A Vingança do Bastardo

Uma das coisas que escrevi neste blog e de que mais gosto são as “Notícias do .cu”.

Os posts nasceram como uma sacanagem. O Alex foi para Cuba e deixou seu blog aos encargos de alguns amigos, eu entre eles. Eu sou um péssimo amigo, e decidi publicar uns emails que ele teria me mandado. Eu publicava os posts no Liberal Libertário Libertino e, um dia depois, republicava no meu, porque gostei muito do resultado e não tinha certeza de que o Alex não os apagaria quando os visse — eu, pelo menos, faria isso e ainda contrataria uns três cabras bons de peixeira para irem atrás de mim. Ele não apagou, até hoje não sei como deixou aquilo no ar. Mas fez pior: pouco depois fechou o blog e os textos desapareceram.

Durante um bom tempo considerei transformar aqueles quatro posts em uma novela de suas 100 páginas, que seria lançada em 2009 numa “Edição Comemorativa do Cinquentenário da Revolução Cubana”. Cheguei a escrever o primeiro capítulo (porque seria uma novela com capítulos com títulos como “De como Alex Castro foi parar em Cuba em um avião da Aerolíneas José Martí”) com aeromoças cubanas escondendo muamba embaixo da saia e fazendo safadezas pagas com passageiros nos banheiros do avião, e comecei a escrever um capítulo avulso narrado pelo Oliver, o cachorro do Alex, boiando no Golfo do México e refletindo sobre a existência até se reencontrar com seu dono nas areias de Monterey.

Mas alguns fatores impediram que eu continuasse. O primeiro, claro, foi a preguiça, que eu sou baiano e esse negócio de escrever livro rouba o tempo necessário à rede e à contemplação inútil. Segundo, nunca cheguei a uma conclusão sobre o que fazer com o espanhol e o portunhol utilizados nos diálogos. Terceiro, fazer as piadas que eu queria, pegar ofensas hoje em dia vistas como, ahn, ofensas e transformá-las em algo que não me gerasse processos ou encheção de saco do pessoal que me detestava iria dar trabalho e seria uma capitulação a uma ordem das coisas que acho deletéria. Finalmente, o Alex se recusou a posar para a foto que ilustraria a capa vermelha do livro, igual ao Che Guevara na foto do Alberto Korda; ia avançada a transição do Xandelon para o guru zen que é hoje.

O tempo passou, a mulher do Raul morreu como antecipei nos posts, Fidel morreu e a revolução caminha para um lanche no McDonald’s, se um dia o bloqueio americano for suspenso. As “Notícias do .cu” perderam, se não o sentido, a atualidade. É, provavelmente, a única oportunidade que lamento ter perdido neste blog. E a recusa do Alex me dá a desculpa de que preciso, e vou morrer dizendo que não escrevi o livro porque aquele filho da puta se recusou a posar para a foto.

Havia um detalhe pequeno e curioso em tudo isso, no entanto. Na época, o Alex foi o único a perceber o tanto que aqueles posts deviam a algo que tinha sido publicado uns 20 anos antes.

Ele estava parcialmente certo. Na verdade, as “Notícias do .cu” derivavam diretamente do “Diário do Rio”, por sua vez inspirado no “24 Horas de Le Mãos na Cabeça” do Bia; mas no fundo só existiam porque, mais de 20 anos antes, eu tinha lido “A Vingança do Bastardo”.

Publicado em folhetim, um capítulo por mês, no Planeta Diário, “A Vingança do Bastardo” foi uma das poucas coisas boas que o Rio de Janeiro dos anos 80 legou à humanidade. O Planeta era um jornal fantástico, mui digno sucessor de um Pasquim que depois de triste agonia naquele momento respirava por aparelhos, morte cerebral já decretada. Era também muito superior à sua contemporânea e conterrânea Casseta Popular.

Tenho quase certeza de que foi no final de 1985 que comprei o meu primeiro exemplar. Comecei a ler na casa de minha avó, e em pouco tempo ela veio me perguntar por que eu estava gargalhando histericamente daquele jeito.

Inesquecível, por exemplo, é uma matéria sobre os diversos graus de classificação de mulher feia: mocreia, urutau, flemba, e o mais baixo de todos, IPB — Indivíduo Portador de Boceta, não chega a ser mulher.

Mas nada superava o folhetim que eles publicavam então. Era escrito por uma senhora circunspecta, devassa e peidona chamada Eleonora V. Vorsky; apesar do nome de marafona russa, esse era apenas o nome de guerra de Alexandre Machado, que depois escreveria coisas como “Os Normais” para a TV Globo e, en passant, ganharia um Grand Clio. Em 1987 o folhetim foi publicado em livro, e trazia inteiramente grátis o capítulo final.

“A Vingança do Bastardo” foi o livro mais engraçado, mais alucinado, mais demente que li em toda a minha vida, e olha que eu não li tão pouco assim. Do começo ao fim, é basicamente uma enxurrada de referências da cultura pop carioca e mundial dos anos 60, 70 e 80 emaranhadas numa trama que às vezes parece se perder, mas sempre descobre uma saída inusitada — e sempre a mesma, um deus ex-machina imprevisível que tira nossos anti-heróis de uma frigideira para colocá-los no fogo. E só quem estava vivo nos anos 80 entende, por exemplo, a última coisa escrita no livro: “Favor rebobinar a fita”, uma última piada pythoniana.

Emprestei o livro a uma colega de escola e nunca mais o vi. Durante mais de 20 anos, sonhei com o dia em que colocaria novamente minhas mãos sobre um exemplar, sem nenhum sucesso. Mas aí por 2010 dobrei a Nelson Mandela para pegar o metrô e, numa banca de usados, lá estava ele. Eu reconheceria aquela capa em qualquer lugar do mundo. Custou bem barato; aliás, podia custar cem, mil reais que ainda assim seria barato— porra nenhuma, é mentira, vá roubar a vagabunda da tua mãe. Mas custou barato e quase 20 anos depois eu conseguia reler um dos livros mais fantásticos que já li em toda a minha vida.

Minha opinião não mudou em todas essas décadas. Enquanto relia o livro, o deslumbramento e as gargalhadas voltavam diante da total ausência de senso de ridículo, as referências absurdas ao que circulava no ar na época: Kurt Waldheim, Aids, até o Tutty Vasques.

Tem como esquecer a imagem de um Simon Wiesenthal balofo — demorou anos até eu descobrir que Wiesenthal era magérrimo — correndo atrás de um avião enquanto tenta achar sob a banha o próprio pinto para provar que era judeu? Ou um Khadaffi aos beijos tórridos com o Primo Levi? Ou o Nacional Kid espancado pelos detetives-mirins que comia durante o recreio? Ou a jeba descomunal de Kowalski? Ou a confusão entre Frederic, o escarrador do molho curry, e Frederic, o punheteiro do molho branco? Ou ainda o Thomas Green Morton fazendo os peitões da Prima Roshana murcharem até parecerem um maracujá de gaveta? Ou os três reis magos peladões que trazem ouro, incenso e — como é mesmo o nome daquela porrinha?

