José Serra não está preparado para ser Chefe do Estado brasileiro

O que mais chama à atenção nas declarações recentes de José Serra sobre o presidente da Bolívia, Evo Morales, é que elas servem, quando menos, para comprovar uma constatação que vinha tomando corpo nos últimos anos.

É uma constatação muito simples, mas fundamental para a compreensão do cenário político atual: a direita brasileira não apenas foi incapaz de trazer o Brasil ao estágio de desenvolvimento em que ele se encontra. Infelizmente, ela é também incapaz de administrar esse novo país — mais rico, mais justo, mais importante.

Já há algum tempo, vinha ficando cada vez mais claro que o PSDB/DEM tem dificuldades em entender o país em que vivemos atualmente. Suas investidas contra a participação do Estado na economia mostram que, mesmo que os fatos desabem sobre suas cabeças, eles não conseguem enxergar além de suas fórmulas de administração de país subdesenvolvido, condição que, historicamente, é a favorita da direita brasileira. Mesmo depois do crash de 2008, quando a atuação eficaz do Governo impediu que o Brasil seguisse os passos de países tradicionalmente mais ricos e atolasse em um dos maiores lamaçais financeiros da história — enterrando de vez as lembranças amargas das crises em que o governo de Fernando Henrique Cardoso, padrinho de Serra, enfiou o Brasil.

Se essa situação já estava suficientemente clara em termos de política interna, agora Serra se encarregou de demonstrar que a incapacidade do grupo que representa não conhece limites. E mostrou que é realmente um candidato globalizado, como o PSDB/DEM gosta de ser: sua estupidez demonstra estar em expansão constante, e não consegue se limitar a meras fronteiras nacionais.

Ao acusar um Chefe de Estado estrangeiro de cúmplice de traficantes, José Serra fez muito mais que cometer uma gafe diplomática. Mostrou, acima de tudo, a sua completa incompetência em política internacional.

Já se sabia que, como virtualmente toda a direita brasileira, Serra não consegue enxergar as diferenças óbvias e cruciais entre Evo Morales e Julio Cesar Chávez, não consegue entender as condições objetivas de governo de cada um deles, suas necessidades políticas e suas retóricas diferentes. Por isso, por não compreender o que vê, trata a ambos como criminosos.

Mas agora o caso se torna mais grave. Ao tratar um líder legítimo e importante para a história de seu país como Evo Morales de uma forma indigna, ofensiva e caluniosa, enquanto fecha os olhos para os crimes verdadeiros cometidos pelo grupo do colombiano Álvaro Uribe, com quem tem muito mais afinidades ideológicas, Serra deixa antever a extensão da catástrofe que seria um eventual — e cada vez mais improvável — mandato seu em termos de política exterior e comercial.

Não se trata mais de discurso e presunções: falamos, agora, de atitudes concretas. Já temos indícios suficientes de que, se fosse eleito, Serra se encarregaria de devolver o Brasil à posição com a qual essa direita encabeçada pelo PSDB/DEM se sente mais confortável: a de um país subalterno e subjugado, envergonhado e resignado à condição de pobre da periferia — um país que assume completamente o seu complexo de vira-lata.

Insultando Evo Morales e colocando o Brasil como alvo de críticas justas, pela primeira vez em muitos anos, José Serra demonstrou que não é capaz de desempenhar dignamente a função de chefe de Estado. De nenhum país, nem mesmo de Honduras — mas, principalmente, se mostrou incompetente para governar um país em consolidação econômica e ascensão no cenário internacional como o Brasil.

Justiça seja feita: o feito que Serra conseguiu não é para qualquer um. A inserção internacional que o Brasil conquistou, contrariando as recomendações do PSDB/DEM, foi pela primeira vez em muitos anos abaladas pelas declarações absolutamente infelizes de um candidato que se pretende uma alternativa viável de poder.

Alternativa ele acaba de provar que é. O problema é que não é a melhor possível; não é sequer uma alternativa desejável para um país que se respeite.

Sobre o Bolsa Família

O Bolsa Família se transformou em uma das principais pedras de toque do governo Lula por uma razão: ele funciona, como nenhum outro antes dele.

Maior programa de transferência de renda do mundo, o Bolsa Família estabeleceu uma quebra de paradigma importante no modelo de assistência social. Até a era FHC, assistência social era basicamente dar um dinheirinho a famílias em situação de miséria e esperar que o pai não gastasse tudo em cachaça. Com o Bolsa Família, o governo Lula estabeleceu diferenciais importantes que transformaram o programa em uma alavanca não apenas para o alívio da situação de desespero de milhões de famílias brasileiras, mas em um instrumento de desenvolvimento social.

Os números são os seguintes: há 19.653.677 famílias no Cadastro Único, que mapeia as famílias pobres e servem de base para a definição das políticas sociais do governo. Dessas, 15.729.878 famílias têm perfil para serem atendidas pelo Bolsa Família — ou seja, estão abaixo da linha de pobreza. Finalmente, desse universo, 12.494.008 são atendidas pelo programa.

Não é só isso. O PSDB/DEM, expressando o tipo de pensamento mais canhestro da direita brasileira, alega que o Bolsa Família incentiva a “vagabundagem”; não é incomum ver idiotas de classe média ou alta dizendo em tom jocoso que as pessoas não vão mais trabalhar, vão apenas fazer filhos para receber o benefício — é um desrespeito ao povo brasileiro dizer algo do tipo, levando-se em conta que o Bolsa Família é uma renda complementar e não é suficiente para sustentar completamente uma família.

