesmente falso.

Nesse meio tempo, o empresário americano fazia rapidamente as malas, desocupava a suíte presidencial do Hotel Palace e sumia, levando apenas as roupas que comprara a prazo usando o seu incontestável crédito.

Anos depois ele apareceria morto num dos apartamentos do Hotel Boa Viagem, no Recife.

Tratava-se de um agente da CIA que vendera informações secretas à União Soviética e andava fugido, aplicando golpes pelo mundo, até que agentes o encontraram e estraçalharam a sua cabeça.

Os grilhões que vos prendem

Cada um permaneça no estado em que foi chamado. Foste chamado sendo escravo? Não te preocupes com isso; e, mesmo podendo fazer-te livre, antes aproveita-te da tua escravidão. Pois aquele que, sendo escravo, foi chamado pelo Senhor, é liberto do Senhor; e, igualmente, aquele que, livre, foi chamado, é escravo de Cristo. Fostes comprados e pagos, não vos façais escravos dos homens. Irmãos: persevere cada um diante de Deus na condição em que foi chamado.

1Coríntios 7, 20-24

Para quem tinha alguma dúvida sobre a razão pela qual o cristianismo passou de uma entre tantas seitas judaicas a religião oficial do Império Romano em pouco menos de 300 anos.

No Natal de 1914

O último sobrevivente aliado da trégua do Natal de 1914, durante a I Guerra Mundial, morreu ontem. Ele tinha 109 anos.

O episódio é um dos mais famosos da guerra: britânicos e alemães interromperam o morticínio, apertaram-se as mãos, trocaram pequenos presentes e até mesmo jogaram futebol no dia 25 de dezembro de 1914. Fãs dos Beatles conhecem o episódio, lembrado por Paul McCartney no videoclipe de Pipes of Peace. A trégua ressalta a imbecilidade da guerra e lembra que não é o povo que a quer. A guerra é decidida por gente que não morre nela.

Aquela trégua foi, provavelmente, o último suspiro da era vitoriana, em um momento de crise em que noções arcaicas de honra e humanidade eram subjugados, definitivamente, pelas novas armas de destruição em massa e por uma nova concepção de guerra. Vista assim, a trégua foi um anacronismo. Não havia mais espaço para o cavalheirismo em um mundo povoado por tanques, aviões e metralhadoras, um tempo em que as mortes causadas pelo homem, pela primeira vez na história ocidental, se contavam na casa das dezenas de milhões.

Costumamos nos lembrar, principalmente, da II Guerra Mundial. Pelas dimensões, pelos 60 milhões de mortos, pela exacerbação do mal contida no nazismo, e porque é relativamente recente. Mas a I Guerra, sob vários aspectos, foi a mais importante da história. Marcou a ruptura entre dois mundos diferentes, o final da era vitoriana e o início de um um novo tempo. Por mais aterradora que tenha sido a II Guerra, e mesmo levando em consideração que o mundo que emergiu dali era bem diferente, ela não forjou esse novo mundo: ele nasceu ali, nas trincheiras da Bélgica. Foi a I Guerra quem deu origem à União Soviética e elevou os Estados Unidos à categoria de potência econômica e bélica. Acima de tudo, foi a I Guerra que mostrou à humanidade que o horror podia não ter limites.

O mundo que emergiu da I Guerra era outro. Em 1914 os alemães saudaram os soldados que partiam para a frente de batalha com pétalas de flores. Eram ainda felizes descendentes de Frederico II da Prússia, ainda aqueles que viam na guerra um sentido para uma vida. 25 anos depois, os mesmos alemães olharam taciturnos suas tropas marchando em direção à Polônia. Não havia mais alegria ou orgulho. Eles já conheciam o horror da guerra. E essa transformação, essa perda definitiva da inocência — algo que não pertence apenas aos alemães, mas a toda a Europa; os franceses justificaram sua covardia em 1939 com essa lembrança — se deve a 1914.