Tem não.

Peguei novamente o livro dia desses. Ainda gargalho com ele. Mas ao fim da leitura, e diante da impossibilidade de rebobinar a fita, fica uma sensação meio melancólica.

Porque o livro não seria escrito hoje. Já em seu primeiro parágrafo estaria em dificuldades — porque, como diz o Primo Levi, a cela onde ele estava condenado a passar os próximos 212 anos era de um escuro úmido e umbroso, e o nome do escuro era Waltencir com suas crises de flatulência. E cada piada, cada reviravolta na trama, mesmo a coleção de porcarias do primo Janus, nada ficaria a salvo, porque se não ofende um, ofende outro, até o mau gosto causa desgosto, hoje em dia, e mais de um zelote puritano e imbecil zurraria sua indignação, no que seria acompanhado pelo resto do seu pedaço de rebanho.

A tragédia deste século XXI é que nos tornamos mais intolerantes com símbolos do que com a realidade. Isso diz tão mal de nós, mas a realidade é ainda pior, porque ninguém liga. 36 anos depois que “A Vingança do Bastardo” descobriu a cura da Aids através de um singelo tomar no cu, regredimos. Não apenas ficamos mais chatos, e não é só porque as sensibilidades se tornaram mais puritanas. No século XXI se tornou impossível rir sem culpa, e um mundo que lhe proíbe de perceber o ridículo da vida tem problemas sérios demais, que nem mesmo “A Vingança do Bastardo” poderia resolver.

Duas autobiografias

Ganhei o livro de memórias do Washington Olivetto. E comprei o primeiro volume da autobiografia do Jô Soares quando o preço baixou, antes que ele morresse. Agora espero o preço do segundo baixar para comprar também; é sempre assim com esses livros de tiragem grande, editados em papel grosso e letras grandes que os tornam mais volumosos e atraentes para compradores, porque aos olhos das pessoas — e talvez aos do leitor — fazem uma novelinha de Schnitzler parecer “Guerra e Paz” na estante.

Um tempo atrás fiz um post sobre o livro do Olivetto, que acabou se transformando numa espécie de defesa do sujeito diante de um artigo vitriólico do Mario Sergio Conti. Eu tinha folheado o livro e, embora tivesse me parecido cabotino, além do limite da chatice, não achei que era motivo para tanto ódio.

É nisso que dá escrever sobre as coisas sem ler. Porque se eu tivesse lido “Direto de Washington” inteiro não teria escrito nada, teria dado razão a Conti, ou teria dito que ainda era pouco, teria gritado que era para derrubar no chão e chutar a cara.

Já li alguns livros de publicitários. Todos eles são, claro, em algum nível, o exercício de uma vaidade. Mas para a maioria, era também uma forma de exercer o seu trabalho, de conquistar mais clientes para sua agência, e por isso tinham, sempre, alguma utilidade para os seus leitores além da mera leitura.

É verdade que eles falam de um tempo que passou, e entre o mundo dos Mad Men e este, em que meninos recém-saídos de faculdades escrevem legendas de fotos no Instagram sem sequer saber usar o diacho de uma crase, há uma distância maior do que houve entre a DDB dos anos 60 e uma agenciazinha qualquer em Macapá. Mas em todos eles consegui aprender alguma coisa, porque seus autores conseguiam pensar além de si mesmos, e tinham ideia do que poderia ser o seu lado à posteridade. Do gigantesco Ogilvy on Advertising ao livro do Periscinotto, do “Fazer Acontecer” do Júlio Ribeiro ao excelente “E o Outro Vacilou” do Roger Enrico, todos eles tentavam explicar alguma coisa, ao menos mostrar o que pensavam sobre o seu ofício.

O livro do Olivetto é o único em que não consegui aprender nada. Ou melhor: a única coisa que aprendi, graças a essa vaidade que chega a parecer patológica, é que ele se tornou apenas um velho ultrapassado que abdicou da dignidade que a história reserva àqueles que marcaram seu tempo, ao cometer a desídia de não perceber a hora de se calar.

Parar no tempo não é pecado — é até uma conquista, o direito de pouco se lixar para o mundo em volta porque você não precisa mais dele, a retirada graciosa da corrida de ratos. Pecado é querer ser relevante de qualquer forma, é uma velha bêbada vestida de menina rebolando uma bunda murcha às quatro da manhã. O livro de Olivetto talvez fizesse sentido 40 anos atrás, quando ele precisava vender sua imagem para conquistar clientes. Hoje, é apenas um taramelear meio caduco de alguém que continua repetindo o que dizia há 40 anos, sem perceber que o mundo em volta dele mudou.

É uma sina triste, essa a que Olivetto se condenou. Ninguém questiona o seu papel na história da publicidade brasileira. Mas boa publicidade é quase tão efêmera quanto um bom artigo de jornal; e a chance que ele teria de passar à posteridade foi desperdiçada em um livro que não deixa nada para ela, apenas a repetição ridícula da própria crença em um brilhantismo passado que a repetição constante barateou demais.

* * *

Em compensação, que delícia é “O Livro de Jô”, ou pelo menos o primeiro volume.

Menos que uma autobiografia no sentido clássico, o livro é quase uma coleção de histórias acumuladas por Jô Soares ao longo de 60 anos. Jô Soares tem uma memória impressionante, e fez parte da ribalta durante mais de meio século. Acima de tudo, ele sabe como contar uma história, sabe qual o interesse que cada uma delas pode despertar.

O resultado é um livro agradabilíssimo, informativo, especialmente para quem gosta da história do show business nacional dos últimos 70 anos.

“O Livro do Jô” é quase uma conversa numa sala de estar entre amigos que se conhecem há muito tempo. Assim como foi em seu programa de entrevistas, Jô Soares era um entertainer por vocação e talento. Anedotas, lembranças de um tempo que passou, tudo isso faz do livro leitura agradabilíssima, talvez até necessária.

Mas curiosamente, o livro se revela insuficiente. E o que falta é, de certa forma, o próprio Jô Soares.

Li o livro há algumas semanas sem saber nada sobre ele, e fiquei me perguntando o que o Matinas Suzuki fazia ali, já que um escritor tarimbado e produtivo como Jô Soares não tinha necessidade de um ghost writer. Intuí que o livro tinha sido escrito a partir de conversas entre os dois, organizadas pelo Suzuki e passando pela edição final do Jô. Foi isso que aconteceu, e talvez essa seja a grande fraqueza do livro.