Felizmente os números desmentem esse tipo de imbecilidade: de acordo com o IBGE, 77% das famílias atendidas pelo BF trabalham formal ou informalmente (entre os não beneficiados, o número cai para 73%). Mais ainda, 99,5% dos beneficiados que tinham algum tipo de ocupação não deixou de trabalhar porque passou a receber o Bolsa Família. Na verdade, o programa acaba incentivando o empreendedorismo, ao dar mais possibilidades aos beneficiados de gerar mais renda.

O Bolsa Família é dado às famílias, não a indivíduos. Às mães, preferencialmente, por serem elas as cabeças da maior parte das famílias pobres e porque, quando há um chefe masculino, ele não é exatamente confiável. Curiosamente, isso acaba modificando bastante as relações de gênero justamente entre as camadas mais baixas da sociedade. Além disso, o Bolsa Família não tem prazo de validade. É concedido enquanto as famílias precisem delas, e suspenso definitivamente apenas quando sua faixa de renda muda. Ou seja: quando melhoram de vida.

O principal diferencial do Bolsa Família e os programas assistenciais anteriores está em um fator simples, mas decisivo: a condicionalidade. Para receber o benefício, cada família precisa cumprir algumas condições básicas. São condições simples, como manter os filhos na escola, seguir o calendário de saúde — vacinação, pré-natal, etc –, e participar dos programas de capacitação profissional e geração de renda. Ou seja: em vez da esmola que o PSDB dava a uns meninos por aí, o Bolsa Família é um processo amplo e consequente de inclusão social.

Uma das vertentes do discurso do PSDB/DEM de demolição do Bolsa Família é o de que falta uma porta de saída. Falam isso por ignorância ou por má fé. Porque o próprio mecanismo do Bolsa Família é, por si só, uma porta de saída. Assistencialismo barato como o praticado pelo PSDB/DEM é dar o dinheiro e fim de papo. Em vez disso, para poder receber o Bolsa Família cada família beneficiária precisa cumprir uma série de condicionalidades, além da óbvia que é estar comendo o pão que o diabo amassou com o rabo. O Bolsa Família obriga as pessoas a estudar, a cuidar da saúde. Isso é a porta de acesso à cidadania. E de saída da miséria.

Mais objetivamente, eles esquecem que, além dos cursos de qualificação e geração de renda diversos, o governo Lula lançou, ano passado, o mais específico Plano de Qualificação Profissional para Beneficiários do Bolsa Família, uma série de cursos profissionalizantes que buscam aumentar o nível de empregabilidade dos beneficiários. Os primeiros cursos se dirigem à construção civil, setor da economia que tem absorvido mais mão de obra em grande parte devido às obras do PAC.

Finalmente, o Bolsa Família movimenta a economia. Por causa da renda complementar proporcionada por ela, as pessoas compram em suas comunidades — para horror do PSDB/DEM, que se irrita ao ver que as pessoas votaram em Lula e vão votar em Dilma porque depois de muito tempo passaram a realizar esse ato tão insignificante do ponto de vista macroeconômico chamado “comer”. Comprando, elas fortalecem o comércio, que se anima a vender a prazo porque sabe que vai receber no dia certo. O Bolsa Família acaba gerando mais empregos; para usar uma expressão cara aos tucanos, cria um “ciclo virtuoso”.

Ou seja: é um programa completo dentro de suas atribuições, que vai muito além do meramente “assistencialista”, como gostariam os tucanos olhando com saudade para o seu Bolsa Escola — que para outros é apenas a prova de sua incompetência na área social.

Diante disso, o discurso do PSDB/DEM tem sido, no mínimo, esquizofrênico. Há os que atacam o programa dizendo que ele não presta, sem nunca citar números. E há aqueles que tentam reivindicar sua paternidade creditando todo e qualquer programa social do governo Lula a Fernando Henrique. O Bolsa Família, então, seria apenas o Bolsa Escola com outro nome.

A única coisa que realmente foi feita durante o governo FHC foi o início da formação do Cadastro Único, em 2001. Só isso, mais nada. A não ser, claro, que se tente creditar ao Bolsa Escola, o programa assistencial de Fernando Henrique, a origem do Bolsa Família.

O problema é que comparar os dois é, para usar a única palavra adequada, uma palhaçada.

O Bolsa Escola tucano era dado a crianças que freqüentassem a escola, ponto, e não cobrava nenhuma condição além da frequência escolar. O benefício era suspenso quando ele completasse 14 anos, independente de sua situação.

Resultado: não resolvia o problema, porque não havia um sistema de promoção social. Pior ainda, muitas vezes até agravava a situação, porque assim que o menino completava 14 anos e o benefício era cancelado a renda de famílias inteiras diminuía repentinamente. Isso, sim, era esmola. O Bolsa Escola fazia parte da mesma tradição paternalista que deu ao país o vale leite e o vale gás, e que possibilitou as imensas filas em frentes às sedes estaduais da antiga LBA.

Enquanto isso, do Bolsa Família uma família só sai se deixar de cumprir as condicionalidades — quando, aí sim, o programa passaria a ser esmola, porque seria dinheiro apenas dado, sem compromisso de melhoria social — ou se seu nível renda aumentar e ela se erguer acima da linha de pobreza — em outros termos, quando ela passa a não precisar mais do auxílio do governo. É isso, essa consistência e consequência, que faz do Bolsa Família um projeto diferente e tão bem sucedido.

