IA

Primeiro testo o ChatGPT e me assusto, porque peço um roteiro de comercial passando um briefing mínimo e o que recebo é melhor que muita coisa que já recebi de agências, com briefings bem melhores.

Diabo, é melhor até que muita coisa que eu já fiz.

Agora Júnior me manda um vídeo do Gen-2, que cria e edita vídeos a partir de textos.

Eu mando para Peneluc, e aviso:

“Vamos nos acostumar a tomar no cu, porque é isso que vai sobrar pra gente.”

Peneluc, tão mais cético que eu, responde:

“E você acha que não vai ter uma porrada de robozinho tomando no cu no lugar da gente?”

Oscars 2023

Avatar não prestava em 2009, presta ainda menos em 2023.

Top Gun: Maverick nesta lista é quase uma ofensa. Não por ser um mau filme, que isso ele não é. Mas tampouco vai além do artesanato tecnológico e excelência estética em cenas de ação que ostenta como grande trunfo. É uma vergonha que a sequência de um filme que há menos de 40 anos era apenas divertimento escapista para adolescentes hoje concorra ao Oscar. Um filme menor, sob todos os aspectos. Não vale o que Tom Cruise gasta em cirurgias plásticas.

Elvis é um Baz Luhrman repetitivo e esgotado, que junta duas tradições narrativas diferentes para um resultado pífio, sem a euforia e a surpresa visuais que caracterizam filmes realmente bons como Moulin Rouge. Não o ajudam as inverdades históricas, as mentiras para forjar, nos bom e mau sentidos, um Elvis recauchutado para o mundo que ajudou a criar mas não soube acompanhar: aqui tentam transformá-lo no que nunca foi nem quis ser, roqueiro na alma, irmão do gueto, um cabra “woke” de verdade. No fim das contas, o filme não compreende nem respeita o velho ídolo que morreu cagando, embora trate melhor o seu protagonista e narrador, o coronel Tom Parker. E o ator que interpreta Elvis, Austin Butler, parece mais com Jim Morrison do que com The Pelvis.

É espantoso que Triângulo da Tristeza tenha ganhado a Palma de Ouro em Cannes; aparentemente, hoje Cannes está mais próxima do Piscinão de Ramos do que da Mônaco onde Grace Kelly seduzia Cary Grant com suas joias. Deve ter sido porque pobres gostamos de ver os ricos sendo ridicularizados, ou o hype do mundo sendo mostrado como o esforço cínico de marketing que é. A primeira parte, na verdade, é muito boa, com bons insights e flechadas certeiras. Mas então vira uma bobajada demagógica num roteiro cheio de furos e implausibilidades. “O Mordomo e a Dama”, filme que costumava ser exibido na Sessão da Tarde nos anos 80, é melhor.

Os Fabelmans é um bom Spielberg, uma ode ao cinema como forma de recriação da vida e diálogo entre as pessoas. Tem alguns excelentes momentos e impressiona ao mostrar os pais do diretor como pessoas falhas como qualquer um. Mas coitado do velho Steve: há algo de tão acadêmico, de tão morno em seus filmes, de tão velho. É a sua honestidade que mais seduz neste filme, a chance de conhecer um pouco mais da vida do sujeito; porque fora isso, não há muito mais. Spielberg já fez filmes melhores, o cinema já recebeu homenagens melhores.

Nada de Novo no Front é um belo filme, forte, capaz de mostrar o horror e a falta de sentido da guerra com capacidade. A direção é firme, correta, a fotografia é excelente, as atuações são adequadas. Mas além de ser uma refilmagem — que deveria ser falta eliminatória em uma premiação —, não tem realmente nada de novo, e os mais de 90 anos de miséria e horror humanos e a infinidade de guerras que separam as duas versões retiram muito da sua importância real.

Entre Mulheres é um filme curioso e instigante, que em uns poucos momentos chega a lembrar vagamente aqueles filmes godardianos em que se fala, fala, fala. Estabelece um debate sobre a condição feminina que escapa da demagogia, e só isso já motivo de celebração. Seria ainda melhor se fosse tratado como uma parábola dessa discussão, atemporal e num lugar imaginário, em vez de inspirado num caso real acontecido na Bolívia. De qualquer forma, é um grande resumo da discussão feminista americana atual, apesar de acabar refletindo a origem puritana religiosa de parte dessa discussão.

Tár é um filme admiravelmente bem construído, excelente em sua ambiguidade e na destreza com que narra a trajetória à la Nightmare Alley de Lydia Tár. Mas acima de tudo, é uma atuação estelar de Cate Blanchett. Eu não queria que escolher entre dar o Oscar a ela ou a Michelle Yeoh: duas atuações tão diferentes, e tão brilhantes. Uma, a de uma grande estrela que dá uma dimensão maior que a vida à sua personagem; na outra, a compreensão das minúcias e sutilezas de seus personagens.

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo poderia ter impresso “Vencedor do Oscar 2023 de Melhor Filme” em seu cartaz de lançamento, para economizar tempo. O filme traz uma mistura inteligente e surpreendente de atualidade — absorve como poucos esses vinte e poucos anos de universo de super-heróis e lhe dá uma perspectiva diferente —, inventividade formal, roteiro que em alguns momentos lembra os de Charlie Kaufman, referências diversas ao cinema, e tudo isso sobre uma base sólida e eficiente, que é a boa e velha busca pela felicidade familiar. É a receita perfeita para o prêmio, e uma provável vitória será mais que merecida.