No ano em que comemoramos os 60 anos da II Guerra, seria bom olhar um pouco mais para trás e lembrar das verdadeiras mudanças. A II Guerra Mundial, para quem a viu nascer, era pouco mais que o segundo turno da I, com um intervalo de 20 anos. Hitler, em parte, foi cria de Versalhes; e se a guerra do Holocausto e de Hiroshima chama a atenção pelos extremos de ódio e de capacidade de destruição a que se chegou, a primeira foi ainda mais importante por ter descortinado uma era de trevas possíveis, e todos então perceberam que os limites haviam acabado.

A morte do último sobrevivente aliado daquela trégua é também um lembrete de que, a cada dia que passa, mais e mais pedaços de um passado não tão distante desaparece. O mundo vitoriano pode ter acabado em 1914, mas enquanto houver sobreviventes daquela trégua, daquele pequeno momento de sanidade em meio à barbárie, ele ainda é mais que umas letras arrumadas em um livro qualquer de história, ainda que apenas nas lembranças de uns poucos. E talvez seja essa a sua verdadeira importância.

(A foto deste post faz parte de uma belíssima coleção de fotos coloridas da I Guerra.)

60 anos atrás

Comentário interessante do Emerson Lopes em um post antigo:

normalmente acho seus posts inteligentes. Infelizmente toda regra precisa de sua exceção. Vc pode até não gostar dos americanos, democracia é isto, mas não precisa agredir a história deste jeito. Os alemães atacaram navios americanos que enviavam suprimentos para a Inglaterra e os nazistas sabiam que haviam americanos lutando na RAF em 40 e 41. Quando Roosevelt declarou guerra ao Japão, ele o fez de imediato à Alemanha. Não o fez antes pois a opinião pública americana tinha dúvidas se devia se envolver no conflito, embora Roosevelt soubesse que os planos de Hitler afetariam a América LOCALMENTE cedo ou tarde. Havia também um clima de guerra entre os EUA e a Alemanha em função dos embargos dos americanos aos produtos alemães em todo o continente americano.

Ah, por favor. O fato de haver americanos lutando na RAF não quer dizer absolutamente nada. Indivíduos têm o direito de lutar onde são aceitos sem que isso seja considerado uma declaração de guerra de seus países de origem. Isso diz tanto quanto o fato de haver americanos e ingleses nos serviços de radiodifusão do Eixo, como havia. Balela é isso, e do tipo absolutamente dispensável.

Quanto aos ataques alemães, é simplório demais achar que porque um cargueiro foi bombardeado um país declara guerra a outro. Na verdade, o torpedeamento desses navios, quando comerciam com países em guerra, é algo absolutamente legal.

Além disto, esta estória de que os EUA declararam guerra à Alemanha por causa do pacto ROBERTO é balela. O Japão era aliado de Hitler e nem por isto atacou a União Soviética, o que poderia ter feito a guerra durar pelo menos até 47 ou 48 com resultados duvidosos para os aliados, pelo menos na Europa.

Antes de falar isso você deveria se informar melhor sobre o Pacto Tripartite. O texto original está aqui. Aí você veria que ele excluía a União Soviética da obrigatoriedade de declaração solidária de guerra. Ele tinha sido assinado com dois objetivos: preservar o status quo da relação do que ali se tornava o Eixo em relação à União Soviética, e manter os Estados Unidos em posição de neutralidade. Depois que a guerra estourou entre a Alemanha e a União Soviética, ao Japão simplesmente não interessava entrar nessa guerra, do que era dispensado pelos termos do acordo — assim como não interessava à União Soviética, que só declarou guerra ao Japão depois de Hiroshima, para pegar sua parte nos despojos. Na época o Japão estava muito ocupado com a guerra sino-japonesa, se preparava para enfrentar os Estados Unidos e, ao contrário de Hitler, sabia ser pouco sábio guerrear em muitas frentes.

No caso dos Estados Unidos era justamente o contrário.

Agora só falta o pessoal dizer que eu não sei o que digo quando falo dos Beatles.