Desde a criação do programa, 4,1 milhões de famílias foram desligadas do programa, porque seu nível de renda aumentou.

4,1 milhões de famílias que saíram da miséria. E eles são só uma parte dos 23 milhões de pessoas que, ao longo do governo Lula, saíram da linha de pobreza absoluta.

Apenas para efeito de comparação, durante todo o governo de Fernando Henrique Cardoso apenas 2 milhões de pessoas trilharam o mesmo caminho. Talvez não pudesse ser diferente: a cada crise econômica — e eles conseguiram quebrar o Brasil três vezes –, a primeira coisa que o governo FHC fazia era cortar os investimentos sociais, porque afinal de contas tinha o tal do superávit primário para manter. Também para efeito de comparação, é só lembrar que na crise de 2008, que a boa governança brasileira transformou em marola, o governo brasileiro na verdade aumentou os investimentos nessa área.

O PSDB/DEM sabe disso, embora não alardeie por aí porque faz mal à sua imagem. É por isso que quando os tucanos falam que o Bolsa Família aprofunda a miséria, é porque partem do exemplo do projeto pífio que conseguiram realizar. Se baseiam na própria incompetência para julgar a competência dos outros. O Bolsa Escola é só o que eles sabem fazer, e só o que conhecem. E não concebem que alguém possa fazer algo melhor.

De volta ao futuro

Nos próximos dias, este blog vai recauchutar alguns posts de quatro anos atrás.

As razões são simples.

Um dos trolls de estimação de blog, vendo o que ninguém vê e achando que Serra realmente tem alguma chance de ganhar esta eleição que, ainda nem começada, o mostra em queda constante nas pesquisas, lembrou que a alternância de poder é necessariamente algo benéfico. O Jean disse que acha que a Petrobras nunca esteve na mira da privatização. E quase todo mundo parece achar que Bolsa Escola e Bolsa Família são a mesma coisa.

Pode parecer loucura, mas é como se o PSDB/DEM tivesse ficado congelado no tempo. Uma espécie de Austin Powers político, eles ainda não compreenderam que os parâmetros para que se possa discutir avanço mudaram. O PSDB/DEM continua sem conseguir apresentar uma alternativa real, diferente da que apresentaram em 2002 e 2006. Eles têm na cabeça o mesmo modelo que implementaram no país e continuam a implementar em São Paulo.

O mais grave na situação do PSDB/DEM não é sequer o fato de que eles não souberam como trazer o país ao atual patamar de desenvolvimento: é o fato de que eles não sabem o que fazer com o Brasil atual.

O que parece difícil que eles entendam é que alternância de poder é boa se ela não representa retrocesso. A volta do PSDB/DEM ao poder significa exatamente isso: uma volta indesejável a uma fase do país que, 8 anos depois, já devia ter sido esquecida, porque foi superada. Eles ainda não conseguiram responder às perguntas básicas: para que vocês querem chegar à presidência da República? Qual o projeto de governo de vocês? O que vocês têm a oferecer que seja melhor do que o governo Lula tem feito e a Dilma pretende fazer nos próximos anos?

Sem apresentar uma alternativa concreta, o discurso de alternância do PSDB/DEM é pouco mais que “por favor, me dê o poder de volta”.

Os posts serão republicados com algumas variações porque o nível de argumentação do PSDB/DEM não é apenas baixo: é velho, também.

E afinal, o que foi mesmo que o PSDB/DEM fez até agora?

O sistema de saúde nacional é municipalizado. No entanto, o Governo de Sergipe (é, aquele que eu ajudei a eleger, para quem ainda se lembra) está construindo 102 clínicas de saúde da família em 74 dos 75 municípios sergipanos, com exceção da capital. Além de construir as clínicas, o governo também repassa recursos para a sua manutenção.

Fez isso porque tem consciência de que as prefeituras desses municípios não têm condições de construir unidades de saúde com esse nível de qualidade.

Se o governo de Sergipe fosse do PSDB/DEM, e não do PT, o discurso no entanto provavelmente seria outro. O governo criticaria os municípios por não oferecerem saúde de qualidade aos seus moradores. Ou, talvez, beneficiasse apenas os municípios de seus aliados políticos. O PSDB/DEM — como bem soube a Prefeitura de Aracaju nos anos FHC — nunca foi um grande entusiasta da ideia de republicanismo, ao menos fora do seu discurso.

Se a história do William incomoda a algumas pessoas, como o Vinícius, é em parte porque eles se recusam a admitir a questão central que ela ilustra: o governo de São Paulo, que hoje se pretende tão esperto e tão preocupado com o social, e que passou os últimos 8 anos atacando uma política social que inegavelmente deu mais que certo, não apresentou absolutamente nada no Governo de São Paulo que pudesse minimamente soar como alternativa.

Para quem chama o Bolsa Família de Bolsa Esmola — e só idiotas, verdadeiros idiotas, comparam o Bolsa Escola ao Bolsa Família; há um resumo sucinto das diferenças entre os dois em um dos posts linkados abaixo, mas não parece que alguém tenha se dado ao trabalho de ler — o mínimo que se poderia esperar é que apresentassem algo que pudesse fazer diferença.