Mas o melhor filme entre os concorrentes deste ano é Os Banshees de Inisherin — junto com o formidável EO, que concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro —, um filme sensível e surpreendente, admiravelmente bem executado, com grandes diálogos, interpretações brilhantes — especialmente a de Colin Farrell — e uma visão inquietante e complexa das relações humanas. “Banshees” não dá respostas, e nos lembra que cinema, antes de mais nada, continua sendo contar bem e de um jeito novo e singular uma boa história. Fazer isso com tamanha maestria, num ano excepcional em que a maioria dos concorrentes ao Oscar é muito boa — algo cada dia mais raro, como mostram os últimos anos — é um feito e tanto.

O último baile de Carnaval

Foi há seis anos. Domingo ou segunda ou terça de Carnaval, e pela minha janela entrava o som de uma banda de baile tocando no Cotinguiba Esporte Clube.

O Cotinguiba foi clube chique, umas três vidas atrás. À beira do rio Sergipe, tinha uma grande equipe de remo, do qual meu avô, vagabundo emérito, fez parte. Era onde a elite da cidade se reunia — elite feia, provinciana, malvestida, cujo consolo e orgulho era saber que tinha gente pior por aí, nas casinhas geminadas do Bairro Industrial ou nas choupanas de palha dos pescadores da praia Formosa, logo adiante.

Mas nos anos 50 construíram o Iate Clube, e o Cotinguiba iniciou a sua decadência. De clube da elite sergipana passou a ser o segundo; verdade, aguentou mais tempo que os outros — primeiro fechou o Vasco Esporte Clube, o clube da periferia; depois foi a vez da Associação Atlética, o clube da juventude e de bailes, matinês e vesperais que também se foram aos poucos, como as folhinhas de um calendário do Sagrado Coração. Mas não podia vencer totalmente o tempo, e se ainda existe é porque oferece uma piscina e uma quadra esportiva a gente menos esnobe, e aluga seus salões para eventos e convenções de políticos.

O remo, que ainda tentou um ressurgimento nos anos 80, desapareceu para sempre, levado pelo esgoto que agora polui o rio Sergipe. O futebol, depois de uma agonia lenta e humilhante, sumiu por aí sem que ninguém perguntasse por onde andava.

O Cotinguiba é já há muito tempo o clube da periferia, mesmo localizado no primeiro bairro da zona sul.

Exatamente 30 anos antes eu tinha passado um Carnaval ali. É algo que até a mim surpreende, porque sempre achei que Carnaval é um negócio tão ruim que as pessoas têm que encher a cara para suportar — ainda mais Carnavais como o de Aracaju, que acontecia nos clubes: os mais pobres no Vasco, os mais ricos no Iate. Mas adolescentes andam em bando e existem para aplacar uma fome inextinguível, e rezava a lenda que no Carnaval as moças lhe tratavam melhor, e o Cotinguiba tinha muitas moças, muitas moças.

O Cotinguiba estava lotado, absolutamente lotado. Estava assim também porque era melhor que o Carnaval do Iate Clube. Era animado, desbragado, as moças eram mais dadas e alegres e suadas e dançavam com os braços levantados salão afora, e confete e serpentina e cerveja jogada para cima, e não existe razão para sofrer um carnaval que não seja essa, única e exclusiva.

Entrei com a carteirinha de alguém. E basicamente, o que lembro é que terminei aquela noite pendurado no capô traseiro de um Maverick a uns 100 por hora.

É outra coisa que o tempo deixou para trás. Até os anos 80, o carnaval de Aracaju era marcado por uns poucos eventos: o Baile dos Artistas, em que os homens machos do sexo masculino podiam soltar a franga trancada no armário a sete chaves durante o resto do ano, ao lado das bichas e viados e travestis; o desfile das escolas de samba na Av. Barão de Maruim, arremedo miserável de corsos mais dignos em outras paragens; e o desfile dos calhambeques logo em seguida: as pessoas compravam carros velhos, como Galaxies e Dodge Darts (imagino que antes as pessoas usassem Dauphines, Vemaguettes, Gordinis e Aero Wyllis, mas nos anos 80 eles já quase não existiam mais), pintavam e modificavam os carros e desfilavam logo após as escolas de samba. Depois, boa parte ia para a praia dar cavalos de pau. Era carnaval de rico, claro, mas também de agregados que acham bonito idiotas destruindo automóveis; como dizia o velho Valois Galvão, tem gente para tudo no mundo e ainda sobra um para comer merda. Naquele ano fui um deles.

Ia quase amanhecendo quando o pessoal que estava comigo decidiu acompanhar um amigo deles que tinha um desses calhambeques, um Maverick pintado de preto com desenhos de chamas em suas laterais. Não lembro se tinha todos os vidros, mas com certeza não tinha o para-brisa traseiro. Eles entraram no carro. Eu não ia — achava aquilo uma estupidez e para mim a noite já tinha acabado; mas decidi no último instante ir também. O carro já estava saindo quando me joguei em cima dele.

O Maverick a 100 por hora em plena Av. Beira Mar e eu ali pendurado, pensando que se eu me soltasse ia morrer e aí ia para casa chorando. Eu não tinha muita alternativa. Foram alguns momentos de pânico, mas alguém deve ter me ajudado a subir, acho. Aparentemente, eu não morri naquele dia — e se fosse para morrer num Carnaval, que fosse como Vadinho, no meio da folia, e não uma morte indigna como essa.

Decidi que aquele era o primeiro e último carnaval que eu passava no Cotinguiba, mesmo que ele tivesse tantas moças dadas e alegres, e certamente a última vez que eu chegaria perto de um desses calhambeques, que sempre achei idiotas. Cumpri o que prometi a mim mesmo.