Uma coisa é o que um autor escreve sozinho, diante da tela em branco de um computador e tendo ao lado os seus fantasmas. Ali ele pode investigar sua vida, entender algumas coisas, reavaliar outra. Mas além disso, sozinho, ele pode ser absolutamente sincero, se esse é o seu objetivo. Outra coisa, totalmente diferente, é o resultado de conversas, quando você tem que dizer a verdade a alguém que está olhando em seus olhos. Nessas horas a sinceridade encontra fácil os seus limites. Sozinho, o memorialista se vê tentado a revelar tudo: suas conquistas e seus fracassos, seus medos e fraquezas. Mas numa conversa com outa pessoa é quase inevitável que alguém como Jô Soares se restrinja ao que é mais interessante, mais agradável, dentro da perspectiva do entertainer.

E por isso a sensação, talvez injusta, é a de que falta franqueza a “O Livro do Jô”. É como se fôssemos expostos apenas à face pública de Jô Soares. Por exemplo, sabemos que seu pai mexia com câmbio, mas como quebrou? O que fez depois para ganhar a vida? São informações importantes. Eu gostaria de saber, por exemplo, como era ser um menino gordo rico na Suíça, num tempo em que a obesidade era exceção, e não a regra. Como eram os namoros na escola de muito ricos que frequentou? Ela parece ter sido um paraíso. Nenhuma escola o é. Ele sempre fez questão de dizer que a gordura não o atrapalhou em nada — e isso é mentira. O que se poderia esperar do livro é que nele, finalmente, Jô Soares enfrentasse os seus fantasmas.

Há, aqui e ali, algumas pistas. Ao se apaixonar pela sua primeira esposa e mãe do seu filho, ele se pergunta por que uma mulher como aquela estaria dando corda a um rapaz gordo. Além disso, a única referência a sexo é a lembrança do dia em que foi pego se masturbando. Isso é o menos interessante em um sujeito que viveu cercado de mulheres lindíssimas. Como se fazia sexo naquele meio artístico dos anos 50 e 60? Ele não precisa dar nomes — ele graças a Deus é elegante demais para isso —, mas podia falar, afinal, de quem comeu. Eu, pelo menos, não castiguei tanto Proust assim para me contentar em sentar olimpicamente acima dessas baixarias.

Essa, no entanto, é uma reclamação injusta. Uma das coisas que salta aos olhos é o respeito com que Jô Soares trata das vidas das pessoas que passaram pelo seu tempo. É uma elegância, quase pudor, que é praticamente a marca registrada desse livro e que faz falta hoje em dia, num tempo em que autobiografias cada vez mais se assemelham a relatórios ginecológicos ou conversas de banheiro, e em que pessoas públicas escancaram suas vidas privadas de uma maneira que tem algo de desesperado, de agoniado. Sabemos do Jô Soares aquilo que ele, judiciosamente, quer que os outros saibam, e o seu critério é o do interesse geral. E não se pode querer mais que isso.

O pix do Moisés

Não adianta continuar a piadinha do pix para disfarçar a pancada que você levou, mas se queres um empréstimo, podemos conversar.

Moisés, não era piadinha.

Já que você finalmente concordou em passar o pix que prometeu, pode fazer para a Childhood Brasil, uma ONG com foco na prevenção e enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes.

Tenho certeza de que, como estava disposto a me conceder generosamente um empréstimo, você vai fazer uma doação substancial. É Natal, o décimo-terceiro cai já na conta. Tenho certeza de que até o Michael Jackson vai ficar grato a você.

O CNPJ da Childhood Brasil é 03.653.644/0001-77, e eles aceitam pix. Se quiser se identificar, o link acima leva à página de doação deles.

Se fizer, prometo que leio o seu comentário (muito longo e, a julgar pelos anteriores, muito chato, me perdoe) para saber a pancada que levei. Vai ver você até tem razão.

De volta a Neverland com o Moisés

Para o Moisés, se anda como pato, grasna como pato, nada como pato e se chama Michael Jackson, é um dromedário.

Foi por isso que ele deixou alguns comentários defendendo a honra do finado comunista, revoltado com a “pomposidade” deste velho e cansado blogueiro. Ele foi bem claro em sua revolta: “Se Michael Jackson abusou de crianças ou não, não se sabe, mas você parece saber.”

É, o Moisés ficou realmente chateado com o post.

Confesso que me assustei quando fiquei sabendo que o Moisés fica imaginando “como esse sujeito se julga a luz que guia a humanidade, assistindo a programas policialescos. Eu pago pra ver ele me responder, quero ver até onde ele é capaz de ir com seu mirabolismo alienativo”. Juro que não sabia que o Moisés estava preocupado de maneira tão visceral com os orifícios onde Michael Jackson enfiava o pinto.

Mas ele disse que pagava para ver, e a coisa aqui está difícil, qualquer coisa está valendo para descolar um troco.

Sua indignação o fez jogar até a ONU no meio de argumentos em que diz estar escrevendo não para livrar a cara de Jackson, mas em defesa dos direitos humanos. Cá entre nós, defender os tais “direitos humanos” de um defunto velho de 15 anos, e isso durante uma guerra genocida como a que Israel promove contra a Palestina, parece brincadeira. Mas cada um dá a cada assunto a importância que quer. Não dá para tirar a razão do Moisés.

Na verdade, como ele e a infeliz e frustrada torcida do Flamengo sabemos, eu não sei de nada além do que os jornais e alguns filmes dizem. Ele também não, mas não alega saber. Não precisa. Sua afirmação é retórica e acusatória, e é aqui que o Moisés se revela um grande maroto. É claro que não há provas. Para isso, Jackson gastou 23 milhões de dólares, mas voltaremos a esse assunto mais adiante.

Num tribunal do Estado, essa ausência eliminaria a possibilidade de condenações. E por apostar nisso, o Moisés adota uma postura típica de advogado de defesa, fazendo chicana a partir do argumento da falta de provas. O que ele espera, aqui, não é provar que Jackson fosse inocente: é evitar que as pessoas concluam que ele era culpado.

Mas aqui fora as coisas são diferentes, e acho que ele sabe disso. Isto aqui não é um tribunal do júri. Ninguém tem obrigação de apresentar prova de nada. Trata-se, aqui, de opinião, se possível a partir de fatos e evidências. Como dizia uma vizinha de minha avó, do alto de sua sabedoria de idosa provinciana: “Malfeito é da conta de todos nós”.

Por isso, o que temos são convicções, e é disso que trata o post. A minha, baseada nas evidências disponíveis, é a de que Michael Jackson era um pedófilo e um ser humano bastante perturbado. A do Moisés, contra todas elas e disfarçada sob o manto da dúvida e da presunção de inocência, é a de que não. Ele parece realmente achar que um sujeito de meia idade que constrói Neverland, briga e paga caro para dormir com meninos, destroça o próprio nariz e gasta milhões em brinquedos de uma só vez é absolutamente normal.

Dizem que, de perto, ninguém é. Mas tem uns que, ó, pelo amor de Deus.