O probema é que, mesmo tendo, uma estrutura de poder consolidada ao longo de 15 anos no governo de São Paulo, o PSDB/DEM não se mostrou capaz de realizar ou mesmo formular uma alternativa concreta.

Além disso, não soube trabalhar de maneira complementar às iniciativas do Governo Federal. Não que seja algo dificílimo de se fazer — tanto que o Governo de Sergipe faz. E Sergipe é o menor Estado da Federação, com recursos parcos e uma história associada às oligarquias e ao coronelismo. Fez isso em 3 anos, ao mesmo tempo em que destruía uma estrutura de Estado viciada e corrupta, fortalecida ao longo de mais de 40 anos.

Se o Governo de Sergipe pode fazer isso, o Governo de São Paulo também poderia fazer.

Mas não fez.

É por isso PSDB/DEM não tem estatura moral para criticar ou propor melhorias — coisa que, aliás, não faz — à política social do governo do PT. Eles declaram aos quatro cantos que vão cobrar competência de Dilma? Deviam, antes, se preocupar em mostrar competência eles mesmos, mostrar o que fizeram em São Paulo, por exemplo. Porque eles são oposição apenas em termos. Controlam há 15 anos o maior Estado da federação, e o segundo maior orçamento. Tiveram tempo e dinheiro suficientes para implementar mudanças significativas na forma como se comporta o Estado em relação a questões fundamentais.

E isso suscita outro ponto.

Todos nós podemos apontar grandes diferenças entre o governo Lula e o governo FHC. Na política social, na política externa, no incentivo à economia. São diferenças tão grandes que Lula acaba de ser eleito o líder político mais influente do mundo, o que me deixa preocupado com a sanidade mental de FHC.

Agora eu gostaria que algum desses defensores (e por favor, não estou cobrando isso de leitores que deixam comentários sem parecer ter lido o post; não seria justo exigir tanto assim dos bichinhos) apontasse diferenças significativas entre a era PSDB/DEM em São Paulo e a era Quércia/Fleury.

Mas, já me antecipando, deixa eu fazer uma pergunta: então são esses que se consideram capazes de substituir um dos governos mais bem sucedidos da história do país? São esses que, incapazes de apresentar alternativas concretas quando têm a chance, se consideram mais capazes de governar um país que pela primeira vez em muitas décadas encontrou uma maneira de combinar desenvolvimento econômico, respeito externo e promoção social?

A palavra é de vocês.

***

Dos comentários ao último post, um deles me fez rir muito: o do Roberto Berlim, praticamente afirmando que foi Íris Rezende que ensinou o PT a fazer política social.

Mas pensando bem, combina com o pensamento alucinado PSDB/DEM: afinal, eles acham que criaram todos os fundamentos econômicos; nada mais coerente que se achem também donos de todas as políticas sociais, aquelas que até hoje eles não conseguiram compreender.

Porque José Serra não conhece William

José Serra não conhece William.

Talvez devesse. Na tarde do último domingo William estava no aeroporto de Guarulhos, apesar da chuva forte que caía. Ofereceu seus serviços a uma moça que fumava na porta: dois reais para engraxar seus sapatos. Não havia necessidade, mas a moça aceitou.

William fazia seu trabalho calado, aquele silêncio humilde que às vezes a gente vê por aí e cria empatia imediata. Mas a moça puxou conversa. Ele contou que tem 10 anos, e mora ali mesmo em Guarulhos, em Bom Sucesso. Tem quatro irmãos e uma mãe; nenhuma referência a um pai. Perguntado se estudava ele disse que sim, pela manhã. Perguntado se gostava de estudar, ele abriu um sorriso e disse que sim, que gostava “demais”. Mas à tarde e à noite ele tem que ir ao aeroporto, para ajudar a mãe. Não é fácil, às vezes o expulsam de lá. Mas ele volta mesmo assim, porque precisa. Agora, William e sua família querem comprar uma bomba para puxar água do poço em sua casa.

Quando acabou de engraxar os sapatos, a moça estendeu 10 reais para William. Ele arregalou os olhos: “Pra mim, senhora?” “É. Mas só se você prometer que vai continuar estudando”. Ele abriu um último sorriso, “Prometo, senhora”, e foi embora.

José Serra não conhece William, mas talvez devesse, porque ele pretende ser presidente da República e há centenas de milhares de crianças exatamente na mesma situação daquele garoto, trabalhando em canaviais, carvoarias, semáforos ou com uma caixa de engraxate nas costas, muitas vezes em um limbo cinzento em que trabalho e caridade se confundem e se tornam indistinguíveis.

Se o conhecesse, Serra talvez conseguisse entender o que significa para milhões de brasileiros o Bolsa Família e a grande rede de proteção social desenvolvida por Lula.

Para crianças como William, o governo Lula representou uma chance sem precedentes de acesso ao exercício da cidadania. Mas o PSDB/DEM jamais conseguiu compreender ou aceitar o seu significado. Essa incompreensão se transformou, nos últimos anos, no seu principal cavalo de batalha na oposição ao governo — uma oposição destrutiva e prejudicial ao país.

Até há pouco, Serra e o PSDB/DEM se concentravam em tentar desconstruir o Bolsa Família e os programas assistenciais do Governo Federal, chamando-o de “Bolsa Esmola”. Acostumados a um projeto de governo que privilegia os mais ricos de maneira insana, sem compreender a natureza do país, o PSDB e o DEM demonstraram, durante anos, total incapacidade de entender um modelo de Estado diferente e mais igualitário.