Mas o tempo passa, as lembranças adquirem novas cores. Os bailes dos clubes foram morrendo mais rápido que um frevo de Dodô e Osmar, começando pelos mais chiques, como o do Iate. Nos anos seguintes o carnaval de Aracaju se dividiria em dois. O dos ricos aconteceria em Salvador, enquanto o Clube do Povo atraía aqueles sem algibeiras nem sorte para a praça Fausto Cardoso, no centro, para levar porrada.

Em 2017, no entanto, nada disso existia mais. Resistia, no entanto, o baile do Cotinguiba.

Devia ser umas duas da manhã quando a banda finalmente parou de tocar. Por uma curiosidade mórbida, fui até a varanda ver as pessoas saindo. E então este bloco de pedra que chamam de meu coração ficou um pouquinho apertado.

Da quadra do Cotinguiba saíam menos que quinze pessoas, provavelmente uma família só, no máximo duas. Se despediam alegres, tinham se divertido — mas eram menos de quinze almas, homens, mulheres, crianças. O Cotinguiba Esporte Clube, outrora chamado de o “tubarão da praia”, o lugar onde gente metida a besta ia se pavonear diante de gente metida a besta, comemorava seus 110 anos com uma banda tocando com galhardia para uma ou duas famílias que não tinham nada melhor para fazer na folia de Momo, sem que um Martin Scorsese registrasse isso em um filme que poderia se chamar The Last Ball.

Da tolerância

Queria saber quem foi o desgraçado que apareceu com essa ideia cretina de que temos que respeitar a crença dos outros.

Porque eu não tenho que respeitar a crença de ninguém. Tenho que respeitar o crente — ou nem isso, tenho que respeitar incondicionalmente o seu direito de acreditar no que quiser. E nada mais.

Você quer acreditar que é essa mixaria aí porque quando nasceu Júpiter estava em conjunção com Vênus, acredite. Júpiter era mesmo batuta e entrava em conjunção com Io, com Alcmena, com Ganimedes, com Antíope, com a mulher do padeiro e com uma cabrita do Quirinal desde o tempo em que ainda se raptava sabinas.

Quer acreditar em um Deus que é um e é três enquanto o padre passa o rodo nos coroinhas e mostra com quantos paus se faz uma hóstia, acredite.

Quer acreditar que o Deus que você inventou para criar um universo incompreensível em sua infinitude fica com raivinha de você se você não o adorar acima de todas as coisas, acredite.

Quer acreditar que, se você der o dízimo para o pastor, Jeová Deus vai lhe dar um Voyage 2018 e deixar as 60 prestações para você pagar, acredite

Quer acreditar que setenta virgens estarão lhe esperando depois que você se explodir num ônibus escolar, acredite.

Quer acreditar que Deus vai lhe jogar no pior círculo do inferno se você comer carne de porco, acredite.

Quer acreditar que Exu vai lhe ajudar a trazer a pessoa amada em sete dias se deixar um ebó na porta daquela vagabunda que o roubou de você, acredite.

Quer acreditar que a terra é plana — ou ainda melhor, oca com um sol interior no meio — acredite.

Quer acreditar que Jesus morreu na cruz por você, acredite.

Quer acreditar que ETs visitam este malfadado planeta para abduzir justamente os espécimes mais estúpidos ou picaretas da humanidade, acredite

Quer acreditar que oxiúros são os novos deuses, acredite, até porque ao menos oxiúros existem de verdade.

Acredite, e regale-se em sua crença. Junte-se aos seus pares e acreditem juntos. Porque você pode, e acredita no que quiser, é direito seu com ampla jurisprudência por aí, e essa é a grande maravilha do mundo, e ninguém pode tirar isso de você. Acredite. Essa é a nossa grande conquista como sociedade: acreditar na bobagem em que se quer.

Porque enquanto isso eu continuo acreditando que, se você acredita nessas coisas, você é um estúpido, meu filho.

Mais um original de Dylan e McCartney

Eu tenho um sonho.

Perguntaram a Paul McCartney quem era o único artista que o faria ficar inseguro, gaguejante, num encontro. A resposta foi simples.

“Dylan”.

Bob Dylan foi mais prolixo:

Eu sou deslumbrado por McCartney. Acho que ele é o único que me deixa pasmo. Ele é completo. E nunca deixa a bola cair. Ele tem o dom da melodia, tem o dom do ritmo, ele pode tocar qualquer instrumento. Ele pode gritar e berrar tão bem quanto qualquer um, e canta uma balada tão bem quanto qualquer outro. E suas melodias são tão naturais, é isso que impressiona… Ele é tão natural. Eu queria que ele parasse. Tudo o que sai de sua boca parece envolto em melodia.

Os dois maiores artistas da música pop ainda vivos são apenas elogios um para o outro — mais que isso, reconhecem nele alguém maior que eles mesmos. É isso. O meu sonho de consumo é um disco de Bob Dylan e Paul McCartney.

Ora, direis, grandes merdas. Todo mundo gostaria de um disco com as músicas de McCartney e as letras de Dylan.

Mas não, não. Não é isso. Bob Dylan e Paul McCartney têm mais em comum além do fato de terem perdido a voz anos atrás. No meu sonho, não é o Dylan letrista e o McCartney compositor que eu queria juntos. É o contrário.