Faustino

Por Cipy Lopes

Final dos anos 70. Salvador, como outras grandes capitais brasileiras, foi invadida por grafites. Expressão de rebeldia num momento de grande mobilização na cena política do país, dos gritos que precederam ao ‘Diretas Já’, grafites como ‘Faustino’, ‘Baldeação’, ‘Mancha’ e ‘Madame Min’ alegravam a cena urbana da cidade da Bahia. Nas manhãs, quando eu saía para o trabalho (morava na Graça e trabalhava no Caminho das Árvores – trajeto relativamente longo) levava a expectativa de ver as frases engraçadas, inteligentes, carregadas de teor político-social, escritas sempre na madrugada em muros estrategicamente escolhidos. Mas o meu grafite preferido era o Faustino.

Nascido em 1979, Faustino foi o pioneiro e, pra mim, o mais expressivo personagem que o spray revelou nos muros brancos da velha cidade. Trazia um humor sutil e bulia com as pessoas com suas tiradas jocosas. Simpático, era totalmente integrado à nossa urbanidade, e nunca ficava despercebido, nem mesmo ao mais desatento, distraído e alheio caminhante ou passageiro das avenidas daqui.

Faustino cheira o fio dental é uma das muitas frases que li por aí e que guardo na ‘gaveta’ como testemunho de um tempo difícil em que manifestações anônimas – e proibidas – me contentavam. Em qualquer lugar, Faustino sempre era motivo de boas conversas e ótimas risadas. Mesa de bar, trabalho, faculdade, nada escapava.

Uns tantos reclamavam muito da ‘sujeira’ nos muros. Pra outros, isso de ‘sujeira’ passava ao largo. ‘A Tarde’ – o maior jornal local – era uma voz reclamona. Faustino é assinante d’A Tarde foi uma reação de pronto às matérias publicadas sobre a ‘sujeira’ na cidade. E o pessoal do jornal gostou da brincadeira.

Filho da crise, Faustino faz piquenique no motel, vendeu o ouro do dente e carrega uma calculadora na capanga. E ele quitou o carnê do bloco. Já podia receber o kit que fazia a alegria dos foliões da classe média: mortalha, chapéu e mamãe-sacode. Nesta época os blocos de Carnaval e os promotores de espetáculos colavam cartazes pela cidade, muitos deles em cima das frases que o imortalizaram, pelo menos pra mim.

Cafona-nostálgico-saudosista, Faustino usa calça Topeka, lava a roupa com Rinso e usa escovinha pata-pata. Faz curso Madureza e tem um gosto musical pra lá de especial: aprecia o Trio Yrakitan e ouve Julio Iglesias. Ah, ele também canta no coral da empresa.

Faustino tem um terreno na Ilha (Itaparica). E status! Este era um dos sonhos de consumo da classe média soteropolitana. Outro sonho realizado foi quando ele tirou um Chevette Jeans no consórcio. O modelo escolhido atesta a sua cafonice, e no consórcio, a alternativa da hora. Cafonice também foi possuir uma pasta 007, inicialmente símbolo de executivos bem sucedidos e que à época era usada por contínuos nas suas caminhadas diárias pelas agências bancárias do Comércio, o nosso centro financeiro.

Interessante é que todos comentavam sobre Faustino, mas ninguém sabia quem era o seu criador, até que os jornais ‘Correio da Bahia’ e ‘A Tarde’, em março e abril de 1984, respectivamente, lhes dedicaram uma página inteira cada um. E Faustino teve, aos 4 anos, a identidade paterna revelada: Miguel Cordeiro, economista, fã do rock do ‘Camisa de Vênus’, então com 28 anos. Confesso que esta revelação me foi uma espécie de semi-alegria. O fato de não saber quem fazia aqueles grafites trazia uma sensação diferente.

Miguel Cordeiro fazia desenhos também, e os apresentava na galeria aberta que eram os muros das Av.s Manoel Dias da Silva e Paulo VI, na Pituba; o final da Oito de Dezembro, na Graça; Marquês de Caravelas e Afonso Celso na Barra, para lembrar alguns. Sim, geograficamente a história de Faustino e a arte plástica de Miguel foram expostas entre a Barra e o Caminho das Árvores.

E taí o Faustino.