De Jackson, ao contrário do que diz o Moisés, tudo o que não se tem é um julgamento precipitado. A novela das denúncias de pedofilia se estende há 30 anos. Se o mundo acha que Jackson gostava de criancinhas, não é por uma denúncia isolada. Foram várias — e a cada novo escândalo, a máquina de relações públicas de seu espólio se esforça em dizer que não há provas, e descredenciar os acusadores. A estratégia é simples: pede-se o ônus de uma prova impossível de ser conseguida e desqualifica-se os envolvidos.

Aparentemente, isso é ainda mais fácil quando se vê os pais de alguns dos meninos de Michael. O problema é que ninguém tem nenhuma dúvida de que os pais de tantos envolvidos eram vigaristas e golpistas: é justamente deles que falo no texto, do tipo de gente com quem Jackson precisava se envolver para satisfazer seus apetites. Quando Moisés fala que o pai de um é isso, a mãe do outro é aquilo, ele apenas chove no molhado, e repete um roteiro previsível.

O que ele precisa se perguntar é: o que, em Jackson, atraía esse pessoal, como mel atrai abelhas? O que fazia de Jackson uma vítima preferencial para esse tipo de gente? Por que ninguém foi acusar Bill Cosby, outro conhecido predador sexual, de pedofilia? O que emprestava credibilidade às denúncias? E no fundo, qualquer pessoa poderia perguntar ao Moisés: cadê as provas de que eles estão mentindo? — lembrando novamente que isto aqui não precisa seguir nenhum rito processual.

É disso que estamos falando.

No caso dos garotos de Leaving Neverland, a questão é que, no que interessa à opinião pública, se ninguém provou a culpa de Jackson, tampouco provou que eles mentiam: os processos foram rejeitados primeiro por decurso de prazo, e depois porque os réus eram as empresas de Jackson, que não eram fiscais de bundinhas de menininhos. Mas isso não quer dizer que sejam mentirosos. Esse, afinal, é um terreno tão pantanoso que o mesmo Corey Feldman que acusa uma porção de gente em Hollywood de pedofilia, também sem provas, é um dos defensores de Jackson.

A batalha inglória a que pessoas como o Moisés se dedicam agora é pelo legado e pela imagem do rapaz do nariz esquisito: e para isso lhes resta a alegação de que “não há provas”. No entanto, para fins extrajudiciais, que falta em provas abunda em evidências. Mais eficaz nessa batalha, por exemplo, é lembrar que a própria irmã de Jackson o denunciou como pedófilo, embora tenha se desdito depois.

A única pergunta errada do Moisés é quando ele pergunta se “há provas de que ele fez acordos para calar várias de suas supostas vítimas?” Na verdade há: 23 milhões de dólares pagos nos anos 90 à família do primeiro garoto para que o processo fosse retirado — um acordo que, se lembro bem, foi acusado de desmoralizar o sistema judiciário americano, porque ficou claro que bastava gastar o bastante para escapar da justiça, mesmo em casos em que a tutela é do Estado, como estupro de vulneráveis.

Jackson fez essa admissão tácita de culpa porque era o que lhe restava. Sua equipe jurídica considerou melhor enfrentar o dano razoavelmente tolerável que o acordo causava à sua imagem do que enfrentar uma condenação que, pelo visto, era certa. 23 milhões de dólares (dos quais cinco foram para os advogados da família do garoto). Qualquer pessoa sensata entende que isso é dinheiro demais para um inocente, e mesmo para um culpado. Mas seus advogados sabiam que sempre poderiam contar com os Moisés da vida: seria esse acordo que permitiriam a eles, arvorados em defensores post-mortem da honra maculada de Michael Jackson, esbravejar: “E as provas? Cadê as provas?”

O fato é que é preciso estar cego pela defesa intransigente dos direitos humanos de pedófilos defuntos para não enxergar o que havia de obviamente doentio no comportamento de Jackson. Era impossível olhar para Jackson no início dos anos 2000, se defendendo contra mais uma rodada de processos de pedofilia e aparecendo de mãos dadas com um garoto, e não perceber que havia algo de muito errado ali. Ou achar normal, ou ao menos aceitável, sua insistência em dormir com crianças, sempre meninos — e dizendo que isso é lindo, como se estivesse em um fórum de internet onde pedófilos tentam justificar a exploração e o estupro de crianças.

(É ainda mais inacreditável porque dormir com crianças é uma das piores experiências a que um ser humano pode ser submetido. Invariavelmente terminam com você se equilibrando perigosamente na beira do colchão enquanto aquela pequena cria do inferno, com um terço ou um quarto do seu tamanho, se esparrama por toda a cama.)

No fim das contas, é até possível compreender a ira indignada do Moisés. Ele não admite que o seu ídolo possa remotamente ter sido a pessoa (sejamos eufemísticos) problemática que era. Por isso a negação das evidências, a aposta na ausência de provas. É um direito dele, cada um tem suas convicções. Quanto a mim, reforço as minhas quando me faço a pergunta que se pode fazer a qualquer pai ou mãe: você deixaria seu filho dormir com Michael Jackson? A resposta, mesmo que não haja provas, como quer o Moisés, é não.

Você disse que pagava para ver se eu respondia, Moisés. Taí sua resposta. Faz o pix?

Ouvindo vozes

Onze anos atrás escrevi este post aqui, ó, defendendo a ideia da dublagem e reclamando de uma gente elitista que, mais que admitir apenas filmes legendados, parecia ter raiva de que outras pessoas assistissem a eles.

O tempo passou e as coisas parecem ter mudado muito. Aversão indefinida e generalizada à ideia de dublagem continua sendo coisa daquele tal pessoal esnobe, mas esses mais de dez anos fizeram muita diferença.

Nesse período o mercado de dublagem se transformou. Antigamente só se dublava para a TV, uns poucos filmes infantis e eventualmente desenhos animados da Disney. Hoje, boa parte dos filmes são lançados no cinema também em versões dubladas. Dependendo do lugar onde estão, alguns complexos de salas exibem apenas filmes dublados. Dubladores alcançaram algum reconhecimento popular, alguns viraram quase estrelas e agora têm canais no YouTube. É cada vez mais difícil encontrar um filme legendado nos cinemas.

Pode parecer que a vida deu a razão a quem reclamava da dublagem e a vitória a quem gosta dela, mas a verdade é que nada disso importa porque no “istrímin” qualquer pessoa pode ver o filme como quer, e reclamar da dublagem é, sinceramente, coisa de quem continua não gostando de pobre.

O engraçado é que isso, para mim, é algo contraditório. E cada vez mais sem sentido, também.

Ainda adoro a dublagem da AIC, velha, datada, com seus rr corretos e vozes empostadas, ou a da Herbert Richers, quase onipresente em minha adolescência. Ainda é delicioso ouvir vozes como a de Borges de Barros e do Carlos Vaccari, ou o Ricardo Mariano me contando quem fez a “versão brasileira: Herbert Richers”, e vou morrer sendo fã do Márcio Seixas narrando a Disneylândia para mim. Quando decidi assistir a “Jornada nas Estrelas”, fiz questão de ver as duas primeiras temporadas com a dublagem dos nos 80, o mesmo Márcio Seixas fazendo o Spock.

