Numa sala de reboco

Depois de mais de dez anos sem botar os pés num forró, com uma Coca na mão enquanto olho as pessoas suarem e se contorcerem numa sublimação rítmica de seus desejos, a mulata passa por mim requebrando, calças justas realçando seus dotes calipígios. Uma gracinha dita e ela olha para mim com o que sergipanos chamam de “cara de fedor”.

E aí dá vontade cantar um sambinha antigo para ela.

Eu tenho grana e minha cor não pega
(Somente a sua grana vai me interessar)
Mas pra botar a mão na minha grana
Você tem que rebolar, rebolar, rebolar

Ela não sabe que minha carteira anda vazia, coitada, então eu posso mentir. Porque a idéia de cantar esse sambinha é tentadora. E bem que eu queria ver a mulata rebolando, rebolando, rebolando.

Morte em Veneza

Lendo na Salon um artigo sobre a nova tradução inglesa de “Morte em Veneza”, de Mann. O título é quase marrom: Just how gay is “Death in Venice?”

Essa é uma bela novela, e se tornou também um belo filme de Visconti, da sua fase esteta. Conta a história de um compositor cujo ápice já passou e sua fascinação por um garoto em férias na tal cidade. Há duas linhas de interpretação principais quanto à obra, que não deveriam ser excludentes. O trecho abaixo explica melhor:

Even today, some critical guides to “Death in Venice” explain it principally as an allegorical study of artistic creativity and its pitfalls, or as a modern interpretation of classical myth. These interpretations can be defended, but they tended to overlook the obvious fact that Aschenbach’s predicament would never have seemed so dire or his obsession so doomed if its object had been a teenage girl instead of a boy.

Infelizmente esqueceram de dizer isso ao pobre Humbert e sua desgraçada Lolita, que deram o azar de estar em outro livro, escrito por um russo heterossexual. Aschenbach ao menos morre com alguma dignidade pública; seu conflito só existe em sua cabeça, sua vergonha também. Enquanto isso Humbert é obrigado a pequenas e grandes torpezas e humilhações para conseguir sua Annabel Lee. Sua degradação moral e social talvez seja disfarçada por sua prosa brilhante, por sua inteligência; mas objetivamente sua obsessão é “condenada” desde o princípio.

A única diferença é que Aschenbach nunca chega perto de Tadzio. Sua vida amorosa existe apenas em sua cabeça, nunca chega a se concretizar. Mas Humbert tem a sua Lolita, e mesmo seu fim ignominioso é consolado pela lembrança da menina em sua cama, lembrança que nem outras, como a de Lolita chorando durante o sono, podem apagar. Aschenbach é um ser humano melhor que Humbert, infinitamente melhor; e isso independe de ser gay ou não.

Obviamente o resenhista pode estar se referindo apenas a Aschenbach, sugerindo que ele, especificamente e de acordo com sua natureza, teria mais sorte se se visse obcecado por um menina pré-púbere. Mas aí estará entrando no território escuro das hipóteses, porque é algo que nunca poderemos saber. Sua opinião, então, apenas reflete seus próprios preconceitos.

Se essa vitimização sexista ao contrário é o melhor argumento contra a interpretação de “Morte em Veneza” como uma parábola da criatividade artística — interpretação extremamente válida, por sinal, e mais importante que uma eventual discussão sobre a sexualidade de Aschenbach –, a coisa complica.

Requiescat in pace

A Atlantic Monthly é uma das melhores revistas americanas. E sempre disponibilizou online todo o seu conteúdo, com algum atraso em relação à edição nas bancas. Um preço muito baixo a pagar por alguns grandes textos.

A partir de hoje a maior parte do conteúdo online da AM está restrita a assinantes.

Em tempo: uma edição da AM no Brasil custa quase 40 reais.

A vida é dura.

Nasce uma lenda

Cidades pequenas sempre têm seus loucos de estimação. São conhecidos por todos, passam a fazer parte do cotidiano e, quando desaparecem, demora até que alguém se pergunte o foi feito dele, pergunta que raramente tem resposta. São ubíquos e conspícuos, se integram à paisagem e, às vezes, à lenda de cada cidade, como Gentileza atravessou a baía para se integrar à do Rio de Janeiro.

E estes são dias de espanto, porque uma lenda está nascendo em Aracaju.