Bons tempos aqueles em que se saía de casa e se encontrava um bom humor; uma graça poética dessemelhante pelas ruas, num diálogo charmoso onde o sorriso discreto, ou não, sempre brotava.

Não ouvi mais falar em Faustino, como também no seu pai. Ele, o cafona simpático, vive na minha lembrança e deve viver também na lembrança dos apreciadores da arte que tinham a Soterópolis de então, e que levam a Bahia a sério.

Cine Rio Branco

Passei a adolescência em Aracaju e, numa cidade ainda sem shopping centers, o centro da cidade era, realmente, o centro da cidade.

O Cine Rio Branco ficava exatamente ali. Até 2002 era o cinema mais antigo de todo o mundo em funcionamento contínuo. Era a única coisa de classe mundial que Aracaju tinha, a única coisa realmente singular que aracajuanos poderiam se orgulhar de ter.

Como todos os moradores de Estados atrasados pobres e cidades pequenas, aracajuanos têm auto-estima baixa e são muito suscetíveis à opinião dos outros. Se ofendem quando alguém não acha que sua cidade é a tradução perfeita da imagem que escolheram (no caso de Aracaju, uma cidade calma, tranqüila e bem organizada de povo acolhedor — e não, eu não copiei isso de um folder turístico). Mas eles simplesmente não sabiam o que tinham nas mãos.

Certo, havia muito tempo que os intelectuais da cidade gritavam em mesas de bar que se deveria preservar o cinema, mas nunca fizeram muito mais que isso. E o Rio Branco foi demolido na virada de 2002 para 2003, na calada da noite. A maior parte do pessoal que gritava que deveriam preservá-lo, em uma espécie de reflexo condicionado, sequer pareceu notar.

Desde 1997 eu tinha certeza de que o Rio Branco chegaria ao fim. Foi quando fecharam o melhor cinema do centro, o Palace, com sua decoração que lembrava os fantasmas dos anos 50. Esse teve um destino que pode até se dizer honroso, porque se tornou um bingo. Depois foi o Cine Aracaju, com destino mais inglório: virou igreja evangélica por pouco tempo e hoje é um estacionamento.

Ninguém falou nada enquanto esses cinemas iam abaixo. Provavelmente não compreendiam a sua importância dentro da história cultural da cidade. Não sabiam que os cinemas de rua, mais que salas de exibição, são instituições que se integram à memória afetiva da cidade, que de maneira quase imperceptível chegam a ser formadores da própria identidade cultural da cidade. Apenas pareciam compreender o que significava o Rio Branco; infelizmente sua compreensão me parecia se limitar ao prédio em si.

O Rio Branco, à parte algumas placas comemorativas de grandes nomes do teatro brasileiro que passaram por lá, não tinha nada de especial. Não chegava aos pés, por exemplo, do Jandaia de Salvador, provavelmente o cinema mais bonito do Brasil e que até há pouco tempo se deteriorava em frente aos camelôs da Baixa dos Sapateiros vendendo defumadores e patuás. Sequer do São Luiz de Fortaleza e seu mármore italiano. Sua glória estava justamente na sua existência. O Rio Branco só era grande porque funcionava. Só por isso.

Havia algumas alternativas para ele, claro. Mas sempre faltou interesse e visão de um Estado que não preza por preservar a sua cultura, principalmente porque normalmente tem uma visão equivocada do que ela é.

O cinema foi abaixo, virou uma loja de roupas baratas, e agora não há mais nada a fazer. Só pegar as lembranças e tentar fazer delas algo compreensível. Uma delas é o outro recorde do Rio Branco. Em 1987 ou 1988, não sei direito, foi o cinema com maior público pagante em todo o país. Venceu cinemas de shopping centers do Rio e São Paulo. A razão era simples: o Rio Branco tinha se especializado, a partir do segundo quarto da década de 80, em filmes pornográficos. Era o único em Sergipe, em uma época em que a população mais pobre aina não tinha vídeo-cassete.

Era uma delícia passar em frente ao cinema e ver os títulos dos filmes em exibição. Eu sempre tive a impressão que os cineastas e tradutores brasileiros criavam os títulos desses filmes depois de um dia duro de trabalho: iam para um bar, enchiam a cara e, depois de contar piadas e fofocas, tentavam achar o título mais esculhambado dentro de um mínimo de pertinência possível.