As pessoas têm dificuldade em reconhecer em McCartney um grande letrista. Não no sentido mais óbvio, do sujeito que passa uma mensagem importante e significativa e quem sabe revolucionária em suas músicas, como Lennon sempre tentou e Dylan fez tanto e tanto. Mas uma canção não é um poema. A letra de uma canção precisa soar bem, precisa combinar e acompanhar a música, engrandecer a harmonia, e McCartney sempre teve uma capacidade sobrenatural de encaixar a letra na melodia, de dar uma musicalidade rara às palavras. Infelizmente, ele condescende excessivamente em fazer isso em detrimento do conteúdo, o que é uma pena. Mas se a música de McCartney sempre teve uma qualidade superior, quase sobrenatural em sua naturalidade que Dylan tanto admira, é também porque os sons vocais estão no lugar certo.

Depois de um período tenebroso nos anos 70 e 80 — o mundo deveria ter sido poupado de barbaridades como Saved, Shot of Love e Knocked Out Loaded, e mesmo Blood on the Tracks, me perdoem, não é tudo isso que dizem dele — Bob Dylan conseguiu se reequilibrar nos anos 90, para então se acomodar contente em álbuns musicalmente corretos mas nada ambiciosos. Ele não quer fazer um Sgt. Pepper’s, ou um OK Computer. Aparentemente, quer fazer a música de que gosta, sem grandes arroubos de invenção, e com uma elegância madura que não havia nos seus primeiros discos. Dylan se permitiu envelhecer sem traumas, fazendo o que gosta. Seus últimos álbuns têm sempre uma característica simples: a classe conservadora de quem sabe que é impossível errar com os blues ou standards que o fizeram querer sem músico em vez de um novo Holden Caulfield.

Por sua vez, depois de passar pelo mesmo período tenebroso que Dylan — devia ser algo na água dos anos 80 — McCartney continua até hoje buscando relevância e atualidade no mundo; o que mais faria alguém gravar um tecno-sei-lá-o-quê como Back in Brazil no Egypt Station de 2018? Neste momento, ele está escrevendo um musical, e sabe-se lá quando ou se lançará um novo álbum pop. Essa angústia criativa é admirável, mas muitas vezes o coloca em becos sem saída, e o que deveria soar moderno soa modernoso — vide o New, de 2013 —, exagerado, excessivo

É a combinação disso, a busca por relevância e invenção, mas também um senso de raiz, que seria possível em um encontro entre os dois. É perfeitamente possível imaginar McCartney e Dylan combinando duas personalidades musicais tão diferentes: o conservadorismo musical de Dylan e a eterna busca pela contemporaneidade de McCartney, um aparando os excessos do outro, enriquecendo o que o outro oferece: a tradição musical sólida que Dylan tanto valoriza equilibrando a necessidade do novo que McCartney busca, e vice-versa. Assim como seria fantástico ver letras que combinassem a musicalidade de McCartney e a profundidade lírica de que Dylan é capaz.

O rock — aquela música que meninos educados brancos tomaram dos negros e fizeram sua, e que ajudou a definir os caminhos do mundo por uns trinta anos, ou pouco mais — morreu há um bom tempo. É uma linguagem esgotada, e o seu sucessor mais próximo é o que hoje chamam calhordamente de R&B, música feita por computadores numa eterna e cada vez mais esmaecida reciclagem do que já foi feito mil vezes antes

Mas antes de falecer numa prateleira de saldos de CDs ele mudou o mundo como nenhuma música antes dele, e merecia um epitáfio à altura, e ninguém melhor para escrevê-lo dos que seus dois principais artífices, seus últimos gênios vivos.

Infelizmente, este é um sonho que nunca será realizado — esse e o de passar a Ava Gardner nos peitos. Porque são dois egos gigantescos, dois artistas perfeitamente cônscios de seu papel na história e, principalmente, do legado monumental que deixaram na cultura popular. Tenho a impressão de que ambos têm medo um do outro, por reconhecerem nele um artista superior, e têm a consciência do quão difícil seria o processo criativo entre eles. Do seu ponto de vista, provavelmente têm mais a perder do que ganhar com isso.

Mas não custa sonhar. Porque, sem sonhos, como envelhecer como Dylan e McCartney?

O ano em que morreu todo mundo

Todo mundo parece estar com a impressão de que 2022 foi um ano esquisito, em que morreu mais gente do que o costumeiro, descontando-se o ano da desgraça de 2020, aquele a que conseguimos sobreviver a penas duríssimas.

Pois eu tenho uma boa e uma má notícia.

A boa é que não é impressão, não, você não está deprimido, mais mórbido, mais pessimista depois de passar por quatro anos de Bolsonaro com uma pandemia aterrorizante e interminável no meio: morreu mesmo mais gente em 2022.

Deixa eu explicar. Em 1987, li um artigo interessante no Meio & Mensagem — assinado pelo Walter Longo, acho. Era o tempo em que traduzir o que a mídia gringa escrevia era missão chique, porque não havia internet, nada dessas coisas, a informação demorava mais circular.

O artigo era sobre os baby boomers. Eles estavam chegando ao poder: chegavam aos 40, ocupavam posições de decisão nas empresas. Nos anos 60 eles tinham sido os protagonistas de um novo tempo, com protagonismo da juventude e uma mudança profunda nos costumes. Não lembro bem do artigo, mas não é insensato imaginar que se indagasse sobre as mudanças que essa geração iria trazer para o mundo dos negócios.

(Não trouxe nenhuma, claro. O capitalismo continuou avançando, os pobres continuaram pobres e os ricos continuaram enchendo o rabo de dinheiro.)

Não esqueço desse artigo porque eu sequer sabia o que eram baby boomers até aquele momento. Isso foi antes dessa fixação em definir gerações de consumo, X, Y, Z, Flicts: os baby boomers eram um fenômeno de base real, a explosão de nascimentos com que a natureza costuma repor os cadáveres acumulados durante as guerras e um momento singular na história humana.