Ela é uma mulher em seus 50 anos. É negra, mas em algum lugar de sua loucura decidiu que isso pode ser disfarçado. Passa pancake em todo o rosto, e assim cria uma máscara grosseira, óbvia e agressiva. Talvez quisesse se tornar uma boneca de louça, mas a imagem mais fidedigna é a de um aborígene australiano. Se a blusa que está usando deixa os ombros à mostra, ela também os maquia, outra camada grossa de pancake colocada de forma descuidada. Seus olhos, que podem denunciar a si mesma diante de um espelho, estão sempre escondidos atrás de óculos escuros.

Vaga principalmente por centros de compras: shopping centers, hipermercados. Sua loucura é alimentada pelo consumismo de uma sociedade à qual ela não se julga adequada. Não parece comprar nada, jamais; é como um fantasma que contempla, distante e marginal, a lei da oferta e da procura.

Ela já começou a se tornar conhecida, mas ainda causa espanto. As pessoas olham constrangidas, disfarçadas, assustadas ainda; e tentam uma explicação racional, porque ainda não desistiram de entender.

Mas não vai demorar até que desistam de explicações que nunca virão, ao menos não satisfatoriamente, e apenas se acostumem à sua presença. Sua lenda começa a ser criada, e já dizem que ela era professora. É só o começo; ainda é cedo para a lenda tomar sua primeira forma a partir de pequenas informações biográficas. E mais cedo ainda para que dispense até mesmo esses fiapos de verdade, e adquira dimensões fantásticas e irreais.

Para que isso aconteça é preciso que as crianças de hoje cresçam. Porque apenas crianças não se incomodam com a loucura alheia; são elas que vão dar a essa mulher o seu caráter legendário e sua integração à rotina da cidade, ao crescerem com a sua visão bizarra, às vezes fantasmagórica.

Ela tampouco tem um nome. Não é a louca da máscara, nem a maluca dos shoppings. É uma louca pública ainda muito recente, e talvez a cidade tenha crescido demais e não esteja mais preparada para seus loucos. Enquanto isso ela vaga pelos shoppings, pouco se importando com a impressão que causa nas pessoas, porque não são elas que a aterrorizam, é o espelho.

Estes são mesmo dias de espanto.

Notícias estranhas em um blog esquisito (XX)

Uma rede californiana de escolas cobrava de 450 a 1450 dólares para dar diplomas a latinos, tendo como base uma cartilhazinha que ensinava, entre outras coisas, que os Estados Unidos têm 53 Estados, que a II Guerra durou de 1938 a 1942 e que o Congresso é dividido em Senado, do Partido Democrata, e Câmara dos Deputados, do Partido Republicano.

A ignorância americana acerca do resto do mundo — pelo menos a dos sixpackers — é proverbial e compreensível. Mas isso ultrapassa os limites. E a única razão concebível é que a tal rede de escolas resolveu simplesmente sacanear os cucarachos.

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Um marroquino de 70 anos cortou o próprio pênis em protesto às constantes recusas de sua mulher em fazer saliência com ele.

Este blog se solidariza com a esposa; a julgar pelo ato tresloucado do macróbio, deve ser complicado viver com ele. Também se solidariza com o pobre velhinho, que imolou a si mesmo no altar do amor conjugal.

Mas pensando bem, ele não fez nada demais. Tem 70 anos, o capão. Foi como tirar o apêndice.

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Talvez coubesse melhor no Carta da Itália, mas é com prazer inenarrável que recebo a notícia da volta da grande, da inesquecível Cicciolina, agora querendo ser prefeita de Milão.

É a candidata ideal, em qualquer lugar e a qualquer tempo. Ao contrário dos políticos tradicionais, acostumados a ferrar o povo, ela sabe bem — foram mais de 40 filmes, inclusive com o grande, grande mesmo, John Holmes — o que é estar do outro lado.

A única coisa meio chata nessa história é esse seu entra e sai da política. Parece que ela ainda não esqueceu sua antiga profissão.

(Uma curiosidade: em sua campanha para o Parlamento italiano, nos anos 80, Cicciolina mostrava os peitos — belos peitos — a quem quisesse ver. Ela agora tem 52 anos. Vamos ver se continua mostrando.)

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Três bancos em Iowa foram assaltados enquanto Bush e Kerry faziam comícios na mesma cidadezinha, a alguns quarteirões de distância um do outro.

