Gabeira

Há muitos anos, um amigo — eu tinha 18 e ele uns 40 — me contou um episódio interessante de sua vida.

Rio de Janeiro, 1968. Num bar, um amigo o convida para uma ação revolucionária: seqüestrar um determinado embaixador.

Esse meu amigo olha para o grupo e solta: “O quê? Esses malucos e aquele viadinho ali, seqüestrando um embaixador? Esqueçam meu nome.”

O nome do “viadinho” era Fernando Gabeira.

Os anos passaram e esse amigo meu morreu, por excesso de uísque e de cocaína, mas principalmente por excesso de angústia, desconfio. E esse tempo serviu para ir me acostumando aos poucos ao Gabeira.

O Gabeira que conheci era aquele “viadinho” de tanguinha de crochê, que voltou do exílio com umas conversas esquisitas; aquele a quem me acostumei era o defensor do cânhamo e de outras bobagens de importância nula no Congresso Nacional, o ponta de lança de todos os babacas do país. Não era alguém que eu, definitivamente, respeitasse. Hay que endurecerse — e o resto frase não importava.

Mas como dizia Collor, devidamente citado no discurso de Gabeira de anteontem, “o tempo é senhor da razão”.

A dignidade que o Gabeira demonstrou ao sair do PT, simplesmente por discordar dos caminhos que o governo está seguindo, é praticamente o contrário da postura barulhenta dos Babás e Genros da vida. E sem deixar de respeitar seus ideais e sua história com uma elegância e uma coerência que não se viu entre os radicais livres. Mais que isso, dá à sua trajetória uma força que, até agora, eu não reconhecia.

Eu, pessoalmente, não faço nenhum reparo ao discurso de saída de Gabeira. E agora, ao ver que aquele sujeito é muito mais do que eu pensava, tenho a certeza de que o “viadinho” que embarcou naquela aventura em 1968 se tornou um homem. Um grande homem.

Let it Be… Dumb

Essa é a capa do Let it Be.. Naked, que vai ser lançado no dia 17 de novembro.

É, provavelmente, a pior capa de um disco dos Beatles. A idéia é simples, uma releitura da capa do Let it Be original, e isso é fácil de perceber. Mas ao mesmo tempo é tão óbvia que dá um certo desgosto de ver que uma banda que mesmo depois de morta conseguiu nos dar grandes capas (a idéia por trás da série Anthology é brilhante) caiu no óbvio e no obtuso.

Não bastava ser flamenguista, ainda resolvi ser beatlemaníaco. Mereço isso não.

Beatle covers

Uma das razões para eu esperar com certa ansiedade o novo disco dos Beatles, que deveria ser o Get Back original finalmente lançado, é que ele finalmente daria forma a uma teoria maluca que eu tinha.

Eu acreditava que as capas dos discos dos Beatles, mais que qualquer outro grupo, contavam visualmente a sua história, refletindo as transformações ao longo de sua carreira.

O primeiro disco, Please Please Me, mostra os garotos que finalmente conseguiram gravar um disco. Ainda frescos, estão orgulhosos de estar na escadaria da grande gravadora que os colocou sob contrato.

O segundo, With The Beatles, mostra as estrelas da música pop finalmente estabelecidas, já com certo glamour, com um estilo próprio perfeitamente definido.

A Hard Day’s Night mostra a consolidação definitiva, em que eles seguem os passos de Elvis e adentram a outra grande mídia da indústria cultural, o cinema, no ápice do primeiro grande fenômeno mundial da cultura de massas mundial, a beatlemania.

Em Beatles For Sale o que se vê são aqueles mesmos aqueles garotos, mas já cansados do furacão, uma sensação de que deram o que tinham que dar e que não querem mais isso. E no disco seguint,e Help!, eles finalmente pedem socorro, ainda que disfarçamente.

Rubber Soul mostra o início do rompimento com a imagem dos fab four. É um disco de transição e seus rostos distorcidos mostram que sua própria percepção da realidade mudou.

Em Revolver vem o rompimento definitivo com a beatlemania, mas em vez de ceder ao mainstream, o que se vê é uma psicodelia contida, típica da banda.

Em Sgt. Pepper’s a psicodelia explode de uma vez, e os Beatles se assumem como porta-vozes de uma geração que achava estar transformando o mundo.

O Magical Mystery Tour é uma brincadeira a que os grandes ídolos, blasés, se sentindo onipotentes, se permitem. É leve, descompromissado, e um reflexo da psicodelia da época.

O White Album mostra não apenas um retorno à simplicidade, na contramão da época, mas assim como o branco é a soma de todas as cores, reflete a variedade de estilos presentes no disco.

(Deixa eu pular o Yellow Submarine, que poderia ser descrito como a incursão definitiva ao imaginário da pop art mundial, mas que na realidade tem pouco a ver com os Beatles.)

Era aqui que viria o Get Back. A capa, uma cópia do Please Please Me 7 anos depois, mostrava que os Beatles estavam fechando o círculo, e que são e não são os mesmos de 1962.

Finalmente, o Abbey Road mostraria os Beatles indo embora do estúdio, dando por finalizada a sua tarefa. E Paul estava morto.