No entanto, a política social do Governo Lula ajudou a lhe render aprovação popular sem precedentes. E agora, com as eleições se aproximando, o PSDB finge deixar de se indignar com o fato de as pessoas ficarem felizes porque agora podem comer, se torna uma espécie de esquizofrênico político e passa a elogiar o programa.

É uma mudança e tanto. Despido da possibilidade de continuar reencarnando o pior da antiga UDN, em parte pelo fracasso memorável da sua estratégia em 2006, e em parte graças aos escândalos gravíssimos de corrupção que assolaram os dois partidos nos últimos meses — destruindo de passagem o que tinha se tornado o eixo de um discurso vazio e histérico –, o PSDB/DEM agora se vê obrigado a fazer o que nunca fez: reconhecer a realidade e elogiar os avanços do governo Lula. Lembrando o velho e bom Brizola, estão tendo que engolir o sapo barbudo.

Embora arriscada, essa é uma estratégia eleitoral compreensível. Nos próximos meses o PSDB/DEM, que finalmente parece ter resolvido a sua diocotomia em relação à política social de Lula — uma hora dizia que era criação sua, na outra dizia que não prestava –, e tentando fazer com que seu candidato Serra perca a imagem de anti-Lula, vai tentar lembrar o Bolsa Escola, por exemplo, um dos programas assistenciais desastrados criados por Fernando Henrique Cardoso.

(Alem de ser difícil conseguir isso ao mesmo tempo em que tenta descolar sua imagem do ex-presidente, há outro problema à frente deles. Serra já começou a tentar aparecer como alguém que vai aprimorar a obra de Lula. Obviamente, nada impede que o próprio Lula diga: “Olha, eles dizem que eu fiz um bom trabalho? Pois eu, que fiz esse bom trabalho, estou dizendo que eles não conseguirão dar prosseguimento a ele, e sua história prova isso. Quem pode me suceder é a Dilma.” Mas esse é o tipo de coisa que só se poderá saber como vai acontecer durante o desenrolar a campanha eleitoral.)

O mais interessante é que eles vão partir de uma base correta. Uma parte dos programas específicos desenvolvidos no governo Lula foi realmente criada durante o governo anterior, como o PETI — embora tenha sido o Governo Lula que, ao mudar o foco de toda a política social, tenha dado a eles a dimensão que hoje têm. Esse é o trunfo do PSDBN/DEM, embora falho. Porque não é o fato de ter programas sociais, que desde quase sempre governos fizeram isso: Getúlio com a sua LBA, Sarney com seu vale-leite e vale-gás. A diferença é a abordagem e forma de entendimento do papel da assistência social. Por exemplo, em momentos de crise — eles conseguiram quebrar o país três vezes, afinal –, o PSDB/DEM apontava os programas sociais como os primeiros alvos de corte de verbas, porque para eles assistência social nunca foi muito diferente de esmola. Isso eles vão esconder.

E é nesse contexto que entra William.

Apesar do que Serra e o PSDB/DEM vieram dizendo ao longo desses anos, o problema da política social do governo Lula é o fato de que ela ainda não consegue beneficiar todos os que precisam, nem oferecer uma renda maior para os já beneficiados. Para Estados como Alagoas ou Piauí, por exemplo, o dinheiro da União através do SUAS é normalmente o único recurso significativo a que têm acesso para a área social. Ainda é pouco.

Mas São Paulo tem o segundo maior orçamento do país. E ainda assim, meninos como William estão engraxando sapatos no aeroporto de Guarulhos.

Talvez o problema de crianças como William fosse minimizado se o PSDB, no poder em São Paulo há tantos e tantos anos, tivesse feito sua parte, em vez de replicar no governo estadual o que fizeram no governo federal. Se Serra é tão diferente de FHC, como pretende agora, porque o seu governo em São Paulo é tão parecido com o do ex-presidente? Essa divergência entre o atual discurso tucano e o que se pode observar na prática quando eles têm o governo na mão tem raízes fortes. Diz respeito à visão de país do PSDB/DEM.

Agora, por exemplo, Serra diz que vai continuar o Bolsa Família. Mas mesmo que seja bem intencionado, mesmo que tenha admitido o seu erro recorrente e permanente dos últimos 8 anos, ou que mentiu ao povo brasileiro porque precisava fazer oposição, o que Serra pretende manter não é o Bolsa Família, porque a sua história e a sua tradição não permitem que ele o entenda. O que Serra, com boa vontade, pode ter em vista é o seu Bolsa Esmola, porque é assim que Serra e o PSDB vêm a assistência social. Por isso, seu desempenho diante do governo de São Paulo deve ser lembrado. O Estado de São Paulo tinha a obrigação de garantir a crianças como William assistência e apoio. Mas não fez isso, e esse menino, como milhares de outros meninos paulistas, se vê surpreso e feliz quando recebe 10 reais na porta do aeroporto.

Curso Rafael Galvão para sacanear comunistas

Este post tem uma missão nobre: iluminar um pouco a indigência direitista no debate social. É um esforço mínimo, claro, dentro das possibilidades de um blogueiro que prefere falar de sacanagem a falar de política. Mas bem intencionado, ainda assim.

Sua razão de ser são alguns dos comentários ao post sobre os canalhas da ditadura militar. Gente que, não contente em defender o indefensável, apela para um argumento raso de desqualificação pessoal: como alguém que defende Stálin pode reclamar de uma ditadura?