Mas esse pessoal mandou em um mundo bem diferente daquele que o precedeu. As telecomunicações, e principalmente a internet, aproximaram as pessoas e fizeram com que mais gente se tornasse conhecido de todos, ao menos durante aqueles quinze minutos warholianos. A informação nunca tinha fluído de maneira tão intensa, e fomos mais próximos, de certa forma, de todas essas pessoas. Vivemos a maior parte de nossas vidas sabendo que elas existiam.

Por isso, quando uma Gal Costa morre, morre alguém que fez parte de nossas vidas durante tempo demais, mais tempo do que você tem pela frente. Eu não lembro de um mundo em que Jô Soares, rainha Elizabeth, Pelé, Erasmo Carlos, Godard, não existiam; era gente que já estava no horizonte antes mesmo de eu ser um brilho no olhar de alguém. Outros, como Gorbachev, exerceram um impacto no mundo grande demais para passar em branco.

São eles que estão morrendo agora, e é por isso que você notou. É a troca de guarda do mundo. É uma geração inteira chegando aos 80 anos, idade mais que justa para se bater as botas.

Essa é a boa notícia. Agora a má: é disso para pior.

A partir de agora, toda semana vai ser um tal de gente conhecida morrer. É ordem natural das coisas, simples assim. Os dias que acumulamos, ano após ano, vão cobrar sua conta. Além disso, há a dose normal de extemporâneos: aqueles que morrem cedo demais, como Michael Jackson, ou que extrapolam seu prazo de validade, como Olivia de Havilland.

Envelhecer é, também, ver a morte dos outros. Mas olhe o lado bom: houve um tempo em que você achou que o ano 2000 era algo muito distante e que estaríamos vestindo roupas prateadas e veraneando em Marte. E já passamos por um quinto dele.

Somtrês

O site Audiorama tem uma seção com quase todas as capas da revista Somtrês.

Gente com menos de 40 anos talvez nem saiba que revista foi essa, que circulou entre 1979 e 1989 — tanto tempo atrás, tão distante quanto os primórdios do século passado. Mas no começo dos anos 80 a informação era escassa, a diversidade de equipamentos era tão menor mas mais significativa do que hoje e formatos e mídias estavam em franca evolução, depois de alguns anos de estabilidade. Era nesse contexto que a Somtrês oferecia uma janela para um mundo diferente.

Passear pelas capas traz à memória um tempo em que as pessoas se preocupavam com equipamentos de som como hoje se preocupam com vinis empoeirados — embora com mais pertinência e utilidade real. Marcas como Cygnus, ou equipamentos como o Esotech, da Gradiente, aparentemente o mais perfeito à disposição do mercado brasileiro naqueles dias, são daquelas coisas que a memória enterrou, mas que se erguem do túmulo  à primeira menção. É o que basta para colocar essa coleção de capas em boa posição no campo gigantesco das curiosidades nostálgicas, mas ela é mais que isso.

Em 87 a Somtrês previa o “som futuro”, num momento em que o CD (que ela já anunciava em 1979) começava a se popularizar no Brasil: morte do LP, queda dos preços, fim do contrabando, AM estéreo, VHS x 8mm; agora que o futuro se tornou passado, tudo parece tão distante, tão fora deste mundo. Tanta coisa não se concretizou, tanta coisa já é passado, tanta coisa não parece mais fazer sentido.

Também fica claro que a bobagem sempre grassou impune entre o pessoal que gostava de música. Lembro de ler nela que os LPs brasileiros tinham péssima prensagem, que bons mesmos eram os japoneses e, acho, os americanos ou ingleses. Podia ser. Mas lembro também de ler, sei não onde, e dito por gente que se apresentava como séria, que os CDs brasileiros eram piores que os japoneses — absurdo anti-binário que precedeu em alguns anos o terraplanismo que hoje achata o nível geral da inteligência da humanidade. Mas no fundo talvez nada tenha mudado. Talvez esse seja o mesmo pessoal que hoje deifica discos de vinil, inventando desculpas para o seu elitismo, já que ter discos importados em tempos de globalização e MP3 e Spotify ou tape decks de rolo quando o som é digital não importa mais.

O que se revelou mais permanente na Somtrês, ao contrário do que seus editores originalmente pareciam acreditar, foi a música. O Jornal do Disco era, de longe, a sua melhor seção, e com o tempo assuntos musicais se tornaram o verdadeiro cerne da revista, já que gente que simplesmente gosta de ouvir música está por aí em maior número que audiófilos, vendedores e técnicos em eletrônica. Rapidamente, uma série de produtos derivou da revista, sendo ainda melhores: a Enciclopédia do Rock, revistas sobre Elvis, Beatles, Stones, posters para cada gosto — ainda tenho uma coleção de posters dos Beatles com resenhas sobre cada faixa de cada disco escritas pela Maria Emília Kubrusly, no verso. Logo no começo, havia até uma página dedicada aos Beatles, escrita pelo Marco Antônio Mallagoli.

Lembro de praticamente todas as capas entre 1984 e 1986. Mais que isso, lembro também de algumas de seus primeiros anos, porque a Editora Três costumava reembalar seu encalhe e o colocar novamente à venda periodicamente, e eu comprei várias delas. Olhando para elas agora, me chama a atenção a mistura de serviço e música que ela tentava oferecer, e fico com a impressão de que ela era talvez meio confusa, tentando atingir públicos muito diferentes entre si.