Mas aí a Apple resolve lançar o Let it Be… Naked. E estraga toda a minha teoria.

A Farra do Boi

Em julho de 88, em Goiânia, uma catarinense contava, a mim e a um amigo, a sua versão da farra do boi, que na época tinha alcançado as manchetes de jornal graças à sua crueldade desorganizada.

(Era um congresso de estudantes, o momento político era de agitação, achavam que discutíamos o futuro do país ali e tudo em que eu e esse amigo pensávamos era em arranjar alguém com quem dormir naquela noite. Em Goiânia fazia frio.)

Ela mentia. Ainda lembro de sua voz, de seu sotaque e da sua expressão de ultraje, dizendo “Não, mas a minha farra do boi não tem nada disso!” Sua amiga, calada, apenas concordava com a cabeça.

Tudo bem. A gente mentia, também. Descaradamente. Bons velhos tempos, em que a verdade podia ser tão sutil e tão pouco importante, porque a gente ainda sabia o que realmente valia a pena.

Por que torço pelo touro

Houve uma época em que eu gostava de touradas, porque nunca tinha visto uma.

Não é difícil gostar delas. Os movimentos do toureador, em sua estilização, são maravilhosamente elegantes. Aquela dança entre o toureiro e o touro, a sensação de controle que o toureiro transmite, são impressionantes.

O fato do touro ser morto no final, com uma estocada na nuca, nunca me incomodou demais. A tourada é um esporte violento, e sempre achei que à força do touro o toureiro tinha o direito de contrapor uma espada.

Mas as coisas não são assim tão róseas. A tourada é um exercício de crueldade e, principalmente, de covardia.

O que o toureiro mata não é um touro em igualdade de condições, mas um animal que foi enfraquecido e esfaqueado de forma vil por picadores a cavalo.

Se fosse o combate justo entre um homem e um touro, a tourada seria um espetáculo bonito de se ver, uma alegoria da luta do homem para superar suas fraquezas e controlar o seu ambiente. Mas não é, e o resultado é apenas o que de pior a raça humana pode oferecer.

E é por isso que um certo sentimento misantrópico de júbilo toma conta de mim quando vejo o touro ter o seu momento de glória e vingança, enquanto balança o toureiro para lá e para cá, sob os ohs! e ahs! de uma torcida agraciada com aquilo que ela secretamente deseja.

Em defesa da propaganda

Faz tempo que fico de comentar um comentário do AlterEgo sobre propaganda.

Alter não tem a propaganda em alto conceito. Não é uma posição exatamente incomum. Eis o que ele diz:

Não conheço nenhuma propaganda que fale mal do produto que está sendo divulgado. Eu já escrevi sobre isso no dia 27/03. Ao meu ver, omitir características negativas é tão indesejável quanto mentir. Publicidade como é feita, atualmente, ao meu ver é antiética por definição.

Eu discordo veementemente disso.

Na verdade, boa propaganda é necessariamente ética. Não porque publicitários são bonzinhos ou empresas são exércitos da salvação, e nem mesmo porque leis e códigos de ética proíbem isso; mas porque é mau negócio mentir sobre um produto. Basta uma simples experiência para o consumidor jamais voltar a sequer olhar para aquilo: ninguém agüenta ser enganado.

O que a propaganda faz é ressaltar os pontos positivos de um produto ou serviço, e isso é perfeitamente natural. Nesse caso, sim, se pode dizer que a propaganda é parcial. E é, mesmo. Mas alguém conhece um sujeito que chega para uma menina numa boate e diz: “Meu nome é Zé e embora seja uma excelente pessoa, meu pinto é deste tamanhinho”?

O detalhe é que, ao assistir um comercial, ouvir um spot ou ler um anúncio, você sabe quem está dizendo isso, e sabe que ele jamais diria algo contra si mesmo como cartão de visitas, assim como eu ou qualquer pessoa com juízo ou um mínimo de auto-estima.

Paradoxalmente, a propaganda é provavelmente a maior garantia da liberdade de expressão que eu conheço. Se não fosse pela receita publicitária, jornais não poderiam jamais ter independência para criticar ou denunciar de forma isenta. É o que acontece até hoje em absolutamente todas as cidades menores que São Paulo e Rio de Janeiro.

Além disso, em termos de ética, muito mais deficiente que a propaganda, mesmo a ruim, é o jornalismo — e nesse caso, muitas vezes até o bom. Mas esse, por alguma razão esquisita, é sempre tido em alta conta.

Publicitários no curral

E já que falei tanto de putas naqueles posts da semana passada, deixa eu falar de publicitários. Dá no mesmo, mas é que ultimamente dei para me repetir.

Quando comecei a fazer o trottoir, duplas de criação — redatores e diretores de arte — ficavam em salas individuais, numa demonstração de status só inferior à diretoria. Isso mudou quando Washington Olivetto, seguindo o exemplo de Jay Chiat, resolveu botar todo mundo junto num “mesão”, ou pelo menos na mesma sala. Parecia uma proposta renovadora — que, como publicitário brilhante, o Olivetto alcunhou de “revolucionária”.