Não parecem ter entendido a parte em que se diz “de sacanagem”. ‘Stalinistas” é como trotsquistas barbudinhos do PT, saudosos da picareta no cocoruto de um exilado no México, se referem aos “verdadeiros leninistas” que militaram no glorioso Partido Comunista do Brasil. Não quer dizer que eles ainda defendam Stálin incondicionalmente.

Reconhecer e abjurar os crimes de Stálin contra o seu povo não significa voltar as costas aos grandes avanços sociais naqueles 30 anos. Quem fez isso foi o PPS — e olha só no que deu. Esse tipo de abordagem não é apenas inane, mas enganosa e burra.

A utilização desse argumento simplório incomoda por ser notícia velha e batida. Os crimes de Stálin são utilizado por todo mané de direita para justificar crimes cometidos por suas próprias ditaduras.

É preciso ser completamente idiota para fazer isso. É como justificar os erros de Bush apelando para Hitler. O que me impressiona é o seguinte: ainda que eu fosse um defensor incondicional de Stálin e de seus expurgos, o que isso teria a ver com o caráter malsão da ditadura militar no Brasil? Os fatos mudariam em função da opinião de um pobre blogueiro sem eira nem beira? Torturadores deixariam de ter torturado centenas de brasileiros porque A acredita que Stálin era gente boa? O golpe deixou de levar o Brasil para um longuíssimo período de trevas porque B consegue justificar os expurgos stalinistas?

Conduzir qualquer discussão para esse lado é confissão cabal de idiotice, que me perdoem aqueles que tentaram. Os expurgos stalinistas podem ser compreendidos e discutidos dentro do contexto russo, embora jamais justificados. Pessoalmente, acho que Stálin tem outros problemas também; se a direita fosse mais inteligente e um pouco menos infensa a argumentos fáceis demais poderia apelar a eles e, pelo menos, começar um debate razoável. A “traição” aos comunistas alemães em 1927 (sem certeza da data), por exemplo, na minha opinião foi um fator importante na viabilização do nazismo e condenou a revolução russa. Isso é imperdoável.

Diante de uma situação dessas começo a achar que é meu dever colaborar para o desenvolvimento cultural desse pessoal. A indigência intelectual da direita cansa. Eu fico cansado de ver esse mesmo discurso dos expurgos de Stálin, porque é ineficaz: ninguém mais justifica os erros de Stálin. É difícil para eles ganhar um debate porque eles têm argumentos pobres demais, velhos demais, desgastados demais.

Por isso este blogueiro, com a doçura que mamãe me deu, vou lhes fazer um favor. Está declarada aberta a “Oficina Rafael Galvão de Como Sacanear Comunistas”.

Para começar, me parece exemplo fino de puerilidade e ignorância qualquer bobo de direita apelar para Stálin contra um militante ou ex-militante do PCdoB. Puerilidade e ignorância, porque muito mais grave que ter apoiado Stálin — algo de que nenhum comunista se arrepende, geralmente porque sabe um pouquinho de história — foi ter acreditado que Enver Hoxha era gente boa. Essa, sim, não tem desculpa. A maioria dos comunistas do mundo repudiou Stálin logo após o XX Congresso do PCUS; mas Enver Hoxha continuou sendo admirado pelo PCdoB até bem depois de sua morte.

Quer bater em um militante do PCdoB? Larga um Enver Hoxha nas fuças dele. Dói. Machuca. Magoa. O problema é que 90% dos bobos de direita que acenam com os expurgos stalinistas não fazem idéia de quem diabos foi Hoxha.

Mas isso ainda é muito pouco. Não combina com a direita elitista deste país, que se pretende tão sofisticada e europeia (embora eu ache que ela está mais é para Miami, mesmo). São vocês que, na falta de argumentos concretos, gozam o “analfabetismo” de Lula, não são? São vocês os esnobes que gostam de alardear superioridade cultural, não são?

No reino das discussões bizantinas, se você puder dar uma luz nova a um debate antigo — ou seja, concordando com todo mundo mas de uma maneira ligeiramente diferente — você fará sucesso.

E isso a gente faz assim, ó: quando alguém quiser justificar as atrocidades da ditadura militar mencionando o nome Stálin, e todo mundo estiver fazendo aquela pose típica de intelectual em mesa de bar, você faz a de quem comeu merda e não gostou (a outra pose típica), olha em volta fingindo que é inteligente e larga:

— Jdanov.

E as pessoas em volta vão perguntar: cumé?

— Jdanov. O grande crime de Stálin foi Jdanov.

Pronto. Você acrescentou algo ao debate. 9 entre 10 pessoas na mesa não farão a mínima ideia de quem foi Jdanov. E aí você tem a sua chance.

A essa altura eu deveria sugerir que você, meu caro mané de direita que apela para os crimes de Stálin para tentar desqualificar críticas à ditadura, fosse procurar uma enciclopédia, mas como estou imbuído do senso messiânico de melhorar o seu parco repertório, vai aqui uma explicação sucinta do que estou falando.

Uma das noções mais deletérias instituídas durante a luta pelo socialismo foi o realismo socialista — a ideia de que a obra de arte deve apontar, necessariamente, a solução socialista. Na verdade, o realismo socialista não é algo intrinsecamente nocivo: é apenas uma escola artística, como milhares de outras. É tão válida quanto o naturalismo ou o romantismo ou o barroco, e deu grandes obras como “A Mãe” de Górki ou, aqui no Brasil, “Capitães de Areia” de Jorge, o Amado.