Os dois já receberam sua parte.

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Swingers iranianos que tranqüilamente trocavam suas esposas foram incomodados pela polícia, que define esse tipo de esporte como prostituição.

Eles podiam ser swingers, mas eram também xiitas. O pau comeu: dois policiais foram baleados e outros dois esfaqueados.

País estranho, aquele, em que um homem de bem não pode nem assistir a outro pegando a sua mulher em paz.

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Só Deus sabe quanta raiva este blog já destilou contra advogados, mas finalmente apareceu um motivo para elogiá-los. Se chama Roderick Murray, e é promotor em Hong Kong.

Roderick comeu água, muita água antes de ir a uma audiência (embora diga que foram só dois martínis e umas cervejas). Lata cheia, se comportou como um cavalheiro no tribunal: colocou óculos escuros, se acabou de rir, bateu palmas e tamborilou os dedos em sua mesa. Quando o juiz Chua Fi-lan pediu ao advogado de defesa que o retirasse da sala, ele posou para jornalistas, do lado de fora do tribunal, na posição do Pensador de Rodin. O que é curioso, porque é mais difícil que fazer o quatro.

Em outra situação poder-se-ia dizer que ele fez isso porque já não agüentava mais o famoro decoro jurídico, nome engraçadinho para a mais reles hipocrisia. Mas isso não é hora para piadinhas bobas.

Senhoras e senhores, Roderick Murray é um herói.

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Esta é uma tragédia com nomes esquisitos.

Eleni Ioannou, atleta da equipe olímpica grega de judô, brigou no sábado com seu namorado, Giorgos Chrisostomidis, com quem vivia há um ano e meio. Giorgos estava com ciúme, com medo da perspectiva de passar alguns dias separado de Eleni, enquanto ela disputava os jogos.

A discussão piorou. E então Giorgos deu um tapa em Eleni. Assustada, ela devolveu o tapa, correu para a varanda e se jogou.

Para Giorgos foi como se o mundo tivesse acabado. Ele amava Eleni mais que qualquer outra coisa em sua vida. Foi ela quem o tirou das drogas, quem o incentivou a retomar sua vida.

Sem Eleni o mundo de Giorgos acabou, consumido em culpa. Segunda-feira, enquanto almoçava com sua avó, ele disse: “Quero me juntar a Eleni”. E se jogou da mesma varanda.

Os dois estão na UTI.

Esta é uma notícia estranha, este é um blog esquisito, mas nem todas as notícias estranhas são risíveis. Pelo menos não para quem ainda acredita no amor, na paixão e na sua beleza e estupidez.

De volta ao Porto da Barra

O comentário do Sérgio sobre o Porto da Barra me lembrou outras coisas, detalhes de uma Salvador que não existe mais.

Voltei à cidade nesse ano, 1977. Naquela época eu ainda não era baiano. As pessoas perguntavam se eu era paulista — meu sotaque, na verdade, era carioca, mas para eles era tudo a mesma coisa, porque qualquer sotaque não-soteropolitano é a língua dos bárbaros.

O Oceania era um dos points da boemia da Barra. Para mim, era o lugar onde às vezes eu parava com meu pai, no domingo pela manhã, e lia o Jobinha, suplemento infantil do Jornal da Bahia. Eu não andava pelo Farol porque não tinha idade para pegar as “cocotas”, como chamavam na época — e por isso, enquanto a Barra do Sérgio vai ser sempre o palco da juventude, para mim ela é infantil. Minha “área”, nessa época, ia da 8 de Dezembro à Marques de Leão, fronteiras delimitadas por duas lojas de brinquedos, a Brink Bem. Meu centro geográfico era a banca de revistas que ainda hoje está no Largo da Barra, de um sujeito chamado Renato, que para mim era a cara do Emerson Fittipaldi. Foi a primeira banca com telefone que vi — ele precisava para continuar comprando e vendendo seus dólares. Demoraria algum tempo para essa área se expandir até as livrarias da Praça da Sé, quando fui morar na Graça.

A Salvador dos anos 70 era mesmo uma cidade mágica, muito mais do que é agora.