Um deles era “Senta na Minha Que Eu Entro Na Tua”. E em 1989, época do sucesso do “Batman” de Tim Burton, o Rio Branco apareceu com o divino “Batxota”. Mas nada, nada poderá substituir a glória sado-masoquista delirante de “Penetradas por Trás com Dor e Força”. Quer dizer: quase nada. Porque aí a gente lembra de “Oh! Rebuceteio”, e por trás do sorriso que vem à boca imediatamente fica uma impressão de exuberância despudorada que não se vê mais por aí.

E na Semana Santa o dono do Rio Branco substituía os filmes de sacanagem por qualquer outro filme com título mais pio. Ele, como bom católico, tinha que respeitar a moral e os bons costumes de um povo que não sabia que o seu maior cinema estava às vésperas de uma morte inglória.

Fin-de-siècle

Seculozinho cansativo, aquele.

O que dizer de um período de tempo que começou com 14 anos de atraso, foi definido por apenas cinco homens — Darwin, Freud, Marx, Einstein e Hitler — e terminou numa noite qualquer de novembro de 1989? E que, pior, deixou um limbo de 12 anos, em que as coisas simplesmente não foram a lugar nenhum, até que o século XXI começasse no dia 11 de setembro de 2001?

Seculozinho de merda, aquele.

Diário de Berlim

Meio por acaso, me bati com o “Diário de Berlim”, livro de William Shirer, autor de um dos maiores clássicos sobre a II Guerra Mundial, “Ascensão e Queda do III Reich”.

O livro não está mais em catálogo no Brasil. Não dá para saber que edição é essa: apenas que a editora foi a Record e que quando ele foi lançado a Guanabara ainda existia.

“Diário de Berlim” conta a experiência de Shirer como correspondente estrangeiro em Berlim. Obviamente não pode oferecer uma visão ampla das coisas, em uma época em que a censura era quase absoluta, em que o Voelkische Beobachter, o jornal de Hitler, publicava notícias que pareciam saídas do Planeta Diário e em que todos os países diziam mentiras atrás de mentiras sobre seus inimigos.

Mas, em compensação, dá algo que os livros de história costumam perder: o frescor da notícia recente, o estupor diante da evolução dos fatos. As análises e previsões feitas, mesmo quando equivocadas, dão uma idéia clara e precisa de como se pensava naquela época. O livro ajuda a entender melhor a II Guerra Mundial, e principalmente o nazismo, porque oferece uma sensação de humanidade que a peripécia e a análise fria costumam expulsar dos livros de história.

“Diário de Berlim” ajuda a colocar algumas coisas em perspectiva. A atitude covarde da Inglaterra de Chamberlain é bem lembrada, e a figura de Churchill, solitário em suas denúncias de Hitler antes de quaisquer outros, cresce assustadoramente — assim como a de Roosevelt nos Estados Unidos, embora de maneira menos clara.

Nesse aspecto, o que realmente impressiona quando mostrada assim, a quente, é a indignidade da postura francesa. Não há explicação para a maneira covarde como a França reagiu diante de Hitler, nem mesmo a decadência da III República. Até quando a Alemanha invadiu a Polônia e as intenções alemãs já eram mais que claras, a França ainda insistia na paz. A única coisa decente que a França fez, em meio a sua tibieza, foi declarar Paris cidade aberta quando as tropas alemãs marcharam em direção a ela. Podem não ter mantido sua dignidade, mas pelo menos preservaram a melhor cidade do mundo.

À medida que o diário vai sendo escrito, a história vai acontecendo. A tomada da Renânia, o Anchluss da Áustria, a Tchecoslováquia entregue por Daladier e Chamberlain. O livro mostra que a data de 1o de setembro de 1939 só é lembrada como o início da II Guerra Mundial porque foi quando a Inglaterra e a França declararam guerra à Alemanha. Mas demoraria ainda mais de 8 meses até os três países entrarem de fato em guerra, com ataques a seus respectivos solos; enquanto isso Hitler ia tomando a Dinamarca, a Noruega, o Benelux.