O problema começa quando o Estado passa a defender essa escola como a única admissível e utiliza seus meios de coerção para garantir isso.

Uma revolução se dá em vários campos, e o cultural é um deles. O combate a ela também, e foi por isso que o ocidente promoveu mediocridades como Soljenitsyn. Em um dos tantos desvios do ideário leninista, Stálin resolveu que seria necessário fazer da cultura um campo de combate praticamente militar.

Se o ambiente político russo era propício ao autoritarismo assassino que se tornou uma das marcas de Stálin, por outro lado a cena cultural russa, na virada do século XX, era virtualmente tão intensa quando a francesa. Não é preciso retroceder no tempo em direção a Puchkin ou Gogol, ou mesmo a Dostoiévski ou Tchekov. Naquele momento, a Rússia borbulhava em ideias diferentes, brilhantes e conflitantes.

Um exemplo do que se faria já nos tempos da Revolução, e um dos meus preferidos da virada do século:

À nossa volta floresciam campos vermelhos de papoulas, a brisa da tarde brincava sobre campos de centeio amarelecido e, no horizonte, erguia-se alto o virginal trigo mourisco, como a muralha de um mosteiro longínquo. O plácido Volin ziguezagueava, afastava-se de nós, sinuoso, e perdia-se no bosque de faias, envolvido numa névoa cor de pérola e entre colinas floridas. Depois serpeava lentamente entre plantações de lúpulo. Um sol alaranjado descia no horizonte, parecendo uma cabeça decepada; uma luz suave filtrava-se entre as nuvens, os estandartes do poente ondeavam sobre nossas cabeças. No frescor da tarde era forte o cheiro do sangue dos cavalos mortos na véspera.

Esse é o segundo parágrafo de “O Caminho do Sbruch”, de Isaac Bábel (“Cruzando o rio Zbrucz” na tradução de Cecília Prado, mas eu prefiro esta, de Roniwalter Jatobá). Foi esse ambiente vivo e vibrante que Stálin destruiu ao instituir a política cultural que seria conhecida como Jdanovismo. Ao permitir, grosso modo, que apenas as obras realistas socialistas laudatórias ao regime fossem reconhecidas, Stálin fez com que as artes russas agonizassem e morressem, virtualmente todas elas. Privilegiando a mediocridade apenas porque ela condizia com a sua visão autoritária de mundo, o Jdanovismo destruiu a cultura russa. Um país que tinha dado ao mundo gênios em virtualmente todas as áreas, mas especialmente a literatura, de repente se calou porque a única voz permitida e incentivada era aquela que louvasse o socialismo e o Grande Guia dos Povos.

A União Soviética se recuperou dos expurgos stalinistas — na verdade, saiu deles como uma das duas únicas superpotências do mundo. No entanto, jamais conseguiria se recuperar do Jdanovismo.

É possível apenas imaginar quantos Dostoiévskis e Tolstóis deixaram de aparecer porque o Jdanovismo não permitia visões distintas do mundo; Babel, pelo menos, foi executado por Beria em 1941. E eu consigo pensar em poucos crimes tão grandes — e tão admiravelmente adequados ao discurso elitista da direita — como esse, o de destruir a cultura de um povo.

No fim das contas, é o seguinte: ninguém em sã consciência justifica hoje os expurgos stalinistas. Apelar para eles denota burrice e ignorância, e não apenas porque os crimes de Stálin não justificam os crimes da ditadura militar no Brasil, mas porque há argumentos melhores para tentar essa besteira. Este blog, que pode ser canalha e chauvinista mas tem lá seus parcos conhecimentos de história, cumpre o seu papel de bom samaritano e tenta ajudar as antas de direita a calibrar melhor seus discursos retardados oferecendo alguns subsídios básicos para o seu crescimento espiritual.

Em vez de me xingar, me agradeçam. Se chamei vocês de burros e ignorantes é porque vocês são — mas também porque quero fazer com que vocês melhorem. E voltem na próxima — porque eu e vocês temos certeza de que vai haver próxima — com um discurso melhorzinho.

Espero ter ajudado. E lembrem-se: da próxima vez tentem apelar para a desqualificação pessoal através de Enver Hoxha e Jdanov, em vez dos expurgos stalinistas. O debate fica mais interessante, tipo assim, esteticamente highbrow. Olha que chique.

A permanência das coisas

Comício com Luiz Carlos Prestes em Aracaju, durante a campanha eleitoral de 1945.

Prestes faz o seu discurso, e aos poucos as pessoas vão indo embora. (Apesar disso, Iêdo Fiúza foi o candidato mais votado na cidade.)

Para tentar lembrar ao pessoal as vantagens óbvias do socialismo sobre o capitalismo, Prestes faz uma última tentativa:

“E tem mais, camaradas! No socialismo, quem não trabalha não come!”

E então o comício esvaziou de vez.

Só para lembrar que as coisas não parecem ter mudado muito de lá para cá, e as pessoas parecem continuar querendo comer sem trabalhar. Pelo menos quando o empregador é o Estado.