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Hoje o bairro sofre um processo de copacabanização, embora ainda esteja longe de se tornar algo parecido. A coisa complica mesmo aos domingos: é a praia de zona sul mais próxima, e é para lá que o povo vai. Nos fins de semana, ela fica intransitável. As ruas em redor ficam cheias de gente que os moradores do bairro classificam como de segunda classe. Prostitutas enchem as ruas à noite. Malandros esperam turistas darem algum vacilo.

Há uns dez anos, num desses domingos pela manhã, eu andava pela praia, olhando o vai e vem enquanto esperava criar coragem para ir à agência onde fazia um freelance. Um sujeito magro, muito branco, começou a conversar comigo enquanto andávamos. Se queixou daquele monte de negros na praia. Reclamou que não havia mais segurança, que qualquer daqueles crioulos poderia estuprar sua irmã. Evocou uma Barra que já não existia. O elitismo racista dele começou a me irritar e foi para o meu alívio que, depois de caminhar ao meu lado desde o Porto, o sujeito me privou de sua adorável companhia no Farol.

Eu o imagino ainda hoje, aos pés da mãe velhinha, reclamando ultrajado da decadência do bairro onde cresceu, enquanto serve licor de jenipapo às pobres visitas que ainda se lembram daqueles dois seres esquecidos pelo mundo.

Relatório

Fiz um bocado de mudanças aqui neste fim de semana e sequer lembrei de dizer quais foram.

Mudança do Movable Type 2.661 para o 3.01
Poderia ser apenas um upgrade normal, mas serviu de desculpa para as outras mudanças. O MT 3 oferece algumas possibilidades de controle de comentários que, à medida que começo a receber spam de comentários, começam a se tornar necessárias — dia desses, de uma só vez, foram mais de 30 em posts antigos, anunciando de métodos de aumentar o pinto a jogatina. A forma como o MT 3 organiza os arquivos dos posts também é mais robusta e mais sensata, facilitando os backups.

Mudança do sistema de banco de dados
Este blog usava o BerkeleyDB, default nas instalações do Movable Type, e bastante fácil de configurar. No entanto, como ele cresce a uma média de 2 ou 3 posts por dia, é recomendável a mudança para o MySQL. Dizem que é mais rápido e mais versátil, o que o torna preferível quando se vive fazendo mudanças e rebuilds, como eu. Para falar a verdade, nos testes que andei fazendo não vi essa rapidez de que falam. Mas tudo bem. Como ele possibilita backups mais completos, instalei assim mesmo.

Importação de posts e comentários antigos
Nos últimos meses, vim me dedicando a importar os posts e os comentários do blog antigo, no Blogger. Teoricamente há meios de se fazer isso automaticamente, mas a exportação do Blogger está um grau abaixo do podre, e não há a importação de comentários (uma das grandes vantagens do MT é que os comentários passam a fazer parte do próprio post). Resolvi fazer a transferência manualmente, então. Sem pressa. O que não diminuiu o tédio da tarefa.

Mudança da estrutura de arquivos do site
Bobagens que se faz no começo nem sempre podem ser consertadas depois. Separar o MT do blog propriamente dito vai evitar que os serviços de busca indexem os comentários, e algumas mudanças menores devem tornar a administração do blog mais fácil. FInalmente, prepara o blog para MT 3.1, o que realmente interessa.

HTML para PHP
Necessário para que se possa utilizar as mudanças mais importantes da próxima versão do MT. Infelizmente, links para páginas específicas deste blog se tornaram imprestáveis.

Frescuras
Aproveitei para colocar um pluginzinho engraçado: “Hoje na história” mostra os posts publicados no mesmo dia nos anos anteriores. Parece que em 10 de agosto de 2003 eu não publiquei nada, por isso ele só começa a funcionar mesmo amanhã. Aproveitei também para dar uma guaribada no layout do blog. Mas ao contrário das mudanças anteriores, essa foi pequena. Eu não aguentava mais aquele verde.

Nas estrelas

A Tata me desencaminhou para o Quiroga.net, para fazer meu mapa astral. E lá fui eu.

Eis uns trechos do resultado:

Em todo caso, você também possuirá uma natureza afável, doce, flexível ao extremo, e influenciável pelas condições prevalecentes. (…) você será uma pessoa social, e fará o necessário para agradar e lisonjear. Poderá chegar a ser tão diplomático e educado que as pessoas lhe perguntarão se você tem opinião própria.

Rapaz, é a minha cara.