Isso acabou virando moda. Todas as agências entraram nesse modelo. E ninguém diz que é um modelo horroroso, que é um acinte à criatividade e à razão de ser da atividade.

O departamento de criação das agências virou um grande curral. E essa idéia é ruim porque uma peça é o resultado do trabalho de uma ou duas pessoas, sempre.

Mas, principalmente, é ruim porque distrai e atrapalha. E o resultado, em várias agências, é um ambiente em que se trabalha em silêncio quase absoluto, porque a sua risada pode atrapalhar aquele sujeito que está escrevendo um anúncio sério. É uma grande diferença em relação ao ambiente de balbúrdia total de antigamente — na minha opinião, uma balbúrdia que ajudava a criatividade.

Posso estar exagerando, mas acho que o curral é um dos grandes responsáveis pela má qualidade da propaganda brasileira ultimamente, em que todos viraram cópias do Marcelo Serpa, e fazem anúncios com títulos engraçadinhos, duas linhas de texto e uma foto bonitinha e bem produzida.

Saudades do Neil Ferreira.

Mônica

Numa dessas madrugadas de insônia (mentira, eu estava zonzo de sono), conversando com a Mônica, ela disse algumas coisas que me impressionaram. Como sei que aquela figura jamais se lembraria de salvar o log e publicar isso no seu blog, resolvi colocar isso aqui sem sua autorização. Azar o dela. Graças à Mônica, o meu blog fica mais inteligente. E descobri uma nova forma de manter um blog vivo: roubar dos ricos e distribuir aos pobres, a começar por mim mesmo. Meet Rafael Hood. Com vocês, a Mônica.

Acho que somos todos uns bichos controlados por neurotransmissores que resolvem deixar os instintos de lado e que, não conseguindo sucesso, ficam neuróticos.

Afinal, comportamento compulsivo não se parece com um instinto defeituoso?

Acho que sim. Bichos têm sempre o mesmo comportamento e, pelo visto, não conseguem fugir dessa programação. Penso que com a gente acontece o mesmo. Somos bichos “bagunçados” pela capacidade de abstração. Portanto, levamos nossos instintos para um lado simbólico.

Ou seja: a vida não tem relação nenhuma com aquela poesia toda que as pessoas cismam de achar que é a própria vida. E os bons poetas são aqueles que enxergam isso, mas que conseguem expressar essa merda de forma poética.

Eu devia estar feliz com isso. Mas queria que alguém me provasse que o mundo é mais poético do que a capacidade dos humanos de fazerem poesia. Mas acho que o mundo é… E pronto. (“ser” acaba sendo verbo intransitivo, né?). E a natureza não tem nada de boa ou má. Bondade ou maldade são conceitos que a gente cisma em construir e atribuir às coisas.

E, no final das contas, eu não sei porra nenhuma de coisa nenhuma. E, também, como sou curiosa, vou ter sempre que carregar uma frustração na vida. Mas eu gosto tanto de pelo menos saber que não sei (coisa que pouca gente admite), que a frustração de não saber acaba sendo meu bichinho de estimação.

Folha corrida

Meu nome é Rafael Galvão e tenho 32 anos. Nasci num sábado de carnaval em Salvador, o que faz de mim um baiano nato, porém renegado.

Segundo este teste, meus principais pecados são a gula e a luxúria — espero que não necessariamente nessa ordem. Segundo este outro, meu principal distúrbio psicológico é o narcisismo. Ambos os testes devem estar corretos. Sou um hedonista por vocação e por talento. Gosto de comer bem. E gosto de comer bem.

Escrevo porque gosto, porque sei e porque, afinal de contas, sou bem pago por isso — quando não levo calotes, bem entendido. É como ganho a vida; ou melhor, é como a vida me engana. O único outro modo como eu poderia defender com galhardia o leitinho das crianças, infelizmente, é imoral.

A única coisa de que realmente entendo são os Beatles; um amigo dizia que eu sabia a cor da cueca que Paul McCartney estava usando ao gravar Helter Skelter, e ele não deve estar muito longe da verdade.

Poucas questões filosóficas me importam.

Já fui patrão e empregado. Ser patrão é mais rentável.

Já fui pobre e já fui quase rico, em ciclos constantes e tediosamente repetitivos — e mais uma vez, garanto que ser rico é melhor.

Ex-comunista, filiei-me de bom grado ao PDF — Partido do Dinheiro Fácil; onde, aliás, militam clandestinamente comunistas, capitalistas, anarquistas, socialistas e todos os outros istas que se possa imaginar.

Minha vaidade só é suplantada pelo sorriso de minha filha.

Sou temperamental, idiossincrático e elitista.

Minha namorada diz que sou competitivo, minha irmã diz que sou metido e minha filha diz que sou lindo. Num mundo ideal, minha namorada diria que sou competente, minha irmã diria que sou brilhante e minha filha continuaria dizendo que sou lindo.

Rio de mim mesmo, mas honestamente prefiro rir dos outros.

Há homens mais bonitos que eu, mas tenho certeza de que, em compensação, são todos viados.

Vou morrer em Paris, a única cidade de que gosto mais que o Rio de Janeiro.