A Somtrês foi morta pelo futuro que anunciava. Não conseguiu embarcar na onda que o Rock in Rio deflagrou no país, popularizando o rock além do eixo Rio-São Paulo. Contou também com um auxílio da Bizz, revista da editora Abril mais adequada ao público jovem — mais moderna, menos honesta, mais provinciana em seu pretenso internacionalismo, em uma editora maior — que arrebanhou boa parte da sua equipe. Seu surgimento em julho de 1985 significou a sentença de morte da revista da Editora Três, que se tornou automaticamente velha. A Bizz, em sua grandeza e canalhice, merece um post só para ela. Mas olhando agora as capas da Somtrês, congeladas em tinta e papel, tudo nela recendendo a um passado cada vez mais distante, inclusive o que para ela ainda era futuro, é impossível deixar de lembrar a sua importância.

O próximo presidente não pode ser do PT

Quatro anos de escuridão, de um mal-estar sem precedentes na história política brasileira; um presidente que envergonhou o país como nenhum antes dele, seguido por hordas de bandidos e de imbecilizados agressivos e cheios de ódio: dia 30 de outubro o Brasil pulou uma fogueira.

A eleição de Lula devolveu ao país a perspectiva de normalidade e de sensatez. Lula se prepara para realizar um governo de transição e reconstrução, e seus movimentos até agora têm sido, de modo geral, de acerto. Longe das frentes de quartéis, onde pequenos grupos de zumbis apatetados repetem há semanas a liturgia de uma seita dedicada ao Grande Pneu Patriota do Caminhão Sagrado e esperam o arrebatamento pelo Imbroxável da Facada Mágica, o país respira aliviado.

Mas o resultado das eleições é menos róseo do que parece.

Cientistas políticos em pânico fizeram uma avaliação estranha e apocalíptica do cenário, logo que saiu o resultado do primeiro turno. Denunciaram o fascismo como se fosse novidade, como se o autoritarismo não tivesse sido sempre uma franja às vezes mais, às vezes menos visível da sociedade brasileira, como se não tivéssemos passado pelo integralismo, pela TFP, por uma sequência de golpes de estado bem ou malsucedidos. Diante do aumento da bancada do PL no Congresso, falaram em crescimento do bolsonarismo e do fascismo. Bobagem até compreensível em quem passou quatro anos alternando-se entre a estupefação e o pânico. O que se viu não foi um crescimento ideológico: foi simplesmente a ação do dinheiro. O PL cresceu no parlamento não porque a sociedade brasileira se identificou ainda mais com um autoritarismo amalucado de verniz evangélico, mas porque comprou mais votos.

O bolsonarismo vai desaparecer tão rápido quanto surgiu, e isso podia ser dito antes mesmo das eleições. As últimas semanas apenas comprovam o que já se sabia: Bolsonaro não tem capacidade intelectual ou política para liderar os símios que marcham-soldado na frente de quartéis e pedem socorro a ETs. Seu lugar vai ser ocupado por gente mais pragmática, como o Tarcísio de Freitas ou o Romeu Zema, dentro da normalidade democrática e sujeita às circunstâncias do jogo político.

O que não vai desaparecer é a extrema-direita que vem se consolidando a partir da reação aos governos do PT, um nível variável de polarização nacional e, principalmente, aquilo que levou a esse crescimento do centrão: a total degradação do sistema eleitoral brasileiro.

Esse é o verdadeiro problema que emerge destas eleições. O nosso é um sistema completamente falido, e não vai melhorar. O debate político brasileiro se restringe cada vez mais a umas poucas camadas da população e se dá quase exclusivamente nas redes sociais, mas principalmente sobre os cargos majoritários. Eleições proporcionais estão sempre em segundo plano. Pergunte às pessoas em quem votaram para vereador ou deputados em eleições passadas e a maior parte não se lembrará. E não é só o comum das gentes, os mais despolitizados: a maior parte votou em um amigo, no candidato de um amigo, em um número entregue na boca de urna. É um fenômeno que se espalha em todas as classes e em todos os espectros políticos.

Enquanto isso, os movimentos sociais perdem força, e a descrença na possibilidade de transformação da sociedade pela política se espalha como metástase. O resultado é a ascensão do que antigamente chamavam baixo clero e que, como uma gosma alienígena de filme B dos anos 50, engole a política brasileira, reforçando o conservadorismo popular e surfando na onda evangélica — evangélicos que a tolerância, o respeito à diversidade, o medo e a pura e simples conveniência não deixam denunciar como o que são: a maior ameaça ao progresso do país.

Lula vai aprender a negociar com essa escumalha em termos, se não mais éticos, ao menos mais legais do que fez com o Mensalão, para evitar os erros dos governos anteriores. Mas a própria história do PT ajuda a levantar hipóteses sobre o que vai acontecer nos próximos anos.

Quando surgiu, em 1980, o PT representou um passo à frente na luta popular. Num cenário que tinha sido dominado nos 60 anos anteriores pelos partidos comunistas, ele colocava na mesa um projeto mais pragmático, menos radical, mais plural. Sua bandeira ainda era vermelha, mas em vez da foice e do martelo, trazia uma estrela. Não era comunista, não queria ver a jurupoca piar: era dos trabalhadores — e todo mundo é trabalhador, independente do sistema econômico. Para alguns ainda podia parecer radical, mas era um partido mais palatável do que os velhos dinossauros comunistas, porque nunca colocou em questão a troca do sistema político: era um partido reformista, no máximo, em que pesassem as correntes trotskistas que também se abrigaram sob o guarda-chuva estrelado.