É preciso ser muito bobo para confundir a idéia de socialismo com a noção de que o Estado deve ser uma vaca de tetas infinitas. “De cada um segundo sua capacidade; a cada um segundo sua necessidade”, um velho adágio leninista, não parece reverberar profundamente na cabeça dessas pessoas.

As vozes dos derrotados

Os senhores jornalistas, que se arvoram em defensores da liberdade e da democracia, tentando reescrever a história e inventando até — como a Época dia desses — que o Estadão resistiu à ditadura de 1964, deveriam ter um mínimo de vergonha na cara e se pronunciar contra o depoimento podre do ex-ministro e ex-chefe do DOI-CODI Leônidas Pires Gonçalves no Globonews, ontem à noite.

Eu fui um militante comunista. Sou stalinista, como lembra de sacanagem o Idelber. E tenho muito orgulho do que fui e do que sou. Como tenho muito orgulho da herança que me coube: a crença na capacidade de cada indivíduo de dar o melhor de si não apenas em benefício próprio, mas para melhorar, de alguma forma, o mundo.

É por isso que não admito que um sujeito ao menos indiretamente responsável por tantas mortes venha tentar jogar lama sobre a memória de brasileiros dignos e honestos como os tantos mártires que tiveram a coragem de lutar contra criminosos que subverteram a ordem política e institucional deste país e o arrastaram a um tempo excessivamente longo de miséria e obscurantismo.

Eu aprendi a respeitar brasileiros valorosos como Manoel Fiel Filho, como Maurício Grabois, que morreu ao lado do filho tentando recuperar o país que vocês nos roubaram. A respeitar os tantos homens e mulheres que morreram nas mãos de criminosos e torturadores que se diziam militares. Do meu ponto de vista, general, vocês fizeram o mesmo que assaltantes vagabundos fizeram: mas em vez de facas e revólveres vocês usaram tanques. Não há diferença, na essência: um assaltante qualquer rouba dinheiro; vocês roubaram um país e as vidas de centenas de brasileiros.

Quando você vem a público e tem a desfaçatez de afirmar que Vladimir Herzog se suicidou, você desrespeita a memória de um homem que foi assassinado covardemente pelo regime do qual o senhor fazia parte — um assassinato tão covarde que vocês sequer tiveram a coragem de assumir a porcaria que fizeram. Quando tem a falta de vergonha de chamar os exilados de fugitivos, chamando-os indiretamente de covardes, você desrespeita qualquer noção de civismo neste país. Quando chama as indenizações aos torturados de “bolsa-ditadura”, você mostra o seu desprezo pelas próprias noções de justiça e dignidade.

Em determinado momento, com o descaramento que só velhos ultrapassados que já detiveram muito poder podem demonstrar, você perguntou aos técnicos presentes se seus pais tinham sido presos. E depois acrescentou: se foram presos é porque tinham feito alguma coisa.

Com outras palavras, o general chamou de criminosos, puros e simples, todos aqueles que tiveram a coragem de se levantar contra a opressão.

Pois o meu pai foi preso pelo seu regime, general. E você não ouse chamá-lo de criminoso, porque você não tem moral para isso. Ele tinha apenas 17 anos, e o seu crime foi escrever uma coluna sobre sindicatos no jornal. Foi preso por pessoas como você, sub-humanos que não merecem ser chamados de gente escondidos sob fardas militares, pessoas cujas mentiras só podem ser ouvidas hoje em dia porque a gente acaba tendo que compactuar com uma mídia ruim como essa; é o preço que pagamos pela democracia que vocês tentaram destruir e que, graças ao sacrifício desses que você hoje chama de criminosos, conseguimos recuperar.

O meu consolo, e o consolo de todos aqueles que vêm Leônidas Pires falar as besteiras que quer — talvez com a condescendência de que apenas velhos senis podem usufruir, mas que não é devida a nenhum integrante da ditadura militar –, é que no fim das contas nós ganhamos a guerra. Entendeu, general? Vocês perderam. Resta ao general de pijama Leônidas o peso de saber que foi a sua geração que destruiu o Exército Brasileiro, que o colocou em um patamar imoral e abaixo do papel histórico que ainda poderia cumprir. Foram vocês que transformaram soldados em torturadores e desgraçaram por muito tempo uma instituição nacional importante.

E por isso, senhor general, você é apenas um derrotado com as mãos sujas. Morra com isso na sua consciência.

Lula, o cachalote

Este blog anda calado sobre política.

Não é por desinteresse — até porque quem sabe como ganho o leitinho das crianças sabe também que esse é um assunto que muito me interessa.

Mas eu não falo sobre política ultimamente porque gosto muito da história do Essex.

O Essex era um baleeiro americano afundado por um cachalote em 1820. Apenas oito marinheiros sobreviveram; e para isso tiveram que comer sete de seus companheiros. Ouvi falar dele pela primeira ao ler “Moby Dick”, aí pelo início da adolescência (aquela edição azul da Abril Cultural em dois volumes, alguém lembra dela?). E até hoje a história de seus sobreviventes é, para mim, uma das mais interessantes da história da marinharia.

E nada, nada me tira a sensação de estar assistindo a uma réplica das tribulações dos sobreviventes do naufrágio do Essex quando vejo os percalços do PSDB ao defender sua candidatura à presidência da República, uma candidatura que mesmo antes de ser lançada parece malsinada a compartilhar a sina dos sete marinheiros comidos para garantir a sobrevivência de seus companheiros.

Tudo isso por causa não de um cachalote, mas de uma lula.