Ainda assim, tenho calafrios quando assisto a um trecho de filme novo dublado. Normalmente detesto cada detalhe, as vozes, as expressões, os palavrões que agora são autorizados a traduzir.

Durante muito tempo tive a impressão de que isso acontecia porque, por um lado, me vi mais e mais exposto ao som original de filmes, seriados e desenhos; não vejo TV aberta já há algumas décadas, com exceção do Jornal Hoje para alegrar o meu almoço com tragédias inomináveis, das quais a menor não é o César Tralli e suas platitudes falsamente compungidas.

Por outro, eu tinha a sensação de que algo se perdeu quando dubladores passaram a trabalhar sozinhos no estúdio. Nos tempos do eu pequeno a tecnologia parca exigia que uma cena fosse gravada com todos os atores com falas nela. Computadores permitiram que as gravações sejam feitas em tempos e lugares diferentes, dando mais eficiência ao processo; mas parecia faltar agora aquele quê indefinível que só a interação humana pode dar, as frações de tempo certas entre uma fala e outra, a entonação mais natural ao que se acabou de ouvir.

Acreditei nisso por muito tempo. Acho que ainda acredito.

Acontece que alguns anos atrás alguém estava vendo um filme da Sessão da Tarde muito alto e eu estava na rua. Parei alguns instantes para ouvir a dublagem. E fiquei impressionado ao perceber como ela era boa. Sem a imagem, o que eu ouvia eram boas vozes e boa entonação, atuais, corretas, verdadeiras.

De lá para cá passei a acreditar que a ruindade da dublagem atual está na minha cabeça, sempre esteve, e lá apenas. E mesmo assim continuo sem gostar dela. Continuo detestando. Mas agora sei que detesto porque sou chato, talvez a mesma chatice e cabeça tonta que me fazem escrever este post.

(Disso, pelo menos, eu sei a razão. Escrevo porque quero deixar um registro para mim mesmo. Porque daqui a pouco, nada disso vai importar.)

Há alguns anos, conversando com amigos — antes da IA virar assunto comum —, eu dizia que não devia demorar tempo demais até que computadores fizessem a dublagem de um filme com a própria voz do ator original. Ninguém discordava de mim, é verdade. Mas há algumas semanas atrás mesmo a minha previsão mais otimista se mostrava defasada e, principalmente, equivocada. Um vídeo de uma atriz americana falando em português com sua própria voz e expressões faciais modificadas pelo computador viralizou mundo afora. Eu não esperava por isso.

O vídeo é um aviso do apocalipse que está por vir. Dublagem é profissão inexoravelmente condenada. Dubladores podem ainda tentar se iludir, mais ou menos como fabricantes de carruagens diziam em 1910 que sempre haveria espaço para o requinte de um landau, incomparável diante daqueles automóveis barulhentos, pouco confiáveis, vulgares. Talvez seja melhor assim, talvez doa menos ver que algo que você ama e que marcou a vida de tanta gente, como a minha, está inexoravelmente condenada a desaparecer.

***

Mas o mundo da dublagem é muito mais complexo do que tudo isso.

Dia desses assisti a um episódio dublado de “A Gata e o Rato”. Era um dos melhores de todo o seriado, que foi, por sua vez, talvez o melhor dos anos 80. Nele, David e Maddie discutiam sobre um crime acontecido décadas antes, e cada um tinha uma perspectiva diferente sobre a autoria, baseados no que hoje chamariam de perspectiva de gênero. Originalmente o episódio se chamou The Dream Sequence Always Rings Twice, mas foi apresentado aqui como “Romance do Passado”, título típico da Globo naquela década.

E então David fala para Maddie: “Você está sendo uma sexóloga.”

Epa. Não fazia sentido. A palavra sexóloga estava tão à vontade nesse contexto como eu em missa de ação de graças. Fui procurar o original em inglês, e era isso mesmo que eu imaginava: o personagem de Bruce Willis dizia a Maddie Hayes que ela estava sendo sexista.

Também não era difícil imaginar a razão pela qual a tradução tascou um “sexóloga” nesse diálogo.

Na primeira metade dos anos 80 parecia que as mulheres estavam descobrindo o sexo. O “Relatório Hite” tinha feito um sucesso estrondoso alguns anos antes, e colocado a questão do prazer feminino na pauta do dia. Por coincidência, eu tinha lido e relido o livro no verão anterior, como um general escrutina o mapa do terreno que pretende invadir — e devo confessar que este foi um dos mais úteis em minha então curta vida, o que reconheci anos atrás quando o Hermenauta me passou um tal meme dos cinco livros. Além disso, desde o início da década Marta Suplicy tinha colocado no vocabulário dos brasileira a palavra sexologia, a partir do seu quadro em um programa revolucionário chamado TV Mulher.

Os brasileiros, então, conheciam a palavra sexologia. Mas “sexista” não existia em português, não ainda. Era um conceito estranho em um mundo que ainda normalizava o machismo. E por isso a tradução, possibilitada pela dublagem, pegou o conceito mais próximo do original e o utilizou. Deve ter dado certo na época, porque não lembro de estranhar a palavra ou o contexto então.

É esse tipo de coisa que a dublagem fazia e que agora, com a IA, deverá fazer parte do passado. Essas soluções criativas, essa atenção a um mundo que existe fora dos filmes, tudo isso vai desaparecer. E é por isso que escrevo isto, como homenagem e registro de um tempo em que atores brasileiros faziam trabalhos muitas vezes melhores que os originais

Michael Jackson

Quase 15 anos após sua morte Michael Jackson ainda me faz pensar, ainda que involuntariamente.

Quando assisti a Leaving Neverland, o documentário em que dois sujeitos, que dormiram com Jackson quando eram crianças e que décadas atrás serviram como suas testemunhas de defesa, voltam atrás e contam como foram abusados pelo “rei do pop”, incluindo os detalhes sórdidos de suas relações, não vi nada de realmente novo. Um deles, Wade Robson, já tinha sido dedurado por uma das testemunhas de acusação em um dos tantos processos a que Jackson respondeu em vida.

Mas dia desses finalmente li uma série de reportagens de Maureen Orth para a Vanity Fair (que, ela lembra, jamais foram questionadas por Michael Jackson ou por seu espólio), em que a jornalista traça um perfil deprimente de um homem psicologicamente doente, forçado a conviver com a escória da raça humana para satisfazer seus apetites de maneira infantil — afinal Michael Jackson podia ter o que quisesse, desde que estivesse disposto a pagar os preços pedidos.

Era tudo tão obvio, foi tudo tão óbvio desde o começo. Aquelas mães venderam seus filhos. Alguém disse que esses garotos deviam processar suas mães em vez de Jackson, por terem permitido tudo aquilo, e tem razão. Em Leaving Neverland pode-se ter uma visão clara de como elas fecham os olhos para o que pode estar acontecendo, justificando-se para si mesmas por eventuais possibilidades de estarem abrindo oportunidades para seus filhos.