Nos dez anos seguintes ele estabeleceu uma estratégia radical de crescimento, se recusando a fazer as alianças que os partidos marxistas-leninistas faziam a torto e a direito, construindo uma base ampla nos movimentos populares, como a CUT e mais tarde o MST. Construía sua identidade a cada greve, a cada eleição. Não demorou muito para conseguir eleger seus primeiros prefeitos — algumas terríveis, como Luiza Fontenele em Fortaleza, e outras muito boas, como Luiza Erundina em São Paulo.

Em novembro de 1989 Lula destronou Leonel Brizola como principal liderança nacional de esquerda, mas perdeu a eleição para Collor e o Muro de Berlim caiu, levando em efeito dominó as repúblicas populares do Leste Europeu e finalmente a própria União Soviética.

Diante de um quadro totalmente novo — no qual um aspecto, maior e mais abrangente, era o fim da perspectiva do socialismo como sistema viável e desejável; o outro, a clara opção do eleitor brasileiro por uma proposta menos radical (e mais bonita e mais chique, também) — o PT fez o necessário para chegar à presidência. Expurgou seus trotskistas, abriu mão de grande parte do radicalismo em seu discurso, votou contra o parlamentarismo no referendo de 1993. Só não esperava a avalanche do Plano Real e teve que esperar até 2002.

Durante todo esse tempo, apostou no “nós contra eles”, na radicalização do embate e na delimitação de campos bem definidos.

Mas esse discurso de radicalização só é real, ou só faz sentido, quando há uma radicalização ideológica, o que nunca foi o caso do PT. E aí está um dos elementos mais importantes para que se entenda o país de hoje. O “nós contra eles” nunca foi estrutural, socialistas versus capitalistas: em vez disso, o PT sequestrou essa polarização para o campo moral. Ao longo de sua história, o PT se apresentou como o guardião ético de uma ideia de capitalismo um pouco mais humano, levando inclusive à progressiva udenização de seus rivais, como o PSDB.

Essa imagem cobrou sua conta a partir do Mensalão, quando boa parte da classe média decretou independência do voto no PT, decepcionada ao ver que, naquilo em que o próprio partido tinha apregoado sua superioridade durante anos, ele parecia ser igual aos outros. O PT foi forçado a jogar no campo que escolheu e levou uma goleada injusta. Mais tarde, a aberração jurídica e política chamada de Lava Jato capitaneou uma das piores perseguições a um partido já vistas na história do país, mas encontrou nas práticas do PT terreno fértil e devidamente amplificado.

O resultado de tudo isso foi Bolsonaro. Que caia o pano da decência sobre esses últimos quatro anos sofridos pelo país. Chega. Já passou.

O que interessa é que o PT é hoje um partido de centro-esquerda, que perdeu ao menos parte do diferencial ético no qual apostou por décadas, com dificuldade para afirmar pautas reformistas e tendo que enfrentar a fragmentação de uma esquerda que não tem mais o referencial claro que o socialismo oferecia, e se dissolve cada vez mais em discussões identitárias, como baratas voando numa sala pequena demais. Há tempos, por diversas razões (como a evolução do capitalismo globalizado e a cooptação dos movimentos sociais, natural quando um partido de esquerda chega ao poder), vem perdendo a ligação orgânica com os movimentos sociais que tinha 30 anos atrás — há quanto tempo ninguém ouve falar na CUT, por exemplo? Onde anda o Sindipetro?—, e corre o risco de perder todo o capital de organização popular que acumulou em seus primeiros 20 anos. Sua militância ascendeu econômica e socialmente, a partir da ocupação necessária e legítima de espaços no Estado. Por mais que petistas ainda se vejam como superiores, o PT hoje é um partido como qualquer outro.

Com a colaboração inquestionável dos anos de obscurantismo e destruição do Leprechaun do Cercadinho, Lula foi eleito em 2022 sem um projeto de país, sem um plano de governo, sem ideias além da repetição daquilo que deu certo duas décadas atrás e a reconstrução de um país dividido e destroçado pela incompetência de Jair Bolsonaro. Nesse contexto, suas contradições passaram batido, ou quase, e o PT se elegeu sem apresentar propostas concretas. Mas não dá para disfarçar o fato de que, hoje, ele não oferece nada realmente novo — necessário, sim, mas nada que represente um passo à frente. Lula, um gênio político e um dos maiores presidentes que este país já teve, pouco abaixo de Vargas e Juscelino, não precisou apresentar ideias: bastou prometer consertos.

Vai ser muito difícil para o PT governar nos próximos quatro anos. Não pelos terroristas que ateiam fogo a carros em Brasília. Mas pelas imposições do próprio sistema político brasileiro corrompido e degenerado de maneira inédita, e pela necessidade imperativa de fazer um governo de transição, de reacomodação e recuperação do que o país perdeu nos últimos anos.

Por um lado, é uma tarefa relativamente fácil, porque uma árvore plantada em terra arrasada é um aumento de 100%; por outro, na prática pode impedir um avanço real em relação ao país que Lula deixou em 2010.

Problema maior, no entanto, é o Brasil que vai chegar a 2026.

Se tiver um pingo de responsabilidade, Lula não se candidatará à reeleição. E aí a cobra vai precisar fumar. O PT, sendo PT, provavelmente vai tentar arranjar em suas hostes o novo candidato. Porque não interessa o Mensalão, não interessa a Lava Jato, não interessam os governos de centro-esquerda que fizeram: petistas continuam se achando os únicos depositários da verdade de esquerda. Essa postura hegemônica vem isolando progressivamente o PT ao longo dos anos, com defecções como as de Eduardo Campos e o próprio Ciro Gomes. Até agora, a liderança absoluta de Lula conseguiu minimizar isso; não deve ser o caso em 2026.