O livro mostra também o impacto do pacto Ribbentrop-Molotov, primeira parte de uma estratégia acertada de Hitler — o segundo viria a ser o Pacto Tripartite, feito para intimidar os Estados Unidos mas que acabaria justificando sua entrada na guerra na Europa. Se a Europa vinha permitindo o crescimento militar de Hitler, é porque tinha mais medo de Stalin do que do nazismo; de repente, sem que ninguém esperasse — e depois de várias tentativas de acordo entre Stalin e a Europa não-nazista — a União Soviética era deixada em paz por Hitler. Foi uma medida pragmática de Stalin; mas nem por isso aqueles que tinham lutado ao lado dos legalistas na Espanha conseguiram engolir ou compreender a atitude.

É no retrato do dia-a-dia alemão, entretanto, que está o melhor do livro. Shirer mostra como os alemães se prepararam para a guerra, vivendo numa pobreza e privações incompatíveis com o resto da Europa enquanto Hitler, em menos de dez anos, criava a mais fantástica máquina de guerra que o mundo já tinha visto.

Lendo “Diário de Berlim”, uma coisa fica clara. Claro que a esmagadora maioria dos alemães não era nazista. Mas quase todos, de modo geral, apoiavam Hitler. Aqui se confundem vários elementos, cada um importante na formação do fenômeno nazista. Um deles é sentimento de revanche depois da humilhação em Versalhes. Durante décadas, os alemães tentaram negar sua herança dizendo que foram vítimas de Hitler; o que transparece deste livro é outra coisa, é a aclamação de um grande líder, o apoio popular esmagador. Mesmo depois que as Leis de Nuremberg começaram a ser postas em ação, os alemães ainda apoiavam Hitler.

Nesse ponto o livro deixa ainda mais clara uma coisa óbvia, que vários revisionistas tentam ocultar: o anti-semitismo foi o elemento catalizador na imagem dos nazistas. Shirer mostra uma série de bons retratos de “traidores”, gente que aderiu ao nazismo e se mudou para a Alemanha. São pessoas de origens e formações diferentes. Mas todos têm um mesmo elemento em comum: o ódio aos judeus. Isso reforça a tese que Daniel Goldhagen defende em “Os Carrascos Voluntários de Hitler” e que tanta gente, até hoje, tenta desmentir.

Mas eles não eram apenas anti-semitas. De vez em quando tem-se a impressão de que eles eram anti-qualquer coisa que não fosse germânica. É um sintoma do famoso hegemonismo alemão, que ali ganhava as cores feias da eugenia, como no caso da política de Gnadenstoss, golpe de misericórdia, aplicado nos deficientes mentais alemães. Se em algum momento da História mundial um povo esteve pronto para a guerra, esse povo foi o alemão, por menos que a quisesse.

Um diálogo de Shirer com uma camareira ilustra bem esse sentimento alemão:

— Por que motivo os franceses nos guerreiam? — perguntou ela.
— Por que motivo vocês guerreiam os poloneses? — perguntei também.
— Hum — disse ela — mas os franceses são seres humanos.
— E os poloneses talvez sejam também — retruquei.
— Hum — voltou a fazer outro muxoxo.

Mas mesmo anti-semitas, anti-eslavos e anti quase qualquer coisa, mesmo apoiando Hitler, os alemães não queriam a guerra. Shirer compara a ida das tropas alemãs aos fronts da Primeira Guerra — em que os soldados marchavam sob pétalas de flores — com o silêncio e apreensão demonstrada pelos alemães diante dos desfiles de suas tropas em 1939.

O livro termina em dezembro de 1940. Antes do vôo de Hess, da invasão da União Soviética, de Pearl Harbor. Publicado em 1941, e podendo ser considerado parte da pressão doméstica para que os Estados Unidos entrassem na guerra, não se pretende um documento definitivo e não nega o seu caráter profundamente partidário; mas é provavelmente aí que está sua força e o seu interesse. É um grande livro, e vale a pena ser lido.