O que me assusta é ver gente defendendo Michael Jackson tentando transformar a defesa de Jackson em uma defesa do movimento negro.

O próprio Jackson já tinha recorrido a isso — em 2002, saiu literalmente às ruas chamando a Sony de racista pouco depois dela cobrar o ressarcimento dos gastos com Invincible. Dizem que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Agora a alegação de racismo também é.

Por alguma razão que só pode ser creditada à crescente estupidez e infantilidade dos movimentos identitários, certos segmentos do movimento negro parecem acreditar nisso também.

Um tal de TI tenta pegar uma carona e garantir seu espaço no noticiário, dizendo que tudo isso é parte de um momento para destruir a cultura negra:

Destroy another strong black historical LEGEND?!?! It’s several examples of pedophilia in American History… if y’all pulling up all our old shit… we gotta examine ELVIS PRESLEY, HUGH HEPHNER,and a whole slew of others guilty of the same if not more!!! BUT WHY US all the time?

Elvis talvez possa ser chamado pedófilo, embora de um tipo socialmente aceito em seu tempo e lugar — Jerry Lee Lewis se casou com a prima de 13 anos; Loretta Lynn casou aos 15. No Brasil colonial, quando a menina menstruasse já podia casar. É algo aceito culturalmente, diferente, por exemplo, das ações de Adam Ant ou Michael Jackson — que ainda têm o agravante da torpeza. Mas ninguém questiona isso, na verdade, e o grito de TI é inócuo, bobo.

Aterrorizante é ver os comentários. As pessoas concordam com o tal TI. Elas se tornam desonestas aos se recusar a admitir que Michael Jackson era um sujeito doente, profundamente perturbado, cujas idiossincrasias faziam com que fosse rodeado por um tipo de gente abjeta que pessoas comuns têm dificuldade em acreditar que possam existir. Em vez disso, é melhor acreditar que ele era a vítima de um racismo inexplicável — talvez o mesmo racismo que fez dele o maior ídolo pop dos anos 80.

A questão é: defender um pedófilo só porque ele é negro? Não se trata sequer de um caso como o de Bill Cosby, que nos últimos anos teve sua imagem destruída por uma série de revelações de abusos sexuais. Ninguém pensou em creditar a denúncia dos crimes de Cosby a uma agenda racista — provavelmente porque a contribuição de Cosby para a afirmação da cultura negra já foi superada há algum tempo pelos atuais movimentos identitários. Assim, as pessoas puderam ver Cosby como ele é realmente: um criminoso, um estuprador. No caso de Jackson, ele ainda é um ídolo para muita gente; e num movimento que se baseia em simbolismos e “ressignificações” como o identitário, atacar sua reputação é o mesmo que enfiar uma faca em seu peito.

Ainda mais curioso é que, apesar da boa vontade dos que parecem tentar transformar Jackson em uma espécie de neo-Malcolm X post-mortem, a verdade sobre ele é mais complexa. O fato de ter vitiligo pode explicar o embranquecimento de sua pele, mas não explica o cabelo cada vez mais parecido com o de Elizabeth Taylor ou o nariz que, em sua última encarnação, prenunciava o da “Noiva Cadáver” de Tim Burton. O discurso de Jackson, em nenhum momento, foi o desses movimentos identitários; em vez disso, em canções como Black and White, nos seus filhos brancos e esposas mais brancas ainda, e nas suas vítimas brancas ou pelo menos latinas, Michael Jackson parecia dar a entender que preferia um mundo onde etnias simplesmente não fossem mais importantes. Se estivesse vivo hoje e mantendo as mesmas posições,  em algum momento certamente seria vítima preferencial desses “social justice warriors” lacradores que pululam nas redes sociais.

(As gerações atuais, mais burras, menos sutis, enfatizam Black or White como hino antirracista. Mas a ponte que Jackson criou se estabelecia em um nível mais alto, menos óbvio, mais artístico: quando Jackson misturava a música negra e a guitarra de Eddie van Halen em Beat It, por exemplo, invertendo o fluxo da música pop. Mas esse tipo de coisa parece sofisticada demais para as novas gerações.)

Imagine-se Michael dentro da cultura de vitimização que se tem criado ultimamente. Coitado, dormia com crianças porque não teve infância e foi abusado física, emocional e talvez sexualmente pelo próprio pai (que numa visita recente ao Brasil teve um piripaque por abuso de Viagra. Pelo visto, ele não gosta de meninos; gosta é de puta, mesmo, como qualquer pessoa decente). Um dos garotos de Suzano perpetrou o massacre na escola Raul Brasil porque tinha pais viciados em crack e gostava de jogos violentos. Tudo é desculpa, tudo é explicação para o que não carece de justificativa nem admite escusa. Num mundo onde todos são vítimas, não existem culpados.

A vida e o ambiente de Jackson eram um circo dos horrores, um pesadelo infantil. Branco ou preto, Michael Jackson era no mínimo estranho, um homem doente mas rico, vivendo num mundo cão. O número de pessoas que vivem vicariamente de seu nome e de seu espólio é impressionante até para os padrões de famílias pobres de superstars. São eles que estão assustados com a perspectiva de perda da galinha dos ovos de ouro. Em seus últimos anos Michael Jackson dava prejuízo. A decadência criativa, o estilo de vida insano, o vício em drogas e provavelmente os meninos não custavam barato — só o Jordie Chandler, que descreveu acuradamente a genitália de Jackson, lhe custou 25 milhões de dólares em um acordo que mostra que o dinheiro, para a justiça dos EUA, está acima do bem-estar das crianças. Morto, em menos de dez anos Jackson se tornou uma marca lucrativa novamente — e essas acusações ameaçam acabar com a renda de muita gente.

A morte da II Guerra Mundial

Há algum tempo conversei com um senhor que, quando criança, tinha que correr dos bombardeios aliados para se abrigar no subsolo de um castelo próximo de sua aldeia. Para ele esse tempo ainda existe, ainda é hoje, ele lembrava daqueles dias talvez melhor do que lembrava do que fez um mês atrás.

A cada dia tenho a sensação de que pareço mais e mais com ele.

Para mim, e certamente para toda a minha geração, a II Guerra era um tema atual. Nos anos 70 grande parte dos veteranos estava na casa dos 40 ou 50 anos — gente relativamente jovem, com histórias para contar ou para tentar esquecer. Pelo seu impacto na história do mundo, aquela guerra ainda fazia parte do imaginário cotidiano. E tinha uma presença cinematográfica que nenhuma outra teve antes ou teria depois.

Já não havia tantos filmes sobre o tema no cinema — era o início da era dos blockbusters , e por alguns anos os EUA tentaram ganhar nas telas a guerra que perderam no Vietnã —, mas na TV ainda assistíamos aos seriados dos anos 60, uma espécie de segunda onda cultural: “Guerra, Sombra e Água Fresca”, “Combate”, “Ratos do Deserto”. E mesmo seriados contemporâneos de vez em quando traziam referências a ela: em Shangri-la Lil, episódio de um seriado hoje esquecido chamado “Operação Resgate”, mas que animou por algum tempo minhas tardes de domingo, os heróis se batem em 1979 com um soldado japonês que pensa que a guerra ainda não acabou, obviamente inspirado no caso de Hiru Onoda, moço meio tantã que acabou vindo morar no Brasil.

Mas agora tudo isso faz parte de um passado cada vez mais remoto. Em menos de 20 anos se comemorará o centenário da invasão da Polônia pelos alemães. Daqui a pouco morre o último veterano, se é que o coitado já não bateu as botas enquanto escrevo estas maltraçadas. Para as gentes mais novas que eu, a II Guerra jamais vai ter o apelo e a importância que tem para mim e para os outros velhinhos que arrastam com cada vez mais dificuldade suas carcaças. É só mais uma guerra. E não é.

A II Guerra foi a última guerra santa, talvez a única; não porque se combatia o nazismo e o fascismo, mas porque ao seu final se soube do Holocausto. Não havia mais zonas cinzentas, como houve na I Guerra e mesmo em uma invasão como a da Ucrânia pela Rússia: foi uma guerra do bem contra o mal, porque não há questionamento possível diante dos campos de morte na Polônia. Claro, nessa equação a gente finge que não viu os bombardeios de Dresden e Berlim pelos Aliados, nem dá notícia de Nagazaki; só os nazistas e os japoneses, afinal, cometeram crimes de guerra.

De lá para cá veio a guerra do Vietnã, a primeira a mostrar em tempo quase real a desumanidade de um conflito; mais tarde, a primeira Guerra do Golfo promoveu uma certa desumanização da guerra, tornou o que é apenas insensatez, dor e morte em algo cada vez mais asséptico e parecido com um videogame.

As coisas parecem estar mudando, no entanto. A estupidificação mundial alcançou seu ápice com a atual guerra de Israel contra o povo palestino, enquanto a mídia internacional tenta demonstrar por A mais B que vidas de israelenses valem mais que vidas de palestinos. Em outros tempos proavelmente conseguiriam. Mas as redes sociais devolveram a dor, o drama humano, o sangue à ideia de guerra. Guerra está perdendo a graça e parece estar voltando a ser apenas o que sempre foi: destruição, estupidez e morte.

Pensando bem, que bom que a II Guerra Mundial está morrendo.

Kissinger, Kissinger, bye, bye

Calado em relação à morte de Kissinger, porque minha abençoada mãezinha me ensinou que é feio comemorar a morte dos outros.

Mickey

Percebi dia desses que, ao contrário do que acontece com gente mais perspicaz que eu, para mim os personagens Disney clássicos — Mickey Donald, Tio Patinhas, os habitantes de Patópolis — pertencem ao mundo das revistas em quadrinhos, e não ao cinema.

Comprei ano passado e vim ler agora Mickey Mouse – The Ultimate History. É um desses livrinhos curiosos da Taschen, que estava em promoção; e eu nunca resisti a promoções de livros.

Ali está claro o que para mim nunca foi óbvio: para o mundo, o Mickey que conta é aquele do cinema, que inaugurou o desenho animado moderno em Steamboat Willie ao coordenar de maneira inovadora som e imagem e que seguiu estrelando curtas e médias metragens ao longo das décadas seguintes. O livro fala brevemente de sua existência nos quadrinhos, mencionando inclusive a produção brasileira, que foi uma das mais importantes do mundo entre os anos 70 e 80.

Por um desses acasos da vida, o primeiro filme a que assisti no cinema foi justamente um daqueles desenhos: “Mickey e a Foca”, numa matinê no Cine Guarani, no comecinho mesmo dos anos 70. Tenho uma vaguíssima lembrança disso. Eram os últimos suspiros de um tempo em que cinemas tinham várias sessões diárias e buscavam atingir públicos diversos no mesmo dia. Mais tarde, ainda era possível assistir eventualmente a um longa animado em alguma reprise nos cinemas, como “Cinderela” ou “A Bela Adormecida”.

Mas era muito mais fácil achar uma revista em quadrinhos da Disney do que um desenho em cartaz. Aqui, as revistinhas Disney foram publicadas ininterruptamente pela editora Abril por 68 anos. Em qualquer momento que se fosse a uma banca de revistas, podia-se achar uma revista nova da Disney.

E daí que, pensando nisso porque obviamente não tenho mais em que pensar, percebo como o Mickey dos quadrinhos era tão mais rico que o dos desenhos animados. O Mickey dos desenhos não tem uma história real. Não tem vida além daquilo que vemos naquele desenho, daquela situação específica. Pode ser um operário de estaleiro, um sujeito em férias, um sujeito às voltas com uma foca em seu banheiro. Enquanto isso, o Mickey dos quadrinhos era detetive, cuidava dos sobrinhos, flutuava espaço afora em companhia de Esquálidus na Patrulha Estelar, era o escada perfeito para o Pateta. Nos quadrinhos, o Mickey alcançava voos muito mais altos. E não falava fino daquele jeito.

Isso vale para todos os outros personagens. Não custa lembrar que o Tio Patinhas é um personagem dos quadrinhos, não dos desenhos animados. As histórias desenhadas por Carl Barks, que deu a milhões de crianças uma noção mais ampla do mundo, existiam nas revistinhas, não nas telas de cinema. E o Zé Carioca, além de umas duas ou três aparições nas telas para adular o Brasil a ficar do lado dos EUA na II Guerra Mundial, só existe mesmo nas folhas de papel.

Pensar nisso me faz lembrar que sempre fiz distinção entre dois mundos Disney bem diferentes. Um era o dos quadrinhos, aquele que me era mais próximo, o do cotidiano. O outro era o do cinema — “Branca de Neve”, “Os 101 Dálmatas”, “Cinderela”, até mesmo “Bernardo e Bianca”. Podiam até se encontrar nas páginas das revistas, mas eles nunca me enganaram: eu sabia de onde vinham. Faziam parte de uma classe mais alta, mais abastada, mais chique. Eu não ligava de verdade para eles.

Acho que os editores da Disney no Brasil não pensavam assim. Imagino que, para eles, tudo era um produto só, que misturava indistintamente cinema e quadrinhos.

Paulo Maffia, editor da Disney no Brasil, disse há algum tempo que a era das revistas em quadrinhos baratas vendidas em bancas está acabando. Na verdade, as próprias bancas são hoje equipamentos públicos em extinção acelerada. Ele deve ter razão, mas o mundo se torna mais pobre com isso.

Ao sol que arde em Itapuã

Entre 79 e 80 as pessoas ainda veraneavam em Itapuã; como na minha casa as coisas eram diferentes, fui morar ali, em frente ao Hotel Quatro Rodas, então em construção, numa rua perpendicular à que hoje se chama Passárgada. Diante da casa havia um grande areal que se estendia até o Abaeté; e para chegar à praia passávamos pela casa de Vinícius de Moraes, que acabou dando nome à rua que a separa do mar, rua da Curva do Vinícius.

A casa pertencia a um sueco, se não me engano cônsul honorário. Tinha nome como um estate inglês, Vila Niva, com placa no portão a lhe dignificar. Corria uma lenda de que ele morara ali com uma sueca em um andar e uma brasileira no outro. Devia ser só isso, mesmo, só uma lenda, mas gosto de achar que é verdadeira porque ela reafirma minha fé na humanidade.

Os fundos da casa davam para o terreno imenso onde ficava o bar de Juvená. Era o bar onde eu comia ostras, uma ou duas dúzias de uma vez só, e onde Fia Luna tocava seu atabaque nos fins de semana. Lembro de brincar algumas vezes com o filho de Juvená — Ricardo ou Rodrigo, um nome assim; mas geralmente eu brincava sozinho, porque aquele mundo de areia era grande o bastante para dar espaço à minha imaginação.

Havia um restaurante de caça no centro de Itapuã. Nunca comi lá, nem sei se existe ainda; mas se eu já tivesse comido cotia naqueles dias tenho certeza de que seria cliente fidelíssimo. Havia também uns botecos onde jukeboxes tocavam Odair José, Carlos Alexandre, Amado Batista, Altemar Dutra — aquela boa música brega dos anos 70, quando os artistas populares ainda tentavam fazer com honestidade e verdade o melhor que podiam, ainda que o resultado fosse um pastiche de jovem guarda e música romântica de seu tempo.

Havia também uma loja de caça e pesca. Foi lá que comprei uma vara de pescar — de bambu ainda, não era dessas modernas — e uma faca de caça, com cabo imitando marfim, que me fazia sentir o próprio Tarzan. Comprei também uma bússola, objeto mais inútil que comprei na vida, porque o que importava eu sabia: a direção do mar.

Tudo o que eu conseguiria pegar com aquela vara, e mesmo assim um ano depois, de volta à Barra — lugar que sempre me tratou com o carinho e o amor maternal que eu merecia —, seria um baiacu pequenininho. Baiacu é rima, não é peixe.

A praia era delimitada pelo farol de Itapuã ao sul e por umas pedras ao norte. Era perigosa, violenta, e eu não costumava entrar nela. Mas entre as pedras a maré baixa formava uma pequena piscina natural, e era lá que eu passava dias quase inteiros, entre uma maré alta e outra. Um bocado de peixes nadava por ali, e havia um coral rosa numa de suas reentrâncias, na minha imaginação grande como as cavernas submarinas onde o Almirante Nelson e o Capitão Crane enfiavam o Seaview — ou ao menos o Sub-Voador.

Nunca consegui apanhar um daqueles peixes, mas uma vez arranjei um martelo e um formão e arranquei um pedaço daquele coral tão bonito; eu não sabia que era um ser vivo, e ninguém pode imaginar a minha tristeza quando vi aquele rosa quase imediatamente dar lugar ao que parecia apenas um pedaço de areia dura — nem o meu arrependimento por ter destruído aquilo.

Mas do que mais lembro, mesmo, é do cheiro. O cheiro do mar e da vegetação de restinga, o cheiro da areia branca.

Havia lagartixas e calangos e tijubinas, os mais bonitos. Bonitos, mas muito difíceis de apanhar. Era mais fácil pegar as lagartixas comuns, mais lentas, e delas havia a literalmente dar com o pau. Me tornei um exímio caçador de lagartixas, já que não podia caçar as raposas que diziam haver por lá e pendurar suas peles na parede, como eu via penduradas em “Daniel Boone”.

Tudo isso pertence a um tempo que já passou há muito. O único problema é que o passado nunca morre de verdade, vence a todos, inclusive o futuro que invariavelmente se transforma nele.

Há alguns anos achei na internet uma faca bem parecida com a que tive, e comprei: hoje ela é pequena para minha mão. E agora, em vez da bainha de couro, vem numa bainha chocha de poliéster.

Itapuã é contramão para mim, lugar para passar quando chego e quando saio de Salvador — e a minha cidade não é essa em que os baianos hoje vivem e da qual reclamam diuturnamente, ela existe em outro tempo. Faz muitos anos que não ando a pé por Itapuã; mas passando de carro dá para perceber que embora alguns marcos ainda estejam lá, como a quase centenária padaria Portugal, o bairro está cada vez mais caótico, e não devia ser à toa que Caymmi foi morar em Rio das Ostras, bem longe da praia que não abriga mais jangadeiros como Chico, Ferreira e Bento, e onde Rosinha de Chico não vigia mais as ondas, dizendo “Morreu… Morreu…”

Mas uns anos atrás, depois de uma dessas campanhas em que a gente se ausenta do mundo esperando que ao final ele melhore, resolvi passar uns dias ali. Me hospedei no Quatro Rodas, que agora se chama DeVille.

O cheiro ainda está lá, em algumas partes a areia branca ainda está lá, mas tem cada vez menos areia e cada vez mais casas, e o cheiro parece meio diluído em meio aos tantos não-cheiros da civilização que finalmente alcançou Itapuã. Fia Luna não toca mais, agora é nome de rua em Stella Maris. A casa em que morei foi demolida para dar lugar a um desses villages de casas quase geminadas que estão na moda. Onde havia uma casa grande e uma casa de empregados e muita areia e um bocado de árvores agora há oito casas, se contei direito; e o areal em frente há muito deu lugar a muros feios e casas feias, típicas daquela maldição que flagela os baianos e os condena a enfeiar a cidade o quanto podem, até deixá-la irreconhecível em sua fealdade. Da casa sobrou apenas um pedaço do muro de pedra e alguns coqueiros, agora enormes. Mais nada. Quem morou ali um dia escolheu o lugar para se perder do mundo na imensidão dos areais de Itapuã, mas o progresso chegou e trouxe o aperto da cidade para mais longe.

Mas é como eu disse, o passado nunca é totalmente passado, e passei umas duas horas na piscininha como se ainda tivesse oito anos, porque ela continua igual ao que era há tanto tempo. Os peixes continuam nadando ali, tranquilos porque sabem que ninguém vai conseguir pegá-los com as mãos.

Eu só não sabia que já não era o caiçara que fui um dia, e a pele não aguentava mais, e saí de lá com ela vermelha, queimando, e queimaria por mais alguns dias. Mas não estava triste. Porque no lugar de onde eu tinha tirado o coral quatro décadas antes a vida tinha voltado, e ele estava lá, rosa, como se nunca tivesse passado pelas mãos de um menino que ainda não sabia nada da vida.