Mas há algo ainda mais grave. É a ideia do PT em si, o partido comunista bolivariano que vai enfiar uma mamadeira de piroca satânica e abortista goela abaixo dos filhos dos evangélicos deste país, que ajuda a unificar e engajar a multidão de imbecis do WhatsApp, a galvanizar uma oposição que pode não saber a que está se opondo, mas se opõe. A paranoia se espoja na ignorância: esse pessoal não consegue raciocinar, mas assim como acreditam no Deus que paga juros a quem dá o dízimo, têm a convicção de que o PT vai fazer o que nunca fez.

Em 2026, o PT precisará ter a grandeza histórica de entender exatamente onde está e dar o passo necessário para a consolidação da democracia brasileira. Se ao longo dos próximos quatro anos não conseguir criar uma liderança nacional realmente forte e absolutamente inquestionável, precisa deixar de ser a pedra de toque dos alucinados de extrema-direita, precisa entender que a democracia precisa de mais lideranças. E isso significa abrir espaço para outras forças. Em poucas palavras, ser democrático de verdade.

Como diziam os colunistas sociais nos tempos em que colunas sociais faziam sentido, a conferir.

Jô Soares

A reação nacional à morte de Jô Soares não podia ser diferente. Capa dos maiores jornais, elogios fartos à sua genialidade e à sua erudição. É assim mesmo, e é justo que seja; eu, que provavelmente serei lembrado com um suspiro de alívio, gostaria muito de ser lembrado assim.

Sempre tive dificuldade para julgar Jô Soares como humorista, porque ele foi contemporâneo de Chico Anysio, um gênio absoluto não apenas do humor, mas da própria televisão. É verdade que seus personagens e tipos eram extremamente populares, em muitos aspectos até mais que os de Chico Anysio. Captavam e traduziam bem o humor e o preconceito brasileiros, o gosto popular, e alguns de seus tipos, como o Capitão Gay, Rochinha, Padilha, o Exilado, o Reizinho, Bô Francineide e o “Muy Amigo”, são antológicos. Seus bordões ganhavam as ruas com facilidade invejável.

Mas em comparação, seu tipo de humor sempre me pareceu mais rasteiro, mais óbvio, mais pobre, mais efêmero. E o que talvez seja o problema mais grave, a persona de Jô Soares, quase sempre, se sobrepunha às de seus personagens, ao contrário dos de Chico Anysio, que desaparecia debaixo dos seus.

Jô Soares também teve a sensibilidade de ver o esgotamento daquele formato de humor oriundo do rádio e do teatro de revista, antes que qualquer outro — e por isso foi para o SBT, porque sabia que um tipo diferente era possível e valia a pena tentar. Novamente é tentadora a comparação com Chico Anysio, que continuou fazendo, com cada vez menos brilhantismo, o que sabia fazer como ninguém e terminou sua carreira fazendo ponta em um programa ruim como o Zorra Total.

Ao estrear, o programa de entrevistas do Jô Soares podia ser descrito como revolucionário para os padrões brasileiros, que não conhecia o Johnny Carson. No final dos anos 80, o Jô Soares Onze e Meia (ao menos em algum lugar do mundo, porque nunca era exibido no horário) foi uma febre e um sopro de inteligênciana TV brasileira. Seria imitado ad nauseam depois, mas ainda hoje é imbatível.

Não é à toa que um homem de tantos talentos — dramaturgo, escritor, compositor, diretor, roteirista, ator, sei lá mais o quê — parece ser lembrado principalmente por esse programa.

Jô Soares nunca foi “o melhor entrevistador brasileiro”, como andam dizendo porque na morte todos crescem uns dez centímetros. Longe disso. Muitas vezes falava tanto ou mais quanto seus convidados, e seu narcisismo e vaidade às vezes atrapalhavam. Alguns entrevistados eram chamados para serem humilhados, pelo pitoresco ou alguma excentricidade; outros, dependendo do seu grau de intimidade ou poder, eram injustamente louvados. Imagino que fosse essa a proposta do show: entreter, menos que informar. Antes de tudo, ele era um showman, e esse era o verdadeiro espírito do seu programa.

Mas mesmo antes de completar dez anos o Jô Soares Onze e Meia já estava se esgotando. Os melhores entrevistados já tinham passado por ali. O impacto que as suas entrevistas tinham na sociedade diminuiu. A coisa degringolou de vez, mesmo, quando Jô se transferiu para a Globo. Esgotado, em um horário ingrato, o programa praticamente se reduziu a um portfólio de releases dos artistas da Globo, entrevistados repetidas vezes mesmo quando não tinham nada a dizer. Nos seus últimos 15 anos, o Programa do Jô parecia um posfácio redundante a uma obra que, em seu contexto, tinha sido brilhante.

E com tudo isso, eu fiquei triste com a sua morte. Passei horas assistindo ao seu programa e dei gargalhadas sinceras, às vezes incontroláveis, até aprendi algumas coisas. Ele já tinha morrido antes, quando seu programa acabou, depois de claudicar por anos e anos; morreu antes mesmo que a TV aberta, que também vive uma longa agonia. Mas agora é definitivo. É uma era da TV brasileira que acaba definitivamente, um modo de fazer humor que se foi porque seu tempo passou. Não haverá mais artistas como ele, com a sua dimensão, com o seu impacto na sociedade. O século XX morre aos poucos, mas algumas dessas mortes são mais tristes, como a